Abstract. Introdução ARTIGO ARTICLE



Documentos relacionados
OBSERVAÇÃO DOS CONHECIMENTOS E PRÁTICAS DA POPULAÇÃO, DE UMA MICROÁREA DE UM BAIRRO DO RECIFE-PE SOBRE DENGUE

---- ibeu ---- ÍNDICE DE BEM-ESTAR URBANO

Ao dormir, todos somos vulneráveis. William Shakespeare NOTA TÉCNICA. Adma Figueiredo. Eloisa Domingues. Ivete Rodrigues

Colégio São Paulo Geografia Prof. Eder Rubens

A classificação dos domicílios indígenas no Censo Demográfico 2000 e seus impactos na análise de indicadores de saúde

DESIGUALDADE AMBIENTAL DO MUNICÍPIO DE SALINAS MG

APRESENTAÇÃO. Foto 1: Imagem aérea da Ilha de Santa Catarina

Journal of Public Health

ANÁLISE DA INCIDÊNCIA DE DOENÇAS DE VEICULAÇÃO HÍDRICA NA REGIÃO DE JACARAÍPE E NOVA ALMEIDA, SERRA, ES. DEVAIR VIAL BRZESKY

DESENVOLVIMENTO DE UM SOFTWARE NA LINGUAGEM R PARA CÁLCULO DE TAMANHOS DE AMOSTRAS NA ÁREA DE SAÚDE

Eixo Temático ET Gestão Ambiental em Saneamento PROPOSTA DE SANEAMENTO BÁSICO NO MUNICÍPIO DE POMBAL-PB: EM BUSCA DE UMA SAÚDE EQUILIBRADA

MODALIDADES ALTERNATIVAS DE CENSOS DEMOGRÁFICOS: DISTRIBUIÇÃO DAS AGÊNCIAS

Viva Rio lança trabalho socioambiental que contempla Nova Friburgo

INFLUÊNCIA DA LUZ ARTIFICIAL E NATURAL NA ELIMINAÇÃO DE CERCÁRIAS PELO Biomphalaria glabrata

Desigualdades em saúde - Mortalidade infantil. Palavras-chave: mortalidade infantil; qualidade de vida; desigualdade.

SOFTWARES DA ELIPSE SÃO UTILIZADOS NOS PROCESSOS DE REDUÇÃO DE PERDAS DE ÁGUA E EFICIENTIZAÇÃO ENERGÉTICA DA ÁGUAS GUARIROBA

Nas cidades brasileiras, 35 milhões de pessoas usam fossa séptica para escoar dejetos

Colégio Estadual do Campo Professora Maria de Jesus Pacheco Guimarães E. F. e M. Uma História de Amor ao Guará

Organização da Aula. Política de Desenvolvimento Econômico. Aula 2. Contextualização

Palavras- chave: Vigilância epidemiológica, Dengue, Enfermagem

PNAD - Segurança Alimentar Insegurança alimentar diminui, mas ainda atinge 30,2% dos domicílios brasileiros

Análises estatísticas da incidência de AIDS no Município de Rio Claro. 1 Resumo. 2 Abstract

DISTRIBUIÇÃO DO CAPITAL SOCIAL NO BRASIL: UMA ANÁLISE DOS PADRÕES RECENTES

INDICADORES DEMOGRÁFICOS E NORDESTE

Alcançado (b) Número total de casos notificados. Número total de notificações negativas recebidas

Experiência: VIGILÂNCIA À SAÚDE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

EVOLUÇÃO DA POPULAÇÃO RURAL NOS MUNICÍPIOS DO CENTRO- SUL PARANAENSE NO PERÍODO DE 2000 A 2010

A REINSERÇÃO DE NOVA ESPERANÇA NA REDE URBANA DE MARINGÁ: UMA PROPOSTA DE ESTUDO

Modelagem híbrida com autômatos celulares e redes neurais articiais de problemas epidemiológicos

Regiões Metropolitanas do Brasil

CONTEÚDOS DE GEOGRAFIA PARA O ENSINO FUNDAMENTAL COM BASE NOS PARÂMETROS CURRICULARES DO ESTADO DE PERNAMBUCO

Faculdade de Direito Ipatinga Núcleo de Investigação Científica e Extensão NICE Coordenadoria de Extensão. Identificação da Ação Proposta

Estudo Trata Brasil confirma relação entre doenças e falta de saneamento

Atividade de Aprendizagem 1 Aquífero Guarani Eixo(s) temático(s) Tema Conteúdos Usos / objetivos Voltadas para procedimentos e atitudes Competências

