O processo colaborativo como resultado estético no Projeto DR Projeto DR: The collaborative process as aesthetic result

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Transcrição:

O processo colaborativo como resultado estético no Projeto DR Projeto DR: The collaborative process as aesthetic result Laura Junqueira Bruno mestranda pela ECA USP Resumo Este artigo pretende estabelecer algumas implicações do processo de criação do Projeto DR (projeto de dança contemporânea da cidade de São Paulo) em seus resultados estéticos. DR é um projeto independente co-idealizado por quatro artistas, que desenvolve há cinco anos pesquisas continuadas de linguagem. Tais pesquisas são realizadas de maneira colaborativa pelas integrantes, contando com pontuais colaboradores externos. Esta forma de organização e criação tem gerado formatos cênicos em que a metalinguagem é um dos elementos invariavelmente presentes. O que se propõe demonstrar aqui é a correlação entre este elemento estético e um processo polifônico de composição. Palavras-chave: Estética, Processo, Colaborativo. Abstract This paper intends to establish some implications of the creation process of Projeto DR (contemporary dance project in São Paulo) in their aesthetic results. DR is an independent project co-designed by four artists, that has been developing for five years continuous language research. Such researches are conducted collaboratively by the members, with occasional outside collaborators. This form of organization and creation has generated scenic formats in which metalanguage is invariably present. What is proposed here is to demonstrate the correlation between this aesthetic element and a polyphonic process of composition. Keywords: Aesthetics, Process, Collaborative. Laura Junqueira Bruno é mestranda pela ECA USP, co-idealizadora e performer do Projeto DR e co-idealizadora e pesquisadora do núcleo Tríade. 1

Projeto DR Este texto propõe o enfrentamento de algumas questões abordadas no trabalho artístico do Projeto DR do qual sou co-autora à luz do contato travado com o pensamento de alguns autores dedicados a refletir sobre a cena e os processos de criação contemporâneos. A propósito da reflexão acerca de um trabalho artístico próprio concomitantemente ao desenvolvimento deste encontro ressonância na afirmação de Foucault a respeito dos intelectuais e o poder: o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles, e elas o dizem muito bem. (...) isto é, que a teoria exigia que as pessoas a quem ela concerne falassem por elas próprias (FOUCAULT, 1979: 71). O Projeto DR é um projeto independente co-idealizado pelas artistas de dança Laura Bruno, Mara Guerrero, Sheila Arêas e Tarina Quelho que desenvolve suas pesquisas continuadas de linguagem há cinco anos na cidade de São Paulo. Propõe-se a discutir as relações entre processo criativo e produto artístico, formalização cênica, criação colaborativa, formas de produção e difusão de dança. A problemática central e fundante do Projeto DR é discutir as relações entre processo e produto artístico. Esta discussão já foi abordada de diversas formas ao longo dos cinco anos de existência do Projeto. Na primeira fase, a proposta era realizar em espaços públicos ensaios que já eram performances. discutindo as relações propunha-se a nublar as fronteiras entre o processo de criação e seu resultado cênico. Os ensaios performances foram realizados durante oito meses em cinco espaços: Praça da Sé, Galeria Olido, Casa das Rosas, b_arco e Projeto Aprendiz. Durante esse período, os ensaios performances iam se modificando; a composição tornando-se mais complexa e sendo editada em tempo real. Tudo isso com interrupções próprias de ensaio e interferências do público (e) do ambiente. Ao final de discutindo as relações, concluímos que tínhamos em mãos um material semelhante a partituras coreográficas, que passamos a chamar de mapas para composição. Então partimos para um segundo momento, no qual este material foi compilado, estudado e organizado em uma pesquisa, publicada em um blog e site; http://projetodr.blogspot.com e www.dr.art.br. Cartografia DR gerou, além de uma série de mapas compositivos formatados, a necessidade de que tais mapas fossem experimentados 2

