A IMAGEM DO RETRATO EM DOIS POEMAS DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE



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353 A IMAGEM DO RETRATO EM DOIS POEMAS DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Alexandre Nell Schmidtke 1 1 Introdução O processo de composição poética de Carlos Drummond de Andrade é permeado por imagens referentes ao mundo rural. Mais do que mera recorrência temática, elas são parte constitutiva de um sujeito lírico com características semelhantes em diversos momentos da obra do poeta mineiro. É possível distingui-lo principalmente quando estão relacionadas cidade (neste caso, tanto a cidade interiorana quanto a moderna) e família. Neste trabalho, nossa proposta é estudar como essa relação se dá em dois poemas de Drummond: Confidencia do itabirano, de Sentimento do Mundo, Edifício Esplendor, de José. Nestes dois poemas o poeta vale-se de um recurso poético para estabelecer alguns conflitos que são um dos momentos decisivos de sua obra: a imagem do retrato. Através dela, estão postos em tensão universo interiorano e universo urbano, passado familiar e presente do sujeito lírico. Além disso, esses elementos postos em tensão podem se alternar, gerando novas perspectivas de inquietude. Por exemplo, o presente do sujeito lírico em xeque diante do passado interiorano, ou o universo urbano em diálogo tenso com o passado familiar, etc. Para que seja possível estabelecer essa relação, procuramos analisar o modo como a obra de Drummond dialoga com o contexto histórico-social a que se refere, isto é, a tradição patriarcal brasileira e seu declínio diante de uma modernização industrial cada vez mais abrangente. Dito de outra maneira, estamos perguntando até que ponto o horizonte histórico de Drummond refere-se ou estabelece um diálogo com as mudanças sociais pelas quais o Brasil passava e se podemos encontrar aí parte do material poético sobre o qual o poeta se debruça. Para inserir mais um elemento nesta equação, podemos pensar no papel que a figura paterna exerce na obra de Drummond pelo menos até Claro Enigma, que parece trazer o desfecho do conflito familiar (principalmente o paterno), com o reconhecimento do legado da família no poema Os bens e o sangue. 2 Confidência do Itabirano 1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rio Grande do Sul Brasil.

354 Em Sentimento do Mundo Drummond aborda pela primeira vez sua cidade natal como constituinte do eu poético. Ao mesmo tempo em que sua poesia de cunho social começa a ganhar força (atingindo seu auge logo mais em A Rosa do Povo), Itabira passa a ser vista não mais como a cidade da vida besta de Sesta, mas como um elemento de formação de sua personalidade lírica. Os elementos rurais e urbanos não são mais postos em oposição como acontece em diversos poemas de Alguma Poesia como, por exemplo, A rua diferente (p.13) 2, Na minha rua estão cortando árvores botando trilhos construindo casas. Minha rua acordou mudada. Os vizinhos não se conformam. Eles não sabem que a vida tem dessas exigências brutas. Só minha filha goza o espetáculo e se diverte com os andaimes, a luz da solda autógena e o cimento escorrendo nas formas. em que o choque causado pelos elementos que representam progresso (trilhos, andaimes, a luz da solda) na cidade interiorana (árvores, a vizinhança que tem um ar ingênuo) nos é dado por um olhar de novidade ( Minha rua acordou mudada ) e em que só a filha goza a chegada da modernidade, nesse caso, o espetáculo. A modernização e o crescimento econômico do país durante a década de 1920 se espalham até os mais recônditos lugares, inclusive aqueles em que os costumes são tão antigos que parecem nunca se modificarem. É esse o espetáculo que choca os vizinhos, a exigência bruta que substitui as árvores por trilhos. Sentimento do Mundo nos apresenta ainda o fato de o poeta em Operário no mar, Os ombros suportam o mundo, Elegia 1938, por exemplo, estar imbuído do momento presente, como fica explicitado em Mãos dadas : O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, / a vida presente. 2 Todos os poemas aqui mencionados estão em: ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 2003. Daqui por diante, citaremos apenas o número da página.