População e PIB das cidades médias crescem mais que no resto do Brasil

O retrato do comportamento sexual do brasileiro

Briefing. Boletim Epidemiológico 2010

ÍNDICE PAULISTA DE VULNERABILIDADE SOCIAL

Projeto da Rede Coletora de Esgoto Sanitário. Profª Gersina Nobre

Avaliação da Vigilância da Qualidade da Água no Estado do Acre Ano base 2011

Pesquisa Mensal de Emprego

Relatório Metodológico da Tipologia dos Colegiados de Gestão Regional CGR. O presente relatório tem por objetivo apresentar uma tipologia dos CGR

ANEXO 2 - INDICADORES EDUCACIONAIS 1

Nota Técnica n o 101/2005 SRC/ANEEL. Em 16 de setembro de 2005.

Figura 18. Distâncias das estações em relação ao Inmet e Mapa hipsmétrico

O CENSO 2010: BREVE APRESENTAÇÃO E RELEVÂNCIA PARA A GEOGRAFIA

CECAD Consulta Extração Seleção de Informações do CADÚNICO. Caio Nakashima Março 2012

20 amostras de água. Figura 1- Resultados das amostras sobre a presença de coliformes fecais E.coli no bairro nova Canãa. sem contaminação 15%

GEOGRAFIA. transformadas

15- Representação Cartográfica - Estudos Temáticos a partir de imagens de Sensoriamento Remoto

Eixo Temático ET Gestão Ambiental em Saneamento

Centro Educacional Juscelino Kubitschek

ORÉADES NÚCLEO DE GEOPROCESSAMENTO RELATÓRIO DE ATIVIDADES

V ESTUDO TEMPORAL DA QUALIDADE DA ÁGUA DO RIO GUAMÁ. BELÉM-PA.

DELTA DO JACUÍ ILHAS DA PINTADA, GRANDE DOS MARINHEIROS, FLORES E PAVÃO: Estudo Preliminar de Viabilidade para Abastecimento de Água

As estimativas recentes para a população infantil no município do Rio de Janeiro e o atendimento na rede escolar municipal

Pesquisa Mensal de Emprego PME. Algumas das principais características dos Trabalhadores Domésticos vis a vis a População Ocupada

AGENDA PARA INTENSIFICAÇÃO DA ATENÇÃO NUTRICIONAL À DESNUTRIÇÃO INFANTIL

2 ASPECTOS DEMOGRÁFICOS

Vigilância Epidemiológica. Meio Ambiente e Saúde Pública Prof. Adriano Silva

Diretoria Técnica Gerência de Controle de Perdas e Sistemas

Criminalidade. Luciano Nakabashi Juliano Condi

ESTUDO TEMÁTICO SOBRE O PERFIL DOS BENEFICIÁRIOS DO PROGRAMA CAPACITAÇÃO OCUPACIONAL NO MUNICÍPIO DE OSASCO

NARRATIVA DO MONITOR DAS SECAS DO MÊS DE JUNHO DE 2015

CAPACITAÇÃO PARA IMPLANTAÇÃO DE CADASTRO TÉCNICO MULTIFINALITÁRIO EM MUNICÍPIOS DA PARAÍBA

Casos autóctones de esquistossomose mansônica em crianças de Recife, PE

SITUAÇÃO DOS ODM NOS MUNICÍPIOS

Plano de Monitoramento dos Impactos Sociais do Projeto de Carbono no Corredor de Biodiversidade Emas-Taquari

MINISTERIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO

ÍNDICE DE BEM-ESTAR URBANO DA REGIÃO METROPOLITANA DE FLORIANÓPOLIS

AVALIAÇÃO DO PROJETO PEDAGÓGICO-CURRICULAR, ORGANIZAÇÃO ESCOLAR E DOS PLANOS DE ENSINO 1

Universidade Federal da Paraíba Centro de Ciências Exatas e da Natureza Departamento de Geociências

MS divulga retrato do comportamento sexual do brasileiro

História da Habitação em Florianópolis

A situação do câncer no Brasil 1

Programa Consumo Responsável. Julho 2015

Município de Além Paraíba. 1. Aspectos Gerais

INFLUÊNCIA DO LANÇAMENTO DE ESGOTO ORGÂNICO NAS CARACTERÍSTICAS LIMNOLÓGICAS DE CÓRREGOS AFLUENTES DO RIO CAMANDOCAIA, AMPARO/SP ETAPA II