novamente em espaços públicos, como que devolvidos à condição que os originou. A proposta de realizar os mapas em lugares de circulação pública evidenciava uma investigação sobre formas de composição em tempo real. Para ressaltar e dialogar com a execução dos mapas coreográficos, convidamos um músico (Felipe Julián) e um artista visual (Edu Marin Kessedjian) para realizar a mesma proposta nas respectivas linguagens; a execução de mapas sonoros e visuais em tempo real, simultaneamente com os mapas de dança cartografados. Na proposta de DR dança música artes visuais a interferência na composição sofrida pelos mapas sonoros e visuais gerou outro tipo de intervenção, além da nossa própria e do público; uma interferência de artistas com outros pontos de vista e do ponto de vista de outras linguagens. Tal interferência motivou uma nova etapa, na qual artistas foram convidados para intervir em cena nos mapas compositivos cartografados. Esta proposta foi realizada na mostra Emergência do Instituto Itaú Cultural com a intervenção de uma atriz e diretora teatral (Georgette Fadel), dois coreógrafos (Alejandro Ahmed Cena 11 e Cristian Duarte) e um ator e palhaço (Paulo Federal). Neste ponto da pesquisa, voltamo-nos para todo o material produzido até então. Percebemos, nas experiências anteriores, a delineação de um outro formato de apresentação. Neste, as questões relativas ao processo compositivo tornaram-se assuntos formalizados cenicamente; não mais integralmente realizados em tempo real. Neste formato os mapas compositivos transformaram-se em episódios independentes, porém interligados. Pela primeira vez emerge um resultado estético que reconhecemos como espetáculo. Episódico traz para a cena situações de sala de ensaio, tendo o processo de criação como assunto; em uma operação que propõe abordá-los (processo e produto) criticamente. A problematização do formato espetáculo se dá no próprio espetáculo. Em Ensaio esta questão passa a ser percebida como uma crise de forma; no sentido de que a generalização da operação metalingüística parece ser gerada por uma precariedade inerente aos processos de criação. O nome do espetáculo refere-se tanto ao momento que antecede a uma apresentação como ao gênero ensaístico de escritura. A respeito deste, Jorge Larrosa escreveu: O ensaio nasce com a crítica, é o gênero da critica. No entanto talvez seja preciso corrigir o que entendemos por critica. Em primeiro lugar, se o ensaio é o gênero da critica, é porque é o gênero da crise, da crise de uma certa forma de pensar, de falar, de viver. (...) A escrita é um dos lugares do ensaio. Não há dúvida de que certos modos de produção artística também são atravessados pela operação ensaio Seria interessante, talvez, pensar a partir desta perspectiva algumas das formas artísticas mais experimentais das vanguardas históricas e de seus herdeiros. 3

Alguns dos cineastas da Escola de Barcelona, desconfortáveis frente à distinção entre o cinema documental e o cinema de ficção, chamam de ensaio às suas produções (LARROSA, 2004: 32). Procedimentos críticos como formato cênico Episódico e Ensaio tratam dos aspectos não espetaculares da criação discutindo, metalinguisticamente, estes assuntos no próprio espetáculo. Discute-se a relação entre processo e produto artístico através de situações de bastidores formalizadas cenicamente. Os espetáculos tratam dos impasses, conflitos e fragilidades da produção artística, trazendo para a cena tais condições do processo de criação. Episódico e Ensaio expõem os bastidores da criação evidenciando toda a precariedade implicada na construção de um espetáculo. Tudo o que não é espetacular e, normalmente, fica de fora deste formato, vêm para o centro da cena. E vem para o centro da cena também o encontro para compartilhamento do processo de criação. Este encontro acontece em uma versão cênica, e é chamado de avaliação. Nesta, o público é convidado a avaliar, junto com as artistas, a performance apresentada (inclusive a própria avaliação). Esta avaliação conjunta contribui para a redefinição das regras pré-estabelecidas para cada cena, uma vez que a reavaliação sistemática dos espetáculos é um procedimento constante no Projeto DR. O encontro com o público é justamente a versão cênica deste processo; uma avaliação ao vivo com a participação de todos sobre a apresentação da noite e seu conseqüente desdobramento nas próximas apresentações. Episódico e Ensaio propõem um formato em que o espetáculo já é o próprio encontro para compartilhamento do processo de criação, em uma operação auto-reflexiva e auto-crítica que se dá de forma bem-humorada, com boa dose de auto-ironia e auto-paródia. Segundo Helena Katz, sobre Episódico: No final, o público é convidado a fazer uma avaliação de cada uma das cenas para atribuir e justificar suas notas de 1 a 10. Essa proposta, mesmo sem ser essa a sua intenção, renova aquele velho hábito de realizar conversas ao fim dos espetáculos que, como se sabe, não cumprem o papel de formar platéias a que se destinam. O contexto em que esta avaliação se dá estimula uma efetiva troca de idéias, exercitando uma outra relação do público com o que vê. É ali mesmo, no batepapo descontraído com as próprias artistas, que vai sendo coletivamente construído um modo de falar da obra a partir dela mesmo e não do efeito da obra 4

