Efeito de Anestésicos Locais com e sem Vasoconstritor em Pacientes com Arritmias Ventriculares



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Transcrição:

Efeito de Anestésicos Locais com e sem Vasoconstritor em Pacientes com Arritmias Ventriculares Effect of Local Anesthetics with and without Vasoconstrictor Agent in Patients with Ventricular Arrhythmias Maria Teresa Fernández Cáceres 1, Ana Cristina P. P. Ludovice 2, Fabio Sândoli de Brito 2, Francisco Carlos Darrieux 1, Ricardo Simões Neves 1, Mauricio Ibrahim Scanavacca 1,2, Eduardo A. Sosa 1,2, Denise Tessariol Hachul 1,2 Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) 1, Hospital Albert Einstein 2, São Paulo, SP - Brasil Resumo Fundamento: A utilização de anestésicos locais associados a vasoconstritores para tratamento odontológico de rotina de pacientes cardiopatas ainda gera controvérsia, em razão do risco de efeitos cardiovasculares adversos. Objetivo: Avaliar e comparar os efeitos hemodinâmicos do uso de anestésico local com vasoconstritor não-adrenérgico em pacientes portadores de arritmias ventriculares, em relação ao uso de anestésico sem vasoconstritor. Métodos: Um estudo prospectivo randomizado avaliou 33 pacientes com sorologia positiva para doença de Chagas e 32 pacientes com doença arterial coronariana, portadores de arritmia ventricular complexa ao Holter (>10 EV/h e TVNS), 21 do sexo feminino, idade de 54,73 + 7,94 anos, submetidos a tratamento odontológico de rotina com anestesia pterigomandibular. Esses pacientes foram divididos em dois grupos: no grupo I, utilizou-se prilocaína a 3% associada a felipressina 0,03 UI/ml, e no grupo II, lidocaína a 2% sem vasoconstritor. Avaliaram-se o número e a complexidade de extra-sístoles, a freqüência cardíaca e a pressão arterial sistêmica dos pacientes no dia anterior, uma hora antes, durante o procedimento odontológico e uma hora após. Resultados: Não foram observadas alterações hemodinâmicas, nem aumento do número e da complexidade da arritmia ventricular, relacionados ao anestésico utilizado, em ambos os grupos. Conclusão: Os resultados sugerem que prilocaína a 3% associada a felipressina 0,03 UI/ml pode ser utilizada com segurança em pacientes chagásicos e coronarianos, com arritmia ventricular complexa. () Palavras-chave: Arritmias cardíacas, anestésicos locais, vasoconstritores, cardiomiopatia chagásica, doença das coronárias. Summary Background: The routine use of local anesthetics associated to vasoconstrictors for the dental treatment of patients with cardiopathies is still controversial, due to the risk of adverse cardiovascular effects. Objective: To evaluate and compare the hemodynamic effects of the use of local anesthetics with a non-adrenergic vasoconstrictor in patients with ventricular arrhythmia, when compared to the use of anesthetics without vasoconstrictor. Methods: A prospective randomized study evaluated 33 patients with positive serology for Chagas disease and 32 patients with coronary artery disease that presented complex ventricular arrhythmia at Holter monitoring (>10 EV/h and NSVT), of which 21 were females, aged 54.73 + 7.94 years, submitted to routine dental treatment with pterygomandibular anesthesia. These patients were divided in two groups: group I received prilocaine 3% associated with felypressin 0.03 IU/ml and group II received lidocaine 2% without vasoconstrictor. The number and complexity of extrasystoles were analyzed, as well as the heart rate and systemic arterial pressure of the patients on the day before, one hour before, during the procedure and one hour after the dental procedure. Results: No hemodynamic alterations or increase in the number and complexity of the ventricular arrhythmia related to the anesthetic used in the dental procedure were observed in either group. Conclusion: The results suggest that prilocaine 3% associated to a felypressin 0.03 IU/ml can be safely used in patients with Chagas disease or coronariopathy with complex ventricular arrhythmia. (Arq Bras Cardiol 2008;91(3):128-133) Key words: Arrhythmias, local anesthetics, vasoconstrictors, Chagas ic myocardiopathy, coronariopathy. Full texts in English - http://www.arquivosonline.com.br Correspondência: Denise Tessariol Hachul Rua Joaquim Cândido de Azevedo Marques, 1205 Morumbi - 05688-021 - São Paulo, SP - Brasil E-mail: dhachul@uol.com.br, dhachul@cardiol.br Artigo recebido em 14/12/06; revisado enviado em 25/10/07; aceito em 18/02/08 142