355 e em Confidência de Itabirano (p.68), pelo contrário, através da fotografia, voltar-se para o passado: Itabira é apenas uma fotografia na parede./ Mas como dói. Estamos diante, portanto, de um momento em que ocorre tanto a intensificação da poesia participativa, quanto a volta para o passado. Para Antonio Candido, essa polaridade é justamente o momento maduro da poesia de Drummond (que teria o seu momento maior em A Rosa do Povo), pois temos de um lado, a preocupação com os problemas sociais; de outro, com os problemas individuais, ambos referidos ao problema decisivo da expressão, que efetua sua síntese. (CANDIDO, 2004: p. 68). Podemos questionar a asserção de Antonio Candido no sentido de notar até que ponto esses problemas individuais não são também históricos, sociais. Em A rosa do povo, há pelo menos uma distinção nítida, entre poesia social e poesia sobre o tema da família. Para Candido (2004), os conflitos familiares situam-se nos problemas individuais, o que não deixa de ser correto. Porém, esses problemas têm suas raízes na decadência do patriarcalismo durante a primeira metade do século XX, principalmente na construção do sujeito lírico nos poemas sobre a família e sobre Itabira ou o universo rural. O exemplo que talvez melhor ilustre esse argumento é o poema Os bens e o sangue (p.282), cuja herança que é deixada ao poeta que se apresenta no poema é a negação da família e de seu passado, que deve ser feita justamente através da poesia. Confidência de Itabirano (p.68) parece situar-se no plano dos problemas individuais. A fim de analisar como é possível ir além da individualidade como origem dos conflitos, vamos à leitura do poema: Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação. A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes. E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana. De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço: este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil, este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas; este orgulho, esta cabeça baixa...

356 Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói! A primeira questão a ser notada é como Itabira (nesse caso, o universo interiorano) compõe a personalidade de eu lírico. Não apenas o fato de ter vivido na cidade é importante, mas principalmente de ter nascido, o que se refere muito mais à origem, algo intrínseco do sujeito, do que a uma experiência passível de escolha. Antes mesmo de poder escolher o que deseja manter em si da cidade, o simples fato de nascer em Itabira já define o eu lírico. Nesse caso, o itabirano não tem escolha. É como se a cidade legasse aos seus filhos uma de suas principais características: o ferro ( oitenta por cento de ferro nas almas ). Assim, podemos pensar não apenas no caso do sujeito lírico, mas também em toda sua família como tendo as características do ferro: dureza, frieza, densidade (o que se confirma em vários poemas com relação à figura paterna). A primeira estrofe nos apresenta ainda o alheamento do que na vida é porosidade e comunicação. A porosidade aqui pode ser entendida como o que não é denso, é leve. E o alheamento à comunicação também marca a sua relação familiar. A doce herança itabirana chama a atenção na segunda estrofe. É sabido que a poesia de Drummond é marcada pelo sofrimento, ou pelo menos pelas inquietudes. Ou seja, é uma constante em sua obra o fazer poético sobre o que sente. Isso não significa, todavia, uma abordagem trivial, fácil. É um sentir marcado às vezes pela desconfiança, pela ironia, pela melancolia, isto é, mesmo que seja uma dor intensa, ela não é a exposição direta do eu lírico, há um tipo de mediação que revela em parte esse sentimento. Como podemos notar na última estrofe de Poema de sete faces (p.5), quando o poema cai em uma confissão a respeito de si ( mais vasto é meu coração ), a estrofe seguinte acaba por desfazer esse tom quase sentimentalista ( Eu não devia te dizer / mas essa lua / mas esse conhaque / botam a gente comovido como o diabo ). Assim, esse hábito de sofrer que tanto o diverte é um dos elementos fundamentais para o seu fazer poético. A estrofe seguinte situa o eu lírico no espaço. Sabemos que ele está distante de Itabira e que de lá levou consigo alguns objetos e um pouco de sua personalidade. Os objetos que o poeta levou são significativos porque representam o universo rural de onde provém: o São Benedito, a pedra de ferro, o couro de anta. Este último elemento, por sinal, está colocado no sofá da sala de visitas, ou seja, é nítido o deslocamento de

