O CASO E. Eu não consigo nem fazer um dia inteiro... Apresentação de pacientes passagem ao ato clínica lacaniana psicose ordinária



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ALEGRIA ALEGRIA:... TATY:...

Transcrição:

O CASO E. Eu não consigo nem fazer um dia inteiro... Apresentação de pacientes passagem ao ato clínica lacaniana psicose ordinária Carmen Silvia Cervelatti A construção deste caso foi provocada por uma apresentação de pacientes, feita por Sandra Grostein no Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo, em atividade conjunta com a Seção Clínica da CLIPP Clínica lacaniana de atendimento e pesquisas em psicanálise. Posteriormente, na discussão do caso, trabalhamos principalmente a questão do diagnóstico, associada à passagem ao ato. Este trabalho também inclui, além da entrevista e da discussão do caso, as primeiras entrevistas preliminares, pois a paciente foi encaminhada pelo Hospital para ser atendida por uma psicanalista da Seção Clínica 1, Perpétua Medrado Gonçalves. Este texto foi elaborado a partir das discussões deste caso no Núcleo de Pesquisas da Seção Clínica. Estou chegando no limite E. tem 26 anos, é funcionária pública e estava de licença médica na ocasião da entrevista de Apresentação de pacientes. Foi internada meses antes e depois era atendida semanalmente no ambulatório do Hospital. Anos antes houve outra internação, as duas por tentativa de suicídio. No início da entrevista disse se sentir diferente das outras pessoas, achava difícil ao namorado agüentar a labilidade de seus estados: cada hora eu tô de um jeito. Falo muito, choro muito. É um excesso. Com o decorrer da entrevista ficou evidenciada a possibilidade de uma nova passagem ao ato: nas duas vezes eu cheguei no limite, estou chegando de novo. Questionada sobre o que era chegar ao limite, respondeu de algumas maneiras: - chega uma hora que os pensamentos tomam conta... começa a fazer parte dos meus dias, dos meus minutos, extremamente 1 A Seção Clínica da CLIPP é constituída por uma rede de psicanalistas que atende todos os pacientes que a procuram, dando preferência aos de baixa renda, encaminhados por instituições públicas. Possui as atividades de Apresentação de Pacientes, Discussão dos casos da Apresentação de Pacientes, Discussão clínica de casos e Discussão teórica sobre a clínica. Além disso, conta com um Núcleo de Pesquisas, coordenado por Carmen Silvia Cervelatti, que acolhe as questões dos participantes, referentes à clínica psicanalítica de orientação lacaniana.

obsessivo... Arrumar a casa, sair de casa para mim é horrível... No trabalho ficava horas me perguntando porque tinha que fazer naquela seqüência, e não fazia. Às vezes a minha diretora dava um grito comigo ou pedia para eu fazer outra coisa e aí eu saia daquilo. - é desistir, desistir de tentar, desistir de fazer esforço... Por isso acho que o único jeito é morrendo... não tem escapatória. O encontro com a psicanálise É como se estivesse tudo classificado em frases... que não são minhas... que eu escutei... Não é loucura... são frases que eu escutei. São frases que ficam em sua cabeça e reaparecem insistentemente e o modo como funcionam acabaram por conduzi-la à passagem ao ato. A psiquiatra do Hospital pediu que escrevesse uma frase para cada dia. Nesta entrevista, a paciente mostrou como sua vida consistia numa série de fracassos, impotências e desistências. Consideramos que a inserção do pedido da psiquiatra no decorrer de sua fala, ao mesmo tempo quer dizer do sintoma e aponta a um espaço de construção possível, quando analisamos a entrevista como um todo. Para introduzir a direção do tratamento e a questão central deste trabalho, reproduzimos aqui o comentário de Yasmine Grasser 2 na Convenção de Antibes: o analista deve restituir ao psicótico a lógica de sua invenção, o que alarga um pouco o circuito, evita-lhe as passagens ao ato e permite-lhe entrar finalmente num laço social. Ao final da entrevista, depois de escutar a paciente e a maneira como ordenou seu discurso, a analista da Apresentação de pacientes lhe propôs a construção de estórias com as frases, apropriando-se delas. Foi uma aposta: ao escrever, ao dar um sentido ao que está solto, encadeando frases em uma estória, poderia aparecer algo de simbólico e de particular desse sujeito. Acreditamos que esta proposta acarretou efeitos que se mostraram importantes frente à possibilidade da passagem ao ato. Primeiramente, a paciente prontamente acolheu o encaminhamento para a CLIPP. Na primeira entrevista, agora com a analista da Seção Clínica, ela comenta que há momentos em que está bem, e em outros não. Tem dia que funciono bem e em outros não. Cada vez me dão um diagnóstico, nesses quatro anos que faço tratamento (inclusive psicoterapias). O Dr. A. disse que a suspeita diagnóstica é de Distúrbio do Humor e da Afetividade. No mesmo dia me sinto alegre e triste. Mas não me encaixo no diagnóstico de PMD. A paciente tinha crises de choro, chorava muito e vomitava, tanto em casa como no trabalho. A gota d água foi que emprestei o carro para o cunhado e ele capotou. 2 MILLER, J.-A. [et al.]. La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós, 2003, p. 310.