Introdução Na rotina do tratamento odontológico, quando se trata de pacientes cardiopatas portadores de arritmias ventriculares, a escassez de informações objetivas na literatura dificulta a escolha do anestésico mais adequado e a decisão sobre a dose máxima a ser utilizada. O temor pelo uso de anestésicos locais contendo vasoconstritores baseia-se no potencial efeito adverso dessas substâncias sobre a pressão arterial e/ou ritmo cardíaco. Os efeitos hemodinâmicos dos anestésicos locais podem ser causados por ação direta sobre o músculo liso ou cardíaco ou por ação direta sobre a inervação autonômica do coração. Todos podem provocar, dependendo da concentração, aumento da freqüência cardíaca e da pressão arterial média. Quando a dose do anestésico ocasiona colapso cardiovascular, o efeito predominante é a taquicardia 1, no entanto a ocorrência da maioria das reações adversas deve-se a injeções inapropriadas de altas doses e a punções intravasculares acidentais 2,3. Ainda, com exceção das reações alérgicas, as demais complicações anestésicas descritas são provocadas pela maior estimulação adrenérgica sobre o sistema cardiovascular, o que justifica certa restrição ao uso de vasoconstritores catecolaminérgicos em cardiopatas. A felipressina, agente vasoconstritor, por não agir sobre os receptores adrenérgicos, não provoca alterações significativas na freqüência cardíaca 4, tendo ação direta na musculatura lisa vascular. Nas quantidades requeridas para anestesia local, atua sobre a circulação venosa e não tem efeito arterial, cardíaco ou potencial arritmogênico 5,6. Sua ação vasoconstritora é menor do que a da adrenalina, mas a duração do efeito é similar 7. No Brasil, dispõe-se comercialmente de dois tipos de vasoconstritores: a felipressina e as aminas simpatomiméticas. A felipressina só está disponível associada ao anestésico prilocaína. Já a lidocaína está disponível com e sem vasoconstritor adrenérgico, porém não com a felipressina. A lidocaína e a prilocaína assemelham-se em vários aspectos. Ambas são classificadas como amidas e possuem mecanismos de ação e efeitos semelhantes 2. Na dose utilizada e no tipo de via injetada para tratamento odontológico, não há diferenças significativas quanto ao tempo de latência e duração do efeito anestésico. Considerando-se as substâncias não-adrenérgicas, evidências sugerem que, na ausência de acidente de punção ou superdosagem, os vasoconstritores promovem efeito protetor, por aumentarem a intensidade e duração do efeito anestésico, por diminuírem sua toxicidade e por reduzirem a hemorragia local 8. Pela necessidade de mais informações objetivas em pacientes considerados de maior risco, realizamos este estudo para avaliar a segurança do uso de anestésico local com vasoconstritor nãoadrenérgico em portadores de arritmias ventriculares associadas às cardiopatias chagásica e coronariana. O objetivo deste estudo foi avaliar os efeitos da lidocaína sem vasoconstritor e da prilocaína com felipressina sobre o número e a complexidade das extra-sístoles, a freqüência, o ritmo cardíaco e a pressão arterial sistêmica em pacientes portadores de doença de Chagas e doença arterial coronariana com arritmia ventricular complexa, durante realização de procedimentos odontológicos de rotina. Métodos O estudo foi prospectivo, randomizado e não-duplo-cego. Os critérios de inclusão