Analise este mapa topográfico, em que está representada uma paisagem serrana de Minas Gerais:

INDICADORES DE SUSTENTABILIDADE PARA O ENFRENTAMENTO DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS EM ÁREAS URBANAS: UM ESTUDO DE CASO NO MUNICÍPIO DE BELÉM, PARÁ, BRASIL

. a d iza r to u a ia p ó C II

PROTOCOLO PARA INVESTIGAÇÃO DE SURTOS

RESUMEN. Palavras-chave: turismo, projetos de extensão, aplicabilidade

USINA HIDRELÉTRICA SANTO ANTÔNIO

Daniela Campioto Cyrilo Lima*, Emanuela Matos Granja*, Fabio Giordano **

O ENFERMEIRO NO GERENCIAMENTO DOS RESÍDUOS NOS SERVICOS DE SAÚDE*

URBANIZAÇÃO LUGAR É A BASE

Notas técnicas. Objetivo

Boletim Goiano de Geografia E-ISSN: Universidade Federal de Goiás Brasil

A Sustentabilidade e a Inovação na formação dos Engenheiros Brasileiros. Prof.Dr. Marco Antônio Dias CEETEPS

CURSO DE ENFERMAGEM Reconhecido pela Portaria nº 270 de 13/12/12 DOU Nº 242 de 17/12/12 Seção 1. Pág. 20

#10 PRODUZIR CONTEÚDO SUPER DICAS ATRATIVO DE PARA COMEÇAR A

CADASTRO DE LOCALIDADES SELECIONADAS

CONSELHO MUNICIPAL DO IDOSO DE SALTO

Escola Secundária Mouzinho da Silveira Departamento de Ciências Sociais e Humanas Grupo de Recrutamento 420 Ano Letivo de 2014 / 2015 Curso Básico

DIAGNÓSTICO DA DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DO TERCEIRO SETOR EM BELO HORIZONTE 2006

PDR - Critério de classificação de microrregiões

Entender os fatores que determinam o sucesso ou o fracasso de uma empresa não é tarefa simples.

Entender os fatores que determinam o sucesso ou o fracasso de uma empresa não é tarefa simples.

Tabela 1. Tema Dado Atributo Fonte

Transcrição:

ARTIGO ARTICLE 409 Análise espacial dos focos de Biomphalaria glabrata e de casos humanos de esquistossomose mansônica em Porto de Galinhas, Pernambuco, Brasil, no ano 2000 Spatial analysis of Biomphalaria glabrata foci and human cases of mansoni schistosomiasis in Porto de Galinhas, Pernambuco State, Brazil, in the year 2000 Karina Conceição Gomes Machado Araújo 1 Ana Paula da Costa Resendes 2 Reinaldo Souza-Santos 2 José Constantino Silveira Júnior 1 Constança Simões Barbosa 1 Abstract Introdução 1 Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, Brasil. 2 Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. Correspondência K. C. G. M. Araújo Departamento de Parasitologia, Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Moraes Rego s/n, C. P. 7472, Recife, PE 50670-420, Brasil. karina@cpqam.fiocruz.br This article provides information on the spatial distribution of schistosomiasis, correlating snail foci with human cases using spatial analysis. The locations studied were Merepe III, Pantanal, Salinas, and Socó, comprising 70% of the populated area of Porto de Galinhas. Malacological and parasitological surveys by a CPqAM/ FIOCRUZ team at the location where an epidemic occurred in 2000 identified 15 foci of infected B. glabrata. Human cases were also diagnosed and recorded according to residential block. Spatial analysis was performed using the TerraView computer program and Kernel intensity estimation. Total infection rates, considering all collection stations marked out per location, varied from 15% to 32.4%. The 15 infected B. glabrata foci included 9 in Merepe, 2 in Socó, 3 in Salinas, and 1 in Pantanal. The results suggest a strong spatial trend in the risk of schistosomiais transmission in Salinas and Socó. In Merepe, with the most foci and where foci were closer together, individual focal infection rates were lower. Spatial analysis thus showed less concentration of risk as compared to other locations studied. As for human cases, two high-intensity areas were observed, shown on the map in darker colors. Spatial Analysis; Schistosomiasis; Biomphalaria A esquistossomose mansônica é uma doença infecciosa, de caráter crônico ou agudo, endêmica em vários Estados do Brasil. Sua ocorrência está intimamente relacionada a precárias condições sócio-ambientais e as maiores prevalências em humanos encontram-se no Nordeste. Em Pernambuco, a doença é historicamente endêmica na Zona da Mata, porém a recente notificação de casos de esquistossomose aguda e de focos de vetores da doença no litoral desse estado aponta para uma expansão da endemia com mudanças no seu perfil clínico-epidemiológico. Esses casos ressaltam a importância do peridomicílio na transmissão da doença, já que a maioria dos focos tem localização peri ou intradomiciliar. O padrão de distribuição espacial desses focos indica que a dinâmica de transmissão não pode ser analisada apenas a partir da distribuição dos vetores, sendo necessário situar os focos no contexto epidemiológico onde estão inseridos, ressaltando a importância da produção social do espaço onde a transmissão se materializa 1,2,3,4. Em 2000, chuvas torrenciais provocaram um surto de esquistossomose na Praia de Porto de Galinhas, com registro de 662 casos da doença, sendo 62% de casos agudos. A enchente propiciou o carreamento dos moluscos, antes restritos aos focos peridomiciliares, para ruas e residências, provocando infecção humana em massa 2. O vetor responsável pela transmissão foi o caramujo