Me senti responsável. Meu pai fala que arma e carro não se empresta, mata. Depois de algumas entrevistas, E. chegou ao consultório com a mãe e um papel contendo uma lista de prioridades acrescida de ações, por sinal bastante lógicas, que deveria empreender para solucionar seus problemas e dificuldades de organizar-se na vida. Entregou o papel à analista e pediu para incluir a mãe nas suas sessões. A analista acolheu sua demanda e a paciente confessou uma mentira: que estava junto no acidente ocorrido com o cunhado. Ao agir desta maneira, ela havia desobedecido ao dito do pai: carro é uma arma, não se empresta. É importante salientar que para E. os ditos do pai têm valor de verdade toda 3, dentre eles destacamos: Você não pode andar com as próprias pernas; O que ela tem é PMD, igual à avó; Ela não vai terminar a faculdade, etc. Ela disse: Eu tenho um problema muito sério com o meu pai, o que ele fala eu não consigo afastar de mim... o que as outras pessoas falam também, mas o que ele fala machuca. Ela não consegue se livrar das sentenças e a pessoa do pai é uma presença constante. Muitas das coisas que fez ou tentou fazer foram ora para afirmar, ora para denegar suas frases, modo este característico da neurose histérica; porém são frases-mandamento, mostram-se absolutamente verdadeiras, dizem o que ela é mas não funcionam como significante-mestre. Pendurada no Outro Na clínica borromeana, do Outro que não existe, nem sempre se consegue um sim ou não para a psicose ou para a neurose, as classes são contínuas, prevalecendo o mais ou menos 4. Nos defrontamos com pacientes nos quais localizamos algo de psicótico, ora parecem neuróticos e ora parecem psicóticos, assim se apresentam os casos de psicoses ordinárias, tal qual propomos o diagnóstico de E.. Há um Outro constituído em muitas situações de sua vida, contudo acaba por mostrar-se insuficiente. No momento mesmo da passagem ao ato há uma exclusão, um corte radical do Outro, diferentemente do actingout. O ato, para Lacan, está no lugar de um dizer e na passagem ao ato se abandonam os equívocos do pensamento, da palavra e da linguagem pelo ato, assim como a toda dialética de reconhecimento; 3 Cf Miller, J.-A. Produzir o sujeito? in Matemas 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 158: Enquanto resposta do real um dito pelo qual o sujeito se deduz -, o dito no sujeito psicótico tem a característica de dizer a verdade toda, ou seja, um-saber cuja única saída é retomá-lo para si. 4 Cf Miller, J.-A in MILLER, J.-A. [et al.]. La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós, 2003, p. 202.

cria uma situação sem saída a respeito do Outro. [...] No coração de qualquer ato há um não!. Um não proferido ao Outro. 5 A favor do diagnóstico de E. como um caso inclassificável ou de psicose ordinária, acrescentamos a não identificação de um momento em sua vida que instituísse um antes e um depois, como acontece no desencadeamento. Trata-se muito mais de enganche-desenganche do Outro. Quanto aos casos inclassificáveis: Ficar pendurado no Outro é suficiente para lhes permitir identificações aos modelos sociais que dependem do funcionamento edipiano. Isto porém não basta para justificar uma neurose e por isso é útil prender-se aos ínfimos detalhes clínicos que podem chamar a atenção para o lado da psicose. Esses detalhes não concernem os distúrbios de linguagem, mas os efeitos clínicos a mínima de algo destoante na amarração RSI 6. As crises, que culminaram em tentativa de suicídio e internação, aconteceram num movimento constante e crescente, paralisando-a, deixando-a só com seus pensamentos, obsessivamente com as frases, a mercê da angústia. Frente à paralisia, uma ação impulsiva é praticada como tentativa extrema para sair das garras do imperativo do pensar. Ela se desorganiza nas tarefas cotidianas (no trabalho, na casa, na higiene). Por vezes, uma atitude ou outra cumpre a função de estabelecer um certo limite, como o grito de sua Diretora, por exemplo; porém, a eficácia dura pouco, denotando uma dificuldade de algo funcionar verdadeiramente como um ponto de basta, evidência de uma debilidade na estrutura. O único limite está na tentativa de suicídio: nas duas vezes eu cheguei no limite, o único jeito é morrendo. Também buscou apoios: nos ditos do pai, na faculdade, no trabalho, na mãe, no namorado e numa empregada; abandonando-os em seguida, sempre com a frase Como uma moça de vinte e seis anos precisa de muleta?. O escrito de suas prioridades, que ela entregou à analista, mostra a necessidade da materialidade, da concretude. Nos momentos fora das crises, ela assume tarefas no cotidiano, se relaciona com as pessoas como todo mundo faz. Há algum limite, há alguma barreira ao gozo devastador mas parece não possuir valor fálico, pois se perde, é provisório. Se nada a protege, tem que ser concreto, tem que ser da ordem da coisa mesma e do agir, não do simbólico. Sua demanda de alívio de sofrimento residiu em conseguir fazer um dia inteiro: eu não consigo fazer nem um dia inteiro, quanto mais uma faculdade [veja o dito do pai]. Por vezes, atividades simples do cotidiano são fonte de grande sofrimento: De porque em porque, eu não saio do lugar. Por exemplo, às vezes eu não conseguia tomar banho porque ficava perguntando porque eu ia tomar 5 MILLER, J.-A. Jacques Lacan: observaciones sobre su concepto de pasaje al acto, in Infortunios del acto analítico. Buenos Aires: Atuel, 1993, p. 47. 6 Forbes, J. (org). Casos raros, inclassificáveis da clínica psicanalítica Conversação de Arcachon, São Paulo: Coleção Biblioteca Freudiana, p. 14.