em cada um. O Projeto DR chegou a um formato estimulante, que merece continuar a ser desenvolvido (KATZ, 2009: D8). O uso da metalinguagem como procedimento crítico em cena é recorrente na produção contemporânea. Não são raros os espetáculos que expõem as questões envolvidas no processo compositivo, desvelando o que está em jogo nas suas configurações. Sobre Melodrama da Cia dos Atores, Silvia Fernandes comenta: Metalinguagem e metateatro são maneiras até certo ponto tradicionais de definir a radicalidade dessa operação (...) a finalidade aqui é apresentar o processo de leitura coletiva de um gênero, num procedimento metateatral, sem dúvida, mas que vai além quando se filia a uma tendência forte na prática teatral contemporânea, e transforma o processo de releitura no produto apresentado. Assim, o espetáculo dá conta não apenas daquilo que representa, mas da atitude dos criadores diante do que encenam, incluindo-se aí sua posição diante do texto e da atuação (FERNANDES, 2006: 52). É desta natureza a operação metalingüística realizada nos procedimentos cênicos avaliativos de Episódico e Ensaio. Sua finalidade é transformar o processo no produto apresentado. E é também responsável pelo espetáculo dar conta da atitude dos criadores diante do que encenam, incluindo aí sua posição. Um aspecto absolutamente relevante em relação à posição das criadores diante do espetáculo diz respeito à sua organização enquanto grupo. É importante salientar que, no Projeto DR, a criação se dá de maneira colaborativa. Segundo Silvana Garcia, a respeito deste tipo de organização e criação grupal: Hoje a expressão criação coletiva sofreu uma revisão critica e foi substituída por colaborativa. Essencialmente, a diferença reside no fato de que, na segunda terminologia, há embutida a noção de uma parceria que não anula o exercício da especialidade. (GARCIA, 2006: 229). Se, por um lado, as especificidades dos criadores são preservadas, por outro, no caso do Projeto DR, a criação de forma colaborativa significa a supressão da tradicional divisão das funções entre coreógrafo e bailarinos. Poder-se dizer que, neste caso, a colaboração se dá entre artistas performers, usando a definição de Renato Cohen para descrevê-los: 5

O performer vai se assemelhar ao artista plástico, que cria sozinho sua obra de arte (...) É a expressão de um artista que verticaliza todo o seu processo, dando sua leitura de mundo, e a partir daí criando seu texto (no sentido sígnico), seu roteiro e sua forma de atuação. (...) Mesmo quando o artista trabalha em grupo esse processo se dá por colaboração (...) essa relação vai ser uma relação horizontal (COHEN, 1989: 101). Sobre a não hierarquia entre os artistas em processos de colaboração, Luis Alberto de Abreu corrobora: pode-se dizer que o processo colaborativo é um processo de criação que busca a horizontalidade nas relações entre os criadores do espetáculo. (ABREU, 2003: 33). No caso do Projeto DR esta premissa é radicalizada, pois não há um diretor. Ou seja, não há uma voz que defina a posição do espetáculo. Se não há um artista designado para desempenhar a função específica de direção, isto não quer dizer que ela, enquanto função, não exista. Muito pelo contrário, a problematização desta instância e das relações colaborativas de produção estão no cerne das questões artísticas que mobilizam o Projeto DR. Desta forma as diversas posições das criadoras não são apaziguadas por uma visão geral que garanta a unidade do espetáculo. O que faz com que este seja constantemente revisto e reavaliado pelas criadoras, cujas visões estão em permanente tensão. Assim Helena Katz descreve Episódico: Quem duvida que temas sérios podem ser tratados com leveza sem perder a sua potência encontra neste espetáculo a oportunidade de descobrir como isso é possível. Os assuntos são os mesmos presentes na maior parte da produção contemporânea. Lá estão as questões em torno da ressignificação da função do diretor e dos intérprete colaboradores; a discussão sobre manipulação, hierarquia e poder nos processos de criação; a problematização sobre autoria e colaboração; como construir personagens que se comuniquem com clareza; o que sucede quando a informação criada em um corpo precisa ser aprendida por um outro tudo isso desenvolvido em situações de timing preciso e roteiro bem resolvido (KATZ, 2009: D8). Um sistema de criação polifônico (ABREU, 2003: 33) que gera uma forma poifônica, como define Bakhtin a respeito do romance de Dostoievski: O romance polifônico é inteiramente dialógico. As relações dialógicas são um fenômeno universal, que penetra toda a linguagem humana e todas as relações e manifestações da vida. (BAKHTIN, 2002: 42). 6