foram: Idade entre 18 e 70 anos; Sorologia positiva para doença de Chagas ou doença arterial coronariana estável; Presença de arritmia ventricular complexa ao eletrocardiograma ambulatorial de 24 horas (sistema Holter) monomórficas, polimórficas, repetitivas, taquicardia ventricular não-sustentada e inclusive sustentada; Com ou sem medicação especifica; Indicação para tratamento odontológico no maxilar inferior. Foram critérios de exclusão: Outras cardiopatias (infarto recente, angina instável); Sinais e sintomas e insuficiência cardíaca em classe funcional IV, mesmo que controlada clinicamente. Foram selecionados 65 pacientes consecutivos: 33 com sorologia positiva para doença de Chagas e 32 portadores de doença arterial coronariana e infarto do miocárdio prévio, com ou sem revascularização miocárdica pregressa. Todos apresentavam EV freqüentes e complexas (>10/hora, com ou sem batimentos repetitivos ou TVNS) documentadas no Holter de 24 horas. Nove pacientes do grupo coronariano e 18 do grupo chagásico estavam medicados com amiodarona, um paciente chagásico usava quinidina e um paciente do grupo coronariano utilizava propafenona; quatro pacientes eram portadores de marca-passo artificial definitivo, um era coronariano e três eram chagásicos; e sete pacientes eram portadores de cardioversor-desfibrilador implantável (CDI): um do grupo coronariano e seis do chagásico. Trinta e três pacientes usavam antiagregante plaquetário (AAS), e 12, anticoagulante oral (warfarina). Todos os pacientes apresentavam diagnóstico prévio de hipertensão arterial controlada com medicação específica prescrita no ambulatório de origem, como enalapril, captopril, lisinopril, losartan, diltiazen, hidralazina, furosemida, espironolactona e hidroclorotiazida. Após a avaliação preliminar e constatada a necessidade de tratamento dentário, os pacientes foram encaminhados para a unidade de odontologia e informados por escrito sobre o protocolo. Após a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, eles foram agendados para realização dos procedimentos odontológicos. Na primeira consulta odontológica, foram submetidos a anamnese, exame clínico e radiografia periapical. Solicitou-se uma radiografia panorâmica e preencheu-se a ficha clínica. A monitorização com Holter foi iniciada no dia anterior ao procedimento. A gravação do ECG foi realizada em gravador portátil (Dýnamis 3000 ECO) e o registro feito em fita magnética. Os pacientes foram orientados a retornar no dia seguinte para realização do tratamento odontológico. O atendimento foi realizado no período matinal. Todos os pacientes tomaram medicamentos no dia do procedimento. 143

A monitorização da pressão arterial e da freqüência cardíaca foi realizada com aparelho Critikon Dinamap Plus acoplado ao paciente por meio de um manguito padrão (24 x 32 cm); os registros foram feitos a partir de medidas oscilométricas de acordo com o seguinte protocolo: na sala de espera, dez minutos antes do início do tratamento; no momento da chegada do paciente ao consultório odontológico; cinco minutos após a injeção do anestésico; a cada 15 minutos durante os 50 minutos de tratamento e 10 minutos após o término deste. Os procedimentos odontológicos foram realizados na mandíbula, região de molares e pré-molares (primeiros e segundos, direito ou esquerdo). A anestesia foi realizada por meio de bloqueio regional pterigomandibular com seringa carpule e agulha 3G. Para cada procedimento, foram utilizados de dois a quatro tubetes de 1,8 ml de anestésico cada. Os pacientes foram divididos em grupos de acordo com o anestésico recebido, seqüencialmente: 1. chagásicos com prilocaína associada a felipressina, 2. chagásicos com lidocaína sem vasoconstritor, 3. coronarianos com prilocaína associada a felipressina e 4. coronarianos com lidocaína sem vasoconstritor. Foram analisados por meio do sistema Holter o ritmo cardíaco, o número de