357 seu contexto original. Mas todos esses objetos são dedicados a alguém ( que ora te ofereço ). Então, temos que o poeta ao sair de Itabira leva consigo algumas prendas de lá para oferecer a seu interlocutor. Mais do que os objetos, ele oferece também o orgulho e a cabeça baixa. São duas características que parecem se anular, de modo que a imagem do orgulhoso de cabeça baixa soe estranha. No entanto, essa é uma descrição eficaz do eu lírico que Drummond criou, como podemos notar na sua relação com o pai (tanto num como no outro). A última estrofe indica a posição específica de onde fala o sujeito lírico: do funcionalismo público. É um funcionário que teve ouro, gado e fazendas, ou seja, estava atrelado ao mundo rural. Mundo rural este que diz respeito principalmente a sua família, ao universo patriarcal de Infância (p.6). Podemos dizer que agora ele está ligado ao mundo urbano, já que saiu de Itabira (universo rural) e levou algumas prendas desse universo; colocou-as no sofá da sala de visitas, também um indício do universo urbano como em Sociedade (p.31), por exemplo; e, é claro, pelo fato de Itabira ser apenas uma fotografia na parede 3. Ou seja, é no último verso que o poeta revela que Itabira ainda lhe é importante. A cidade natal representa não só o que constitui o sujeito, como também o universo do qual provém, juntamente com sua família. Então, ao dizer que Itabira dói, o eu lírico reconhece também uma dor maior, que diz respeito não apenas à cidade natal, mas também ao seu contexto, o que inclui o círculo familiar. A respeito disso, Gledson nos diz o seguinte: Mas aqui também à alienação, ou ao alheamento, contrapõe-se uma espécie de ligação, que faz com que o poema seja mais ambíguo do que parece à primeira vista. O ferro entra na alma, mas entra, ainda assim, e o hábito de sofrer, até a sua própria paralisia são coisas herdadas do passado, dos quais nem é capaz de se ressentir o hábito de sofrer, que tanto me diverte. Os vários objetos que conserva são sinais, embora fragmentários e pessoais, de o que o passado ainda está vivo. A reação final é agora simplesmente emocional Mas como dói! O poeta é uma espécie de encruzilhada onde a herança do passado e as tensões do presente convergem sem, é claro, encontrar um equilíbrio. (GLEDSON, 1981: p.121) 3 Parece haver uma espécie de rebaixamento no fato de o eu lírico ter se tornado um funcionário público, como se estivesse rompendo a tradição familiar para se acomodar na burocracia. É um caso semelhante ao de Amanuense Belmiro, em que o funcionalismo público é como que uma derrota na vida: Este velho que se assenta ao meu lado tem trinta anos de serviço, já recebe adicionais e ainda acredita que nasceu para o brilho e a dignidade da Igreja. [...] Acolá, outro velho, o Romualdo, que já requereu contagem de tempo para fins de aposentadoria, com todos os vencimentos, suspira, cada dia, à hora de encerrar-se o expediente: Eu dava para a política. Tinha jeito e tive padrinhos. Mas não tirei carta de bacharel, caseime antes de tempo e aqui estou vegetando... Há outros que teriam feito carreira no Exército, na alta administração, ou nas letras. Mas houve qualquer coisa que tudo atrapalhou, desviando-lhes a rota da vida. (ANJOS, Cyro Versiani dos. O amanuense Belmiro. São Paulo: Saraiva, 1949. p.36).