Antonio Negri retoma o conceito da polifonia para explicar o que acontece no diálogo constante entre singularidades: Numa concepção polifônica de narrativa, não existe um centro que determine o significado, surgindo este exclusivamente das trocas entre todas as singularidades em dialogo. (NEGRI, 2005: 274). E esta forma estética corresponde a uma organização política: Na organização política, como na narração, existe um constante dialogo entre sujeitos diversos e singulares, uma composição polifônica entre eles, e um enriquecimento geral de cada um deles através da produção do comum. (NEGRI, 2005: 274). Aos processos colaborativos de produção Antonio Negri credita o que denomina a produção do comum: O comum baseia-se na comunicação entre singularidades e se manifesta através dos processos sociais colaborativos da produção. (NEGRI, 2005: 266). O comum produzido pelo Projeto DR é um formato cênico critico, fruto de pesquisa artística realizada durante cinco anos sobre o mesmo tema a relação entre processo e produto artístico. O procedimento de avaliação deste formato amplia o diálogo polifônico, incluindo o público na criação do espetáculo. Esta extensão do processo colaborativo produz, ao mesmo tempo, um resultado estético: confere um tom de inacabamento geral ao formato. Os espetáculos permeados por procedimentos auto-avaliativos promovem uma certa precariedade que desglamuriza a atividade artística. Tais procedimentos cênicos tecem uma crítica em relação à obra de arte como produto acabado, fazendo com que os riscos da experiência artística dialoguem com a dimensão espetacular. Performatividade, processo e produto A característica do processo prevalecendo em relação ao produto final é utilizada por Josette Ferral para definir o que ela chama de teatro performativo: Uma das principais características desse teatro é que ele coloca em jogo o processo sendo feito, processo esse que tem maior importância do que a produção final. Mesmo que essa seja meticulosamente programada e ritimada, assim como na performance, o desenrolar da ação e a experiência que ela traz por parte do espectador são bem mais importantes do que o resultado final obtido (FERRAL, 2008: 268). A linguagem da performance parece ser paradigmática na definição deste conceito: 7

Mais do que o teatro dramático, e como a arte da performance, é o processo, ainda mais que o produto, que o teatro performativo coloca em cena. (...) No teatro performativo, o ator é chamado a fazer (doing) a estar presente, a assumir os riscos e a mostrar o fazer (showing doing), em outras palavras a afirmar a performatividade do processo (FERRAL, 2008: 263). A aproximação entre os campos do teatro e da performance é pautada pela tensão entre representação e experiência, como bem aponta Silva, ao descrever a encenação performativa: Tal tipo de encenação, inclusive, na busca de negação da representação, chega a se apresentar como uma não-encenação. (...) Tanto como na performance, a encenação performativa pretende provocar a instauração de um acontecimento. (...) Portanto, o objetivo principal deste tipo de encenação é menos a amarração estética do todo, mas, sobretudo, a produção da experiência (SILVA, 2008: 186). E a questão da experiência, do acontecimento no tempo presente, é outra característica da performance evocada por Ferral para cunhar seu conceito: Nesta forma artística, que dá lugar à performance em seu sentido antropológico, o teatro aspira a produzir evento, acontecimento, reencontrando o tempo presente, mesmo que esse caráter de descrição das ações não possa ser atingido (FERRAL, 2008: 268). A noção de tempo presente também é apontada por Christine Greiner para dar conta da relação entre os campos a da dança contemporânea e da performance. Segundo Greiner, esta relação vem sendo estreitada de tal forma que: Muito se tem falado sobre contaminações entre a dança e a performance. Há dois anos, um grupo de coreógrafos e críticos franceses (www.meetingone.info/manifesto.htm) chegou até a propor, em uma atitude radical, a mudança do nome dança para performance. Essa proposta nasce a partir de mudanças de movimentos que assolaram a história da dança desde a década de 60, a partir de experiências como a de Judson Church nos Estados Unidos, a de Pina Bausch na Alemanha e a do butô japonês (GREINER, 2005b: 87). 8