extra-sístoles ventriculares (EV) e a complexidade destas de acordo com o seguinte protocolo: no mesmo horário do procedimento odontológico do dia anterior e uma hora antes do procedimento e durante este, totalizando 25 horas de monitorização. As medidas pressóricas, a freqüência cardíaca e o número e a complexidade das extrasístoles ventriculares foram comparados nos quatro grupos de pacientes (segundo o tipo de anestésico recebido) em três fases: antes do procedimento odontológico, durante o procedimento e após o término. Inicialmente, todas as variáveis foram analisadas descritivamente. Para as variáveis quantitativas, essa análise foi feita pela observação dos valores mínimos e máximos e do cálculo de médias e desvios-padrão e medianas. Para as variáveis qualitativas, calcularam-se freqüências absolutas e relativas. O nível de significância utilizado para os testes foi de 5%. Resultados Todos os pacientes permaneceram assintomáticos e toleraram bem o tratamento odontológico. Em nenhum caso houve complicações decorrentes do procedimento, tais como sangramentos ou acidentes de punção. A comparação dos quatro grupos de pacientes quanto à quantidade de tubetes de anestésicos utilizados e quanto às suas características clínicas está descrita nas tabelas 1 e 2. As características clínicas demográficas eram semelhantes e não se observou diferença na dose de anestésico utilizada, assim como no grau de disfunção ventricular dos pacientes chagásicos e coronarianos que receberam anestésicos com ou sem vasoconstritor. Ritmo cardíaco Nas análises do número das extra-sístoles ventriculares (EV), não se observaram diferenças entre os vários momentos avaliados (no dia anterior, antes do tratamento odontológico e durante o procedimento) nem em relação ao uso de anestésico com e sem vasoconstritor, tanto nos pacientes coronarianos como nos chagásicos (gráf. 1 e 2). A complexidade das extra-sístoles também permaneceu estável nos vários momentos, com comportamento semelhante nos dois grupos. Pressão arterial Quanto ao comportamento da pressão arterial média (PAM) antes, durante e após o procedimento, não observamos diferenças relacionadas com os tipos de solução anestésica utilizada, tanto nos pacientes coronarianos como nos chagásicos (gráf. 3 e 4). Freqüência cardíaca O comportamento da freqüência cardíaca (FC) dos pacientes estudados está demonstrado nos gráficos 5 e 6. Também não foi observada diferença entre os grupos relacionada aos tipos de anestésicos utilizados. Tabela 1 Quantidade de tubetes anestésicos utilizados nos quatro grupos Grupo Chagásicos Anestesia nº de Prilocaína + felipressina Tubetes n % n % 2 (78 mg) 10 71,4 18 94,7 3 (108 mg) 2 14,3 1 5,3 4 (144 mg) 2 14,3 0 0,0 p* 0,152 2 (108 mg) 10 66,7 13 76,5 Coronarianos 2,5 (135 mg) 0 0,0 2 11,8 3 (162mg) 5 33,3 2 11,8 *Nível descritivo de probabilidade do teste exato de Fisher. 0,191 144

Tabela 2 Tipo de anestésico utilizado e função ventricular nos pacientes coronarianos e chagásicos Prilocaína + felipressina FE % n % n % p* < 30 6 46,1 3 20,0 Coronarianos 30-50 2 15,4 5 33,3 0,351 > 50 5 38,5 7 46,7 Total 13 100,0 15 100,0 < 30 1 7,1 1 5,3 30-50 9 64,3 9 47,4 Chagásicos 0,637 > 50 4 28,6 9 47,3 Total 14 100,0 19 100,0 *Nível descritivo de probabilidade do teste exato de Fisher. Prilocaína Gráfico 1 - Média das extra-sístoles nos pacientes coronarianos nos vários momentos analisados. Gráfico 3 - Médias da PAM nos pacientes coronarianos. Prilocaína Gráfico 2 - Médias das EV nos vários momentos analisados em pacientes chagásicos. Gráfico 4 - Médias da PAM nos pacientes chagásicos. 145