358 Itabira sempre esteve presente na poesia de Drummond. É importante notar, porém, que é nesse momento que a abordagem deixa de ser ainda de quem tem restrições quanto ao seu passado. A cidade natal de Drummond é também o palco da tradição patriarcalista, que pode ser representada como oposição à chegada da modernidade, pelas referências ao campo, pelo comportamento das pessoas; a partir de Sentimento do Mundo, quando a experiência urbana é mais intensa, esse ar interiorano deixa de ser estranho, ou pelo menos se ainda é estranho, agora faz parte da formação do sujeito lírico. Essa é uma diferença importante com relação ao primeiro livro de poesias de Drummond, Alguma Poesia. No caso de Confidência de Itabirano a lembrança de Itabira é representada, entre as outras prendas, pela fotografia na parede. Na poesia de Drummond, a fotografia e o retrato têm um papel importante por ativar a memória, mas também por tornar presente o passado do poeta. É o caso, por exemplo, de Os mortos de sobrecasaca (p.73) em que Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava que rebentava daquelas páginas. apesar de sua destruição através da ação dos vermes, a fotografia transmite a vida dos mortos, ou seja, muito além da imagem, sua presença está em quem ainda vive. Retrato de família é também um poema importante na obra de Drummond. Por hora, vale dizer que aqui o retrato ganha vida e fita o poeta, que se contempla no retrato, formando uma espécie de imagem especular. De qualquer modo, muito da poesia sobre a família em Drummond tem a fotografia como recurso poético. É o caso também do poema seguinte a ser analisado. Então, Confidência do itabirano revela, através do recurso do retrato, dois contextos distintos, mas que se completam no poema. O olhar do sujeito lírico incide, além do retrato, sobre os objetos rurais típicos de uma sociedade bem diferente da qual parece ser seu ponto de partida. O afastamento do universo rural gera a dor, reconhecida como a herança itabirana. Mesmo situado em um contexto diferente da origem dos objetos da sala de visitas, o sujeito lírico não consegue ser diferente do que lhe legou sua cidade originária. Essa perspectiva será mantida em diversos poemas da

359 obra de Drummond, qual seja, o reconhecimento de que tanto a cidade natal como a família fazem parte do sujeito independentemente de sua vontade, gerando, assim, uma inquietude poética (CANDIDO, 2004, p.68). 3 Edifício Esplendor No poema Edifício Esplendor (p.96), de José, temos a ruína de um prédio que abriga não homens, mas moradores. Drummond nos apresenta um olhar agudo com relação às famílias fechadas em células estanques, como se a modernidade da construção contaminasse também as relações familiares, principalmente quanto temos o parâmetro de relação familiar desenvolvido em Alguma Poesia. Antes de continuar, vale a leitura do poema na íntegra: I Na areia da praia Oscar risca o projeto. Salta o edifício da areia da praia. No cimento, nem traço da pena dos homens. As famílias se fecham em células estanques. o elevador sem ternura Expele, absorve num ranger monótono substância humana. Entretanto há muito se acabaram os homens. Ficaram apenas tristes moradores. II A vida secreta da chave. os corpos se unem e bruscamente se separam. O copo de uísque e o blue destilam ópios de emergência. Há um retrato na parede, um espinho no coração, uma fruta sobre o piano E um vento marítimo com cheiro de peixe, tristeza, viagens... Era bom amar, desamar, morder, uivar, desesperar, era bom mentir e sofrer. Que importa a chuva no mar?

360 a chuva no mundo? o fogo? Os pés andando, que importa? Os móveis riam, vinha a noite, o mundo murchava e brotava a cada espiral de abraço. E vinha mesmo sub-repitício, em momentos de carne lassa, certo remorsos de Goiás. Goiás, a extinta pureza... O retrato cofiava o bigode. III Oh que saudades não tenho de minha casa paterna. Era lenta, calma, branca, tinha vastos corredores e nas suas trinta portas trinta crioulas sorrindo, talvez nuas, não me lembro. E tinha também fantasmas, mortos sem extrema-unção, anjos da guarda, bodoques e grandes tachos de doce e grandes cismas de amor, como depois descobrimos. Chora, retrato, chora. Vai crescer tua barba neste medonho edifício de onde surge tua infância como um copo de veneno. IV As complicadas instalações de gás, úteis para o suicídio, o terraço onde camisas tremem, tambem convite à morte, o pavor do caixão em pé no elevador o estupendo banheiro de mil cores árabes onde o corpo esmorece na lascívia frouxa da dissolução prévia. Ah, o corpo, meu corpo, que será do corpo? Meu único corpo, aquele que eu fiz de leite, de ar, de água, de carne, que eu vesti de negro, de branco, de bege, cobri com chapéu, calcei com borracha, cerquei de defesas, embalei, tratei? Meu coitado corpo tão desamparado