410 Araújo KCGM et al. Biomphalaria glabrata, característico das áreas litorâneas do Estado de Pernambuco. Inquérito malacológico realizado no local evidenciou que os caramujos foram introduzidos em Porto por intermédio da importação de areias de rios de áreas endêmicas para aterramento de quintais. A infecção dos moluscos se deu em virtude de vazamentos de fossas com fezes de indivíduos parasitados, e a enchente encarregou-se de espalhar os caramujos infectados 2. Na situação anteriormente descrita, as modificações ambientais foram fundamentais para a ocorrência da esquistossomose. O conhecimento da variação espacial e temporal da incidência da doença, aliado às situações ambientais, é importante para o planejamento de ações de prevenção e controle 5. O panorama geral das condições ambientais e de saúde da população pode ser evidenciado por meio de mapas que permitam observar a distribuição espacial de situações de risco e dos problemas de saúde 6. A comparação das taxas dos agravos em saúde em diferentes lócus pode ajudar na elaboração de hipóteses causais; os padrões espaciais são indicadores da estrutura demográfica e social e de como a população interage consigo mesma e com o ambiente 7, ainda que a distribuição espacial, por si só, não traga comprovações de natureza etiológica 8. Atualmente, poucas melhorias ambientais ou de saneamento têm sido realizadas no distrito de Porto de Galinhas a fim de minimizar a transmissão da esquistossomose, ainda hoje restrita aos focos peridomiciliares. Portanto, diante da ocorrência de chuvas fortes, poderá haver novo surto da doença. O objetivo do presente artigo é mostrar a distribuição espacial desse evento epidemiológico correlacionando focos de caramujos com os casos humanos, através de análise espacial. Metodologia O distrito de Porto de Galinhas está situado no Município de Ipojuca (Estado de Pernambuco, Brasil) e abriga algumas das mais belas praias do estado. É hoje um dos maiores pólos turísticos da costa brasileira, de modo que a ocupação dos hotéis chega a 92% durante todo o ano, recebendo em média seis mil turistas por mês. Apresenta um contigente populacional fixo e uma população flutuante com características sócio-econômicas diversificadas. É composto pelas localidades de Merepe I, Merepe II, Merepe III, Vila do Porto, Salinas, Pantanal e Socó. O Município de Ipojuca, situado na região metropolitana do Recife, tem área territorial de 507km2 e clima tropical de planície. Com cerca de 60 mil habitantes, o município não dispõe de rede de saneamento em nenhum dos seus quatro distritos (Nossa Senhora do Ó, Camela, Porto de Galinhas e Distrito Sede de Ipojuca). O sistema de distribuição de água encanada serve a todos os distritos, com exceção de Porto de Galinhas (Documentos da Prefeitura de Ipojuca). Dados da FIDEM (Fundação de Desenvolvimento Metropolitano) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) retratam que, no ano 2000, 47,6% dos domicílios não recebiam abastecimento sistemático de água, 72,2% não apresentavam rede pública de esgotamento sanitário e 28,4% não dispunham de coleta regular de lixo. As localidades desse estudo foram aquelas onde se verificou a epidemia de esquistossomose em 2000: Merepe III, Pantanal, Salinas e Socó, as quais representam 70% da área habitada de Porto de Galinhas (Figura 1). Nos inquéritos malacológico e parasitológico, realizados durante o evento, foram identificados 15 focos do vetor B. glabrata e os casos humanos foram diagnosticados e registrados por quarteirão de residência 2. Foi calculada a taxa de infecção dos caramujos dividindo-se o número de caramujos positivos para Schistosoma mansoni pelo número total de caramujos coletados em cada foco. A malha digital de Porto de Galinhas com a divisão dos quarteirões foi adquirida na FIDEM. A análise espacial foi realizada no programa TerraView (http://www.dpi.inpe.br/terraview/ index.php), utilizando-se o estimador de intensidade kernel, o qual permite estimar a quantidade de eventos por unidade de área em cada célula de uma grade regular que recobre a região estudada 9. O kernel é técnica não paramétrica que promove o alisamento ou suavização estatística, o que permite filtrar a variabilidade de um conjunto de dados, retendo as características essenciais dos locais 9. O grau de alisamento é controlado mediante a escolha de um parâmetro conhecido como largura da banda, que indica a área a ser considerada no cálculo e deve refletir a escala geográfica da hipótese de interesse, assim como o conhecimento prévio sobre o evento estudado 10. Em nossa análise, utilizou-se a largura de banda de 200 metros para o kernel de casos humanos e 230 metros para o kernel de focos de B. glabrata. A função de suavização usada foi a quártica. O kernel da taxa de infecção de caramujos foi calculado levando-se em consideração as coordenadas geográficas de cada foco; o kernel do número de indivíduos humanos positivos para esquistossomose foi calculado levando-se em consideração o centróide do quarteirão de residência.