Discussão Gráfico 5 - Média da FC nos pacientes coronarianos. Gráfico 6 - Médias da FC dos pacientes chagásicos. Arq Bras Cardiol XXXX; XX(X) : XXX-XXX Em nosso estudo, não observamos efeitos cardiovasculares adversos em pacientes chagásicos e coronarianos com arritmia ventricular complexa, submetidos a tratamento odontológico sob anestesia local. Independentemente do tipo de anestésico administrado, não houve variações no número e na complexidade das extra-sístoles ventriculares, na pressão arterial sistêmica e no comportamento da freqüência cardíaca. Optamos pela realização dos procedimentos na mandíbula, sob a técnica de bloqueio regional, pois essa técnica permite que a droga atinja a corrente sangüínea, e, assim, os eventuais efeitos sobre o sistema cardiovascular poderiam ser avaliados. Na arcada superior, não se realiza a técnica de bloqueio regional, mas, sim, a anestesia por infiltração. Com a infiltração, a concentração do anestésico na circulação sangüínea é desprezível, e, portanto, não atingiríamos nossos objetivos. Os estudos de Oliveira e cols. 9 relataram que as alterações na pressão arterial e na freqüência cardíaca, pela utilização de anestésicos locais com vasoconstritor, ocorrem imediatamente após a injeção dessas drogas, tendendo a normalizar-se rapidamente. Cabe salientar que, de acordo com os autores, alterações significativas somente ocorreram quando a administração das drogas (lidocaína com noradrenalina e prilocaína com felipressina) foi realizada por via endovenosa (simulando um acidente da técnica) e não pela via intrabucal ou infiltrativa. Tsakiris e Buhlmann 10 reportaram um efeito vasopressor sistêmico quando 0,5 UI ou mais de felipressina foi administrada por via endovenosa. Observaram também que 1 UI de felipressina endovenosa foi capaz de aumentar a pressão sistólica em 25 mmhg e a pressão diastólica em 13 mmhg. Já Aochi e cols. 11 reportaram aumento da pressão sistólica de 40 mmhg e da pressão diastólica de 25 mmhg quando 1 UI de felipressina foi administrada por via endovenosa. Johnson e Widrich 12 notaram que os distúrbios cardiovasculares raramente aconteciam com felipressina em doses inferiores a 0,2 UI/ml. Em nosso estudo, não observamos nenhuma alteração hemodinâmica após a infusão dos anestésicos avaliados, certamente por causa da dose adequada administrada (0,03 UI/ml de felipressina) e pela ausência de acidentes de punção. Os efeitos cardiovasculares observados não foram diferentes daqueles com o uso de anestésico sem vasoconstritor. Esses dados comprovam que, em pacientes com características clínicas semelhantes à população estudada e em doses ideais, os vasoconstritores não-adrenérgicos podem ser utilizados com segurança para otimizar o efeito anestésico. A literatura recomenda que o uso de vasoconstritor adrenérgico deva ser evitado em pacientes com angina instável, infarto do miocárdio ou cirurgia de revascularização recentes, nas arritmias refratárias, hipertensão arterial não-controlada e insuficiência cardíaca congestiva descompensada 3. Newcomb e Waite 6 sugerem o uso de anestésico com vasoconstritor não-catecolaminérgico na rotina do cirurgião-dentista e contra-indicam o uso dos catecolaminérgicos em pacientes com problemas cardiovasculares, hipertireoidismo, naqueles que se encontram medicados com antidepressivos ou antihipertensivos e quando usado em associação com sedação ou anestesia geral. Os pacientes deste estudo representam uma população que reflete a realidade da prática odontológica ligada à cardiologia. Os portadores de arritmias ventriculares, embora estáveis clinicamente sob tratamento clínico otimizado, eram hipertensos e apresentavam graus variáveis de disfunção ventricular. Alguns eram portadores de marca-passos e desfibriladores, com história de infarto do miocárdio prévio, apresentavam múltiplas artérias coronárias comprometidas e usavam antiagregantes plaquetários e anticoagulantes, fatores que caracterizam uma população de maior risco. Nossos resultados são originais e sua relevância baseia-se na não-existência na literatura especializada, de publicações validando a segurança do uso de anestésicos locais com vasoconstritores não-adrenérgicos durante procedimentos odontológicos numa população com essas características. Conclusões Concluímos que durante o tratamento odontológico de rotina: 1) os efeitos dos anestésicos locais com ou sem vasoconstritor não-adrenérgico, sobre o sistema cardiovascular, não são significativos; 2) apesar da conhecida variabilidade no comportamento de arritmias ventriculares ao Holter de 24 horas, não foram 146