361 entre nuvens, ventos, neste aéreo living! V Os tapetes envelheciam pisados por outros pés. Do cassino subiam músicas e até o rumor das fichas. Nas cortinas, de madrugada a brisa pousava. Doce. A vida jogada fora voltava pelas janelas. Meu pai, meu avô, Aberto... Todos os mortos presentes. Já não acendem a luz com suas mãos entrevadas. Fumar ou beber: proibido. Os mortos olha e calam-se O retrato descoloria-se, era superfície neutra. As dívidas amotoavam-se. A chuva caiu vinte anos. Surgiram costumes loucos e mesmo outros sentimentos. Que século, meu Deus, diziam os ratos. E começavam a roer o edifício. O eu lírico intercala o olhar para o edifício e para si mesmo. Estão colocados, então, dois planos: o exterior, que se refere ao edifício, e o interior, que trata do sujeito lírico. Todo o seu trajeto é traçado: surgimento, Na areia da praia Oscar risca o projeto. Salta o edifício da areia da praia a descrição da vida que lá se leva, as complicadas instalações do gás, o elevador, o banheiro, etc., e culmina com os ratos roendo o edifício. Já o plano interior é ativado, principalmente, pelo retrato. Na segunda parte do poema, o retrato prende a atenção do eu lírico que passa da descrição da vida no edifício para a sua interioridade. É

362 importante notar que o retrato é mais um dos objetos no apartamento. No entanto, é o que relaciona formalmente a família, o passado e o edifício. É na segunda parte que pela primeira vez ele é mencionado, e é neste momento que o poema se volta para o interior do eu poético: [...] Há um retrato na parede, um espinho no coração, uma fruta sobre o piano e um vento marítimo com cheiro de peixe, tristeza, viagens... Ou seja, o retrato está no contexto de surgimento da abordagem interior, que terá na estrofe seguinte um momento importante. As lembranças parecem brotar da sensação visual ( um espinho no coração, referindo-se possivelmente ao retrato) e olfativa ( cheiro de peixe, tristeza ). A terceira parte inicia com uma paráfrase de Casimiro de Abreu, que introduz a infância no poema, como que dando continuação às sensações disparadas pelo retrato. Aliás, o fato de Drummond fazer referência a Casemiro é relevante quando consideramos o contexto em que surge, já que se trata de uma saudade que ele não tem. É a parte que nos interessa analisar com mais atenção. III Oh que saudades não tenho de minha casa paterna. Era lenta, calma, branca, tinha vastos corredores e nas suas trinta portas trinta crioulas sorrindo, talvez nuas, não me lembro. E tinha também fantasmas, mortos sem extrema-unção, anjos da guarda, bodoques e grandes tachos de doce e grandes cismas de amor, como depois descobrimos. Chora, retrato, chora. Vai crescer tua barba neste medonho edifício de onde surge tua infância como um copo de veneno.