9060300 ANALISE ESPACIAL DOS FOCOS DE Biomphalaria glabrata 411 Figura 1 Localidades de Porto de Galinhas, Pernambuco, Brasil: Merepe III, Pantanal, Salinas e Socó. 278100 279000 279900 Área de estudos em Porto de Galinhas Município de Ipojuca 9061200 9059400 9060300 Merepe III Praia de Porto de Galinhas Oceano Atlântico 9061200 9059400 Salinas N W E Socó S Pantanal 278100 279000 279900 Pernambuco 500 0 500 1.000 Metros

412 Araújo KCGM et al. O uso de análise espacial, no caso o kernel, para o estudo dessa epidemia mostra a distribuição e um gradiente de intensidade tanto das taxas de infecção, quanto dos casos humanos. A análise desses dois resultados evidencia que as áreas mais quentes ou com maior intensidade para a taxa de infecção do molusco não são as mesmas com maior intensidade dos casos humanos. Contudo, percebe-se sobreposição parcial das áreas consideradas como moderadas para infecção do vetor às áreas com maior intensidade de casos humanos. É importante ressaltar que os resultados apresentados aqui mostram um retrato de uma estimativa em um determinado momento. A interpretação de resultados de kernel deve ser feita com cautela, dependendo de conhecimentos técnicos acerca da dinâmica da doença naquele momento e no local de ocorrência, sempre levando em consideração as possíveis relações espaciais. No caso da esquistossomose em Porto de Galinhas, é sabido que toda a área tornou-se um grande alagado, o que justifica a utilização do kernel como método de análise de superfície contínua 10. Porém, infelizmente, não temos conhecimento de como se deu a circulação humana no momento da enchente e que impacto essa circulação teve na dinâmica da doença na população humana. Resultados A Tabela 1 mostra os resultados do inquérito malacológico realizado em 2000. Em todas as 15 estações de coleta, evidenciaram-se focos de transmissão de B. glabrata, correspondendo a nove em Merepe, dois em Socó, três em Salinas e um em Pantanal. A quantidade de moluscos coletados em cada um dos focos identificados nas quatro localidades foi variável, sendo maior em Merepe. Nessa região, em um dos focos, foram coletados 1.200 caramujos, com 171 exemplares positivos para S. mansoni; a taxa de infecção focal foi de 14,3%. Por outro lado, a menor abundância de moluscos por foco também foi em Merepe, com 25 caramujos coletados e taxa de infecção focal de 4%. A distribuição espacial da intensidade da taxa de infecção de caramujos por S. mansoni, obtida por meio do kernel quártico, mostra risco de transmissão em todas as localidades estudadas (Figura 2), uma vez que a existência de moluscos positivos consiste em fator de risco para esquistossomose. No entanto, os resultados da análise apontam a existência de duas áreas principais de risco: a primeira, que possui maior intensidade, encontra-se em Salinas e a segunda, na área central de Merepe. Entre a área de maior risco identificada em Salinas e o foco de Pantanal, que apresentou maior taxa de infecção, passando pela área sul de Socó, verificamos um corredor de risco moderado. Deve-se ressaltar que, apesar de o mapa mostrar um padrão espacial distinto entre as localidades, representado pela variação das taxas de infecção dos focos, percebe-se um risco potencial de transmissão da esquistossomose mansônica em todas elas. A distribuição espacial que relaciona a intensidade de casos humanos à presença de focos de vetores de S. mansoni pode ser observada na Figura 3, não se evidenciando uma sobreposição das áreas mais intensas de casos humanos à localização pontual dos focos dos vetores. Através do estimador de intensidade de kernel, é possível notar duas áreas de grande concentração de casos humanos representadas pelas localidades Merepe, ao norte, e Pantanal e Socó, ao sul, em que os aglomerados de maiores intensidades são representados por tons mais escuros. Apesar disso, praticamente toda a área analisada de Porto de Galinhas apresenta intensidade baixa para casos humanos. Em Merepe, observa-se a área central com intensidade moderada para casos humanos, praticamente a mesma área que foi identificada com grande intensidade para taxa de infecção dos vetores. No caso de Pantanal, observa-se que parte da área com intensidade moderada de casos humanos sobrepõe-se à parte do corredor de área moderada para taxa de infecção do vetor (Figura 2). Discussão Vários fatores estão relacionados à ocorrência da infecção esquistossomótica, entre eles o tempo de exposição e a gradação do contato humano com águas contaminadas. Este último é, sem dúvida, o fator mais complexo, com maior variabilidade, difícil de ser avaliado, que apresenta a explicação para as diferenças de padrão epidemiológico entre grupos populacionais infectados. Diferentes maneiras de inter-relacionamento com as coleções hídricas determinarão diferentes padrões epidemiológicos de contágio e transmissão 11. De acordo com Abath et al. 12, fatores como a freqüência de exposição, genética do hospedeiro, infecções concomitantes, virulência da cepa do S. mansoni e estado nutricional dos indivíduos infectados devem ser considerados na susceptibilidade do indivíduo à infecção. O inquérito epidemiológico realizado em Porto de Galinhas 2 levantou dados malacológicos, parasitológicos e ambientais nas localidades acometidas pela epidemia. Os recursos da análi-