observadas modificações significativas no seu número ou padrão de complexidade, após ambas as intervenções anestésicas e ao longo do procedimento; 3) o uso de anestésico com vasoconstritor nãoadrenérgico em doses adequadas pode ser utilizado com segurança em pacientes chagásicos e coronarianos com arritmia ventricular complexa. Limitações Neste estudo, utilizamos dois sais anestésicos diferentes, em razão da indisponibilidade no mercado nacional da lidocaína associada a felipressina e da prilocaína isolada. Não consideramos que haveria prejuízo no alcance dos objetivos, já que tanto a lidocaína como a prilocaína, na dose e no tipo de via injetada, possuem mecanismos e efeitos semelhantes. Ainda, nosso objetivo não foi comparar as duas drogas, mas avaliar o possível efeito deletério do vasoconstritor sobre o sistema cardiovascular em pacientes de alto risco. Julgamos, portanto, que seria clinicamente mais relevante utilizarmos os sais anestésicos diferentes, mas com efeitos semelhantes e disponíveis na rotina da prática clínica brasileira. Potencial Conflito de Interesses Declaro não haver conflito de interesses pertinentes. Fontes de Financiamento O presente estudo não teve fontes de financiamento externas. Vinculação Acadêmica Este artigo é parte de tese de Doutorado de Maria Teresa F. Cáceres pelo Instituto do Coração HC-FMUSP. Referências 1. Groban L, Deal DD, Vernon JC, James RL, Butterworth J. Ventricular arrhythmias with or without programmed electrical stimulation after incremental overdosage with lidocaine, bupivacaine, levobupivacaine, and ropivacaine. Anesth Analg. 2000; 91 (5): 1103-11. 2. Yagiela JA, Duffin SR, Hunt IM. Drug interactions and vasoconstritors used local solutions. Oral Surg Oral Med Oral Pathol. 1985; 59: 565-71. 3. Perusse R, Goulet JP, Turcotte JY. Contraindications to vasoconstrictor in dentistry: Part I. Cardiovascular diseases. Oral Surg Oral Med Oral Pathol. 1992; 74 (5): 679-86. 4. Tortamano N, Soares MS, Migliorati CA. Anestésicos locais. In: Tortamano N. Terapêutica medicamentosa em odontologia. São Paulo: Moreira Jr. Ed Médica; 1980. p. 56-62. 5. Jastak JT, Yagiela JA. Vasoconstrictors and local anesthesia: a review and rationale for use. J Am Dent Assoc. 1983; 107: 623-30. 6. Newcomb GM, Waite IM. The effectiveness of two local analgesic preparations in reducing hemorrhage during periodontal surgery. J Dent. 1972; 1: 37-42. 7. Akerman B. On felypressin (octapressin) as an adjunct to lidocaine and prilocaine an experimental study in animals. Acta Pharmacol Toxicol (Copenh). 1966; 24: 377-88. 8. Meyer FU. Hemodynamics changes under emotional stress following a minor surgical procedure under local anaesthesia. Int J Oral Maxillofac Surg. 1987; 16: 688-94. 9. Oliveira MA, Tortamano N, Armonia Pl, Rocha RG. Comparative study of the effects of lidocaine with noradrenaline and prilocaine with felypressin on the cardiovascular system of dogs, according to variations in dosage, time and route of administration. Rev Fac Odontol Univ São Paulo. 1986; 24 (2): 75-92. 10. Tsakiris A, Buhlmann A. Experimentelle untersuchungen beim Menschen uber die Wirkung von Vasopresssin auf die leberdurchblutung und den portalen druck. Helv Med Acta. 1961; 4: 615-21. 11. Aochi O, Takesita T, Kawaguchi T, Goto Y, Yasunaka H. Fundamental and clinical study on PLV2 (octapressin). Massui. 1966; 15 (5): 436-43. 12. Johnson WC, Widrich WC, Ansell JE, Robbins AH, Nabseth DC. Control of bleending varices by vasopressin: a prospective randomized study. Ann Surg. 1977; 186: 369-76. 147