Entretanto, diferentemente do que pode acontecer na aproximação entre teatro e performance, não existe uma tensão provocada pela oposição entre representação e experiência. No caso da dança esta questão não se coloca. Ao contrário, é por similaridade performativa que as duas linguagens se aproximam: O que parece comum entre os dois modos de organização do pensamento e da linguagem é a ausência de modelos dados a priori, o exercício de uma dramaturgia distinta do texto teatral e amparada pelos textos e estados do corpo, e a exploração do tempo presente onde passado e futuro ganham existência residual para em seguida renascer um no outro, como ações simuladas da memória (GREINER, 2005b: 87). No campo da performance, Renato Cohen utiliza o termo work in process para definir a forma artística resultante de trabalhos em que prevalece uma estética processual: Literalmente poderíamos traduzir por trabalho em processo, procedimento este que tem por matriz a noção de processo, feitura, iteratividade, retro-alimentação, distinguindo-se de outros procedimentos que partem de apreensões apriorísticas, de variáveis fechadas ou de sistemas não-iterativos (COHEN, 2004: 19). Uma das dimensões mais importantes desta estética é sua permanente dinamização: Essa tessitura desenrola-se ao longo da criação e da encenação com sucessivas mutações: é próprio do modelo work in process, de natureza gerativa, evitar a cristalização. (...) O trabalho em processo não acontece somente no espaço tempo anterior à apresentação, mas durante todo o curso do espetáculo e suas sucessivas apresentações, sendo conceitual, à semelhança de processos vitais, essa constante mutação. Isso não implica que o espetáculo, gestado em work in process, seja um happening com improvisações a cada noite (COHEN, 2004: 30). Tal característica é fruto da presença do artista em todas as etapas da criação: O work in process implica a presença do encenador/autor/roteirista em geral a mesma pessoa em todas as etapas da criação/encenação. (COHEN, 2004: 30). Assim como da participação mais ativa do público: Busca-se a condução do espetáculo numa forma processual (no espaço tempo), interativa, na qual a platéia tenha uma participação sensória, mobilizada, e não apenas passiva. (COHEN, 2004: 33). Para Cohen o work in process é ao mesmo tempo um procedimento de criação e uma resultante cênica: Instaurando outras aproximações com a recepção do fenômeno e com processos de criação e representação, o procedimento work in process alcança a 9

característica de linguagem, determinando uma relação única de processo/produto. (COHEN, 2004: 45). Reflexão que se aplica pertinentemente ao formato dos espetáculos Episódico e Ensaio e precisamente à questão artística central do Projeto DR; discutir as relações entre processo e produto artístico. Bibliografia ABREU, L. A. de 2003. Processo Colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência de criação. In: Cadernos da ELT, Ano I, Número 0, março, Santo André. BAKHTIN, M. 2002. Problemas da Poética de Dostoievski. Rio de Janeiro, Forense Universitária. COHEN, R. 1989. Performance como linguagem. São Paulo, Perspectiva. COHEN, R. 2004. Work in progress na cena contemporânea. São Paulo, Perspectiva. FERNANDES, S. 2006. O discurso cênico da Cia dos Atores. Na Companhia dos Atores. Rio de Janeiro, SENAC. FERRAL, J. 2008. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Sala Preta nº 8, pp. 197 210. FOUCAULT, M. 1990. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, GRAAL. GREINER, C. 2005a. O Corpo pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005. GREINER, C. 2005b. A performance e a dança: o corpo em crise. MIP Manifestação Internacional de Performance. Belo Horizonte: Ceia, 2005. GARCIA, S. 2006. Do coletivo ao colaborativo: a tradição do grupo no teatro brasileiro contemporâneo. Na Companhia dos Atores. Rio de Janeiro, SENAC. KATZ, H. 2009. Quatro corpos que investigam o poder no processo criativo. Caderno 2, O Estado de São Paulo, 04 de julho. LARROSA, J. 2004. A operação ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. Educação & Realidade, vol. 29, nº 1 (jan./jun.), pp. 27-43. NEGRI, A. e HARDT, M. 2005. Multidão. Guerra e Democracia na era do Império. Rio de Janeiro, Record. 10

SILVA, A. C. de A. 2008. A encenação no coletivo: desterritorialização da função do diretor no processo colaborativo. Tese de Doutorado Departamento de Artes Cênicas / ECA/USP, São Paulo. 11