ANALISE ESPACIAL DOS FOCOS DE Biomphalaria glabrata 413 Tabela 1 Taxas de infecção dos focos de vetores de Schistosoma mansoni em localidades de Porto de Galinhas, Pernambuco, Brasil, no período pós-inverno do ano 2000. Caramujos Caramujos Caramujos positivos Localidade Foco coletados positivos por S. mansoni (%) Merepe MP1 71 9 12,7 MP2 193 37 19,2 MP3 1.200 171 14,3 MP4 203 41 20,2 MP5 25 1 4,0 MP6 33 2 6,1 MP7 56 11 19,6 MP8 121 16 13,2 MP9 42 3 7,1 Total 1.944 291 15,0 Socó SC1 42 6 14,3 SC2 29 9 31,0 Total 71 15 21,1 Salinas SL1 78 17 21,8 SL2 53 13 24,5 SL3 31 9 29,0 Total 162 39 24,1 Pantanal PT1 37 12 32,4 MP = Merepe; SC = Socó; SL = Salinas; PT = Pantanal. se espacial reavaliaram esses dados, construindo novas informações e permitindo a reinterpretação do evento, o que confirma a importância do uso do geoprocessamento na área da saúde 13. As localidades de Socó e Pantanal, incluídas no corredor de intensidade moderada para a taxa de infecção do vetor, são áreas marginais e favelizadas, ocupadas por indivíduos oriundos de ambientes rurais, talvez com infecção esquistossomótica prévia. As águas servidas são despejadas em valas cavadas ao lado das residências, formando uma rede de esgotos a céu aberto. Os caramujos vetores, acidentalmente introduzidos nessas valas, são alimentados e infectados pelos dejetos aí lançados, formando-se assim os focos peridomiciliares. Até a enchente de 2000, a exposição de adultos e crianças a esses canais de esgotamento sanitário não devia ser muito intensa, pois o aspecto e o odor fétido limitavam os contatos e regulavam a transmissão. A análise dos dados do inquérito malacológico realizado após a enchente informa que os vetores com taxas de infecção mais elevadas foram aqueles encontrados em Socó e Pantanal (21,1% e 32,4%, respectivamente), tendo o inquérito parasitológico juntamente com o exame clínico identificado 59,7% de casos humanos crônicos e 56,4% de casos agudos de esquistossomose nessas localidades. Esses achados indicam que mais da metade dos indivíduos já havia tido contato com a doença antes da enchente, por serem oriundos de áreas rurais ou por terem se infectado nos focos peridomiciliares ali criados. Na localidade de Merepe, foi detectado o maior número de casos agudos de esquistossomose (72,1%) e também a maior intensidade da infecção humana (avaliada pelas cargas parasitárias dos indivíduos), indicando que essa população era mais suscetível ao parasito e ficou mais tempo exposta às águas infectadas por ocasião das cheias provocadas pelas fortes chuvas do ano 2000. A maioria dos residentes da região é de classe média (artesãos, donos de pousadas e restaurantes), e as casas são de alvenaria com sistema fechado de fossas. Relatos dos moradores informam que, antes da enchente, não havia caramujos vetores da esquistossomose em Merepe; estes teriam sido levados até ali pelas chuvas e, após a estiagem, adaptaram-se aos quintais alagadiços ali existentes, onde podem ser encontrados até hoje. Apesar de o resultado do kernel da taxa de infecção do vetor ter evidenciado apenas uma pequena área com grande intensidade em Merepe, praticamente toda essa localidade foi considerada área moderada, o que reforça os comentários anteriores.