363 Neste poema, temos pelo menos três referências importantes: à infância, à cidade natal e ao retrato. Todas são freqüentes na obra de Drummond e, nesse caso, nos trazem uma possível relação entre Itabira e a figura do pai, que pode entendido como um portavoz do círculo familiar. Esta parte inicia com uma negação da casa paterna imagem que evoca a cidade natal e a figura do pai ao mesmo tempo. Diante desta negação, podemos imaginar qualquer coisa, menos que o poeta fará uma longa descrição na primeira e na segunda estrofes justamente desta casa, de que ele não tem saudades. Ou seja, quando inicia o terceiro verso da primeira estrofe, parece haver uma oposição ao que fora dito nos versos anteriores. O poeta nos mostra detalhadamente a casa, que surge lenta, calma, branca. É uma caracterização que lembra muito a família mineira está quentando sol (p.33), ou no meio dia branco de luz (p.6), ou eta vida besta, meu Deus (p.23). Da mesma forma, as trinta crioulas sorrindo nas trinta portas são bem próximas daquelas de Iniciação amorosa (p.29). Assim, estamos diante de uma casa paterna conforme a matéria poética de Alguma Poesia, cuja retomada agora em José é significativa, já que estabelece a relação entre o passado e o presente, quando o eu lírico se refere à infância. É curioso o fato de o poeta não lembrar se as crioulas estavam nuas ou não. A respeito disso, levantamos duas questões: primeiro, essa atitude nos diz que a descrição feita está de acordo com a lembrança, ativada pelo retrato. Se pensarmos no que diz Candido (2004) sobre a maneira de composição de Drummond, fica claro que não estamos mais diante do reconhecimento do fato, mas já da poesia processo, da volta para si mesmo, quando faz da inquietude sua matéria poética; e segundo, os versos, e nas suas trinta portas/ trinta crioulas sorrindo,/ talvez nuas, não me lembro. representam uma característica da família patriarcal brasileira. Nesse caso, o fato de o eu lírico não se lembrar se as crioulas estavam nuas pode significar ou que esse era apenas mais um detalhe daquela casa, de modo que o esquecimento pareça natural; ou, por outro lado, que o esquecimento é significativo na medida em que este é um assunto doloroso, traumático. Ou seja, o poeta fala com uma indiferença que parece ser um disfarce para essa questão típica do patriarcalismo. Como nos conta Gilberto Freyre, o convívio entre senhores e escravos era intenso, mesmo no âmbito da casa grande. Em determinada passagem de Casa-Grande & Senzala, ele nos diz:

364 A casa-grande fazia subir da senzala para o serviço mais íntimo e delicado dos senhores uma série de indivíduos amas de criar, mucamas, irmãos de criação dos meninos brancos. Indivíduos cujo lugar na família ficava sendo não o de escravos mas o de pessoas de casa. [...] Quanto às mães-pretas, referem as tradições o lugar verdadeiramente de honra que ficavam ocupando no seio das famílias patriarcais. [...] É natural que essa promoção de indivíduos da senzala à casa-grande, para o serviço doméstico mais fino, se fizesse atendendo a qualidades físicas e morais; e não à toa e desleixadamente. A negra ou mulata para dar de mamar a nhonhô, para niná-lo, preparar-lhe a comida e o banho morno, cuidar-lhe da roupa, contar-lhe histórias, às vezes para substituir-lhe a própria mãe é natural que fosse escolhida dentre as melhores escravas da senzala. (FREYRE, 2005: pp. 435-436) Ou seja, como a preta velha que prepara o café bom, em Infância (p.6), essa relação parece permear a obra de Drummond. É um olhar para algo que integra o círculo familiar, isto é, o poeta não olha de cima, mesmo que a hierarquia esteja implícita. De qualquer forma, é diferente do modo como Manuel Bandeira trata a questão, em que a atenuação do conflito coloca em segundo plano a questão de classe, como em Irene no céu. Sobre essa marca histórica nesse poema, Coêlho diz: Ecos desta habitação (a que Gilberto Freyre fixou nos seus estudos sobre a sociedade patriarcal do séc. XIX) e do regime social e de família que ela por excelência personificou, ressoam com nitidez no texto acima ( Edifício Esplendor ), quer nos grandes tachos daquele doce preparado no recinto doméstico, para o consumo do clã, quer no riso safado e sensual das crioulas, quer ainda na aparição do sobrenatural, de freqüência obrigatória em qualquer casa antiga que se respeite. (COÊLHO, 1973: p.111) Então, a questão de haver um dado histórico problematizado em Edifício Esplendor possibilita pensarmos que a relação do poeta com sua cidade natal é também uma relação com um momento específico da história brasileira: a decadência do patriarcalismo (aqui abordado pelo viés da casa paterna) e a vida na grande cidade (representada pelo edifício). Referências ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. ANJOS, Cyro Versiani dos. O amanuense Belmiro. São Paulo: Saraiva, 1949.

365 CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo: Duas Cidades, 2004. COÊLHO, Joaquim-Francisco. Terra e família na poesia de Carlos Drummond de Andrade. Belém do Pará: Universidade Federal do Pará, 1973. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2005. GLEDSON, John. Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Duas Cidades, 1981.