banho ou ficava descrevendo como seria tomar o banho... 2 horas em pé na porta fazendo nada... Teve uma vez que eu me dispus a fazer um dia inteiro, acordar, lavar louça, o que todo mundo faz. No final do dia, eu estava exausta. Eu chorei muito... sentia dores no corpo todo... dormi 14 horas. [...] É absurdo a energia que gasto nisso. (Entrevista da Apresentação de pacientes) Para aquilo se mostra insuficiente para dar-lhe uma sustentação subjetiva, na ausência de algo efetivo que conserve os três registros enlaçados e faça função de grampo ou fivela, a paciente consegue eleger soluções para seu sofrimento, porém são frouxas - puro exercício racional, do tipo auto-ajuda, que ela colhe no Outro do discurso do senso comum, mas que não faz efeito de parar o automaton de seus pensamentos, o sem-limite. Frente ao todo-dito do pai, ela se confessa e o afirma em sua periculosidade: carro é uma arma. Confessou para duas testemunhas, a mãe e a analista. Ainda mais, consideramos como um momento crucial fazer o pedido para que a mãe entrasse com ela na sessão de análise. Mas será que as duas (mãe e analista) funcionaram como testemunhas? Para quê as duas? Quando a analista docilmente acolheu o pedido: preciso das duas, prestou-se a um uso, qual? Podemos levantar a hipótese de necessitar um acréscimo, mais uma defesa contra as frases-mandamento da pessoa do pai, pois a existência da mãe mostrou-se insuficiente para fazer barreira à relação incestuosa entre a filha e o pai, prevalecendo o funcionamento próprio ao registro do imaginário. Neste registro, a ambigüidade, a hiância da relação imaginária exigem alguma coisa que mantenha relação, função e distância. É o sentido mesmo do complexo de Édipo, [...] quer dizer que a relação imaginária, conflituosa, incestuosa nela mesma, está destinada ao conflito e à ruína. Para que o ser humano possa estabelecer a relação mais natural, aquela do macho com a fêmea, é preciso que intervenha um terceiro, (Um-Pai), a ordem que impede a colisão e o rebentar da situação no conjunto está fundada na existência desse nome do pai. 7 A dificuldade nos cuidados e na integridade do corpo, as dores e o gasto excessivo de energia que aparecem quando o corpo está a serviço da vida, o entregar-se à morte são pontos que localizam transtornos no registro do imaginário. A seqüência: sugestão da escrita de frases em uma estória; indicação para análise pela psiquiatria do Hospital; a escrita das prioridades elegidas para organizar sua vida e a acolhida da demanda de incluir a mãe para confessar resultou numa modificação importante na maneira de conduzir sua vida. Ela conseguiu fazer um dia inteiro e voltou a assumir responsabilidades. Porém, consideramos como um efeito provisório, que afasta a possibilidade de passagem ao ato, como outras vezes mostrou ser. Enfim, um efeito terapêutico? 7 LACAN, J. Seminário 3 As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 114.

Participantes da discussão do caso no Núcleo de Pesquisas da Seção Clínica da CLIPP: Alessandra Fabbri, M. Cecília P. Q. Telles, Célia B. Siqueira, Luciana Carvalho Rabelo, Perpétua Medrado Gonçalves e Yára Valione. Texto apresentado no II Encontro Americano Os resultados terapêuticos da psicanálise novas formas da transferência. Buenos Aires, agosto de 2005.