414 Araújo KCGM et al. Figura 2 Análise espacial (kernel) da taxa de infecção dos focos de caramujos vetores da esquistossomose em Porto de Galinhas, Pernambuco, Brasil, 2000. 035:0:50.0 035:0:35.0 035:0:20.0 58:30:0.0 MP1 MP2 MP3 MP4 MP5 MP6 MP7 MP8 MP9 58:30:15.0 SL1 SL2 SC1 SL3 Intensidade (kernel) Menor SC2 58:30:30.0 PT1 Maior 0 100 200 300 Metros MP = Merepe; SL = Salinas; SC = Socó; PT = Pantanal.

ANALISE ESPACIAL DOS FOCOS DE Biomphalaria glabrata 415 Figura 3 Análise espacial (kernel) dos casos humanos de esquistossomose e distribuição dos focos de vetores em Porto de Galinhas, Pernambuco, Brasil, 2000. 035:0:50.0 035:0:35.0 035:0:20.0 MP1 58:30:0.0 MP2 MP3 MP4 MP5 MP6 MP7 MP8 MP9 58:30:15.0 SL1 SL2 SC1 SL3 Intensidade (kernel) Menor SC2 58:30:30.0 PT1 Maior 0 100 200 300 Metros MP = Merepe; SL = Salinas; SC = Socó; PT = Pantanal.

416 Araújo KCGM et al. Como não existe nenhum ambiente dulciaqüícola em Porto de Galinhas (a foz do rio Ipojuca, que margeia a cidade, é totalmente salinizada), é provável que a hipótese dos residentes de Merepe seja plausível e que os caramujos infectados tenham sido arrastados das valas de Socó e Pantanal pelas correntezas formadas pelas fortes chuvas chegando até Merepe. Esses fatores e condições ambientais, como o precário abastecimento sistemático de água e muitos domicílios sem rede pública de esgotamento sanitário, permitiram a exposição dos moradores de Merepe às águas infectadas durante uma semana, propiciando a infecção em massa nos residentes daquela localidade. Posteriormente, os caramujos ali introduzidos colonizaram o ambiente. Os resultados espaciais através da análise de kernel mostram um cenário relativo à transmissão da doença. Todavia, a interpretação desses resultados só foi possível graças à investigação epidemiológica realizada na ocasião do evento, a qual rastreou a origem e distribuição dos vetores nas áreas de estudo; identificou casos humanos agudos e crônicos e formulou hipóteses de transmissão e causalidade sobre a ocorrência desta epidemia de esquistossomose. De acordo com Monken & Barcellos 14, os resultados obtidos com base nas técnicas de geoprocessamento não trazem, isoladamente, respostas para as questões levantadas, sendo necessária a investigação de outras informações para a interpretação dos achados. Dessa forma, o presente artigo destaca a importância dos estudos em nível local para a compreensão dos processos que resultam em agravos para a saúde. Deve-se aliar o conhecimento gerado pela investigação aos modernos instrumentos de análise epidemiológica, com o intuito de elucidar as questões ambientais, ecológicas e comportamentais envolvidas na dinâmica de transmissão das doenças endêmicas. Resumo O presente artigo mostra a distribuição espacial da esquistossomose, correlacionando focos de caramujos com os casos humanos, por meio de análise espacial. As localidades estudadas foram Merepe III, Pantanal, Salinas e Socó, que representam 70% da área habitada de Porto de Galinhas. No inquérito realizado em 2000, foram identificados 15 focos do vetor Biomphalaria glabrata; os casos humanos foram diagnosticados e registrados por quarteirão de residência. A análise espacial foi realizada no programa TerraView, utilizando-se o estimador de intensidade kernel. Com relação aos focos de moluscos vetores, as taxas de infecção total variaram entre 15% e 32,4%. Os resultados da análise indicam a existência de uma forte tendência espacial para o risco de transmissão nas localidades de Salinas e Socó. Em Merepe, ocorreu o maior número de focos, mas as taxas de infecção dos moluscos foram as mais baixas e a análise espacial evidenciou menor concentração de risco em relação às outras localidades estudadas. Com relação aos casos humanos, observaram-se duas áreas em que os aglomerados de maior intensidade são representados por tons mais escuros. Colaboradores Todos os autores participaram da elaboração do artigo, análise e interpretação dos dados, além de lerem e aprovarem a versão final. Agradecimentos Ao pesquisador Wayner Vieira de Souza, do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz (CPqAM/FIOCRUZ) pela revisão do artigo quanto à análise espacial. À equipe do Serviço de Referência em Esquistossomose do CPqAM/FIOCRUZ, pelo apoio prestado nas atividades de campo. Em especial, à Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, pelo financiamento da pesquisa. Análise Espacial; Esquistossomose; Biomphalaria

ANALISE ESPACIAL DOS FOCOS DE Biomphalaria glabrata 417 Referências 1. Barbosa CS, Gonçalves JF, Albuquerque Y, Barbosa FS. Urban schistosomiasis in Itamaracá island, Brasil: epidemiological factors involved in the recent endemic process. Mem Inst Oswaldo Cruz 1998; 93:265-6. 2. Barbosa CS, Coutinho AL, Montenegro SML, Abath, F, Spinelli V. Epidemia de esquistossomose aguda na praia de Porto de Galinhas, Pernambuco. Cad Saúde Pública 2001; 17:725-8. 3. Barbosa CS, Montenegro SML, Abath FG, Domingues ALC. Eventos epidemiológicos relacionados à transmissão da esquistossomose em áreas rurais e urbanas de Pernambuco. Mem Inst Oswaldo Cruz 2002; 96:169-72. 4. Barbosa CS, Araujo KC, Antunes L, Favre TC, Pieri OS. Spatial distribution of schistosomiasis foci in Itamaracá Island, Pernambuco, Brasil. Mem Inst Oswaldo Cruz 2004; 99:79-83. 5. Medronho RA. Geoprocessamento e saúde: uma nova abordagem do espaço no processo saúdedoença. Rio de Janeiro: Núcleo de Estudos em Ciência e Tecnologia, Fundação Oswaldo Cruz; 1995. 6. Carvalho MS, Pina MF, Santos SM. Conceitos básicos de sistemas de informação geográfica e cartografia aplicados à saúde. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde/Ministério da Saúde; 2000. 7. Mayer JD. The role of spatial analysis and geographic data in the detection of disease causation. Soc Sci Med 1983; 17:1213-21. 8. Rothman KJ. A sobering start for the cluster busters conference. Am J Epidem 1990; 132 Suppl: 6-13. 9. Bailey TC, Gatrell AC. Interactive spatial data analysis. Harlow: Longman; 1995. 10. Souza-Santos R, Carvalho MS. Análise da distribuição espacial de larvas de Aedes aegypti na Ilha do Governador, Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública 2000; 16:31-42. 11. Kloetzel K. Reinfection after treatment of schistosomiasis environment or predisposition? Rev Inst Med Trop São Paulo 1990; 32:138-46. 12. Abath FGC, Morais CNL, Montenegro CEL, Wynn TA, Montenegro SML. Immunopathogenic mechanisms in schistosomiasis: what can be learnt from human studies? Parasitology 2006; 22:85-91. 13. Carvalho MS, Souza-Santos R. Análise de dados espaciais em saúde pública: métodos, problemas, perspectivas. Cad Saúde Pública 2005; 21:361-78. 14. Monken M, Barcellos C. Vigilância em saúde e território utilizado: possibilidades teóricas e metodológicas. Cad Saúde Pública 2005; 21:898-906. Recebido em 10/Fev/2006 Versão final reapresentada em 13/Jun/2006 Aprovado em 22/Jun/2006