A Portada de acesso à fortaleza lembra um pagode chinês e destaca a riqueza arquitetônica da construção. A escadaria é de pedra lioz conhecida como mármore portuguesa. Paulo Roberto Rodrigues Teixeira ACoroa Portuguesa deu pouca importância às terras localizadas ao sul da Colônia. Na verdade, elas foram praticamente esquecidas no primeiro século do descobrimento do Brasil, e sua exploração só começou no século XVII. Os bandeirantes, por sua vez, ultrapassaram os limites do Tratado de Tordesilhas, em busca do ouro e da prata, afrontando os espanhóis. Uma ameaça latente que concorreu para que a Espanha atacasse a Colônia em 1777. A Ilha de Santa Catarina, situada no meio do caminho, entre o extremo sul, sob domínio espanhol, e o Rio de Janeiro, sede do Vice-Reino português, tornava-se uma área estratégica, como base de apoio para ambas as coroas. Portugal, prevendo a reação da Espanha, determinou a construção de diversas fortificações para barrar o acesso ao norte e ao sul da baía, entre a ilha e o continente. A Fortaleza de Santa Cruz de Anhatomirim era a principal delas. Nas páginas que seguem, mostraremos a sua localização, história, as peculiaridades das instalações, as atividades culturais que vêm sendo desenvolvidas pela Universidade Federal de Santa Catarina, o crescimento do turismo e a sua beleza natural, contrastando com a arquitetura renascentista. 53
Escunas conduzem os turistas para conhecerem Anhatomirim. Vista panorâmica, através do portal de acesso, visualizando embarcações fundeadas nas proximidades do Trapiche. Localização A Fortaleza de Santa Cruz está localizada na Ilha de Anhatomirim, em Governador Celso Campos, na região da Grande Florianópolis, em Santa Catarina. Anhatomirim é nome de origem indígena e significa cão pequeno. A ilha possui uma área de 45.000m² e dimensões aproximadas de 370m no seu maior comprimento, na direção norte-sul, por 220m na sua maior largura, na orientação leste-oeste. Sua maior altitude é o Morro do Farol, a 35m do nível do mar. Anhatomirim dista 170m do continente. Por via terrestre, está a cerca de 40km de Florianópolis, 476km de Porto Alegre, 300km de Curitiba. O acesso é feito pelo Km 185 da BR 101. A ínsula é banhada por águas calmas, com pro- 54
Armazém da Praia, à direita, onde eram guardadas as baleeiras, escaleres e outras embarcações de serviço na Fortaleza. Foi restaurada em 1989 e é hoje lanchonete e loja de souvenir. Visão panorâmica do Trapiche e da praia do Porto. fundidade variando de 1m a 10m, cercada por costões rochosos, possuindo duas pequenas praias: a do porto e a do viveiro. História Vestígios arqueológicos testificam a ocupação primitiva da Ilha de Santa Catarina há mais de quatro mil anos. A presença européia data do início do século XVI, restringindo-se apenas às expedições de exploração. Na segunda metade do século XVII ocorreu a fundação da Vila Nossa Senhora do Desterro. O litoral catarinense, no período compreendido entre o início do século XVIII e a Independência, prosperou muito lentamente. O motivo principal dessa lentidão era o fato de que a área não atraia os aventureiros 55
A escadaria que dava acesso à portada era de pedra lioz, que chegava ao Brasil como lastro no porão dos navios. e ambiciosos que buscavam o ouro em outras regiões, ocorrendo o desenvolvimento maior naqueles locais. A população, ainda que sofrendo o esquecimento dos governos, gozava, em compensação, das vantagens de uma existência sem preocupações e fadigas. A maioria das suas vilas achava-se entregue aos próprios recursos, lutando contra os selvagens, conhecendo profundamente a pobreza. Entretanto, no meio das adversidades, os catarinenses viviam em paz e eram felizes. Alimentavam-se dos produtos da caça, da pesca e de pequenas lavouras, retirando da floresta próxima carnes variadas e frutos saborosos. Assim, corria a vida nessa região, tão esquecida e abandonada. Em 1680, Portugal fundou a Colônia do Sacramento, na atual República do Uruguai, defronte a Buenos Aires. O seu objetivo principal era o de assegurar e apoiar, naquela região, a integração, por via fluvial e marítima, do centro do poder do Brasil Colonial, no Rio de Janeiro, com Mato Grosso, atingido pelos bandeirantes paulistas no período de união das coroas portuguesa e espanhola (1580-1640). Também, no aspecto econômico, a Coroa Portuguesa pensava em partilhar das enormes riquezas carreadas da Bacia do Prata e transportadas de Buenos Aires à Espanha. A Ilha de Santa Catarina apresentava excelentes condições para ser transformada em uma base naval militar e logística e, para tal, deveria ser fortificada. Isso também, com o propósito de diminuir a distância de apoio à Colônia do Sacramento e ao Rio Grande do Sul. Em 1738, foi criado o Governo militar. O primeiro governador, nomeado em 1739, foi o Brigadeiro José da Silva Paes, que mudou o Governo para a ilha. Criou e organizou um regimento de infantaria que teve atuação marcante nas lutas naquela região de 1737 a 1821, particularmente nos Sete Povos das Missões. Deve-se a essa unidade militar, segundo a tra- 56
dição, por causa do peitilho verde que seus homens usavam no uniforme, o apelido de barrigas-verdes, transferido hoje aos catarinenses, que o ostentam com muito orgulho. A corporação foi extinta em 1832. De 1739 a 1741, Silva Paes deu início à construção de quatro fortalezas para transformar a ilha em poderosa base portuguesa. O objetivo fundamental dos fortes era defender o território das incursões de navios estrangeiros que aportavam à ilha para atividades de contrabando, pirataria, reabastecimento de lenha e água e descanso para as guarnições. As fortalezas serviriam ainda para apoiar as comunicações navais entre Rio de Janeiro, Santos e as bases portuguesas do Sul. Foram construídas as fortalezas de São José da Ponta Grossa, Santa Cruz e Santo Antônio, com a finalidade de fechar a entrada norte da baía. A principal delas foi a de Santa Cruz, na Ilha de Anhatomirim. Para bloquear a entrada sul da baía, foi construída a Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição. Em 1777, os espanhóis invadiram a ilha. As fortalezas não contaram com o apoio naval nem com o apoio terrestre da tropa de infantaria na defesa contra o inimigo que se preparava para atacá-los. A divisão naval abandonou a ilha, deslocando-se para a Cidade do Rio de Janeiro. A guarnição da Fortaleza de Anhatomirim, como todas as demais, abandonou suas posições, e os Vista parcial da fortaleza. Casa do comandante. Jaqueira centenária, ao lado da casa do quartel. 57
Canhão colonial em posição. Ao fundo, a casa do comandante. espanhóis tomaram posse da ilha, assinando o termo de capitulação na Vila do Desterro. Em virtude do Tratado de Santo Ildefonso, assinado em 1 o de outubro de 1777 e confirmado em 11 de março de 1778, a Ilha de Santa Catarina foi devolvida a O alojamento da casa do quartel. Portugal em junho de 1778, tendo o domínio espanhol durado apenas 4 meses e 25 dias. Em 1785, um historiador francês alertou para a pouca importância das fortificações. O sistema de defesa da ilha entrou em descrédito e Anhatomirim passou a ser progressivamente relegada a segundo plano. Em 1894, durante a Revolução Federalista, Anhatomirim reassume importância ao servir de presídio e base de fuzilamento de revoltosos contra o governo de Floriano Peixoto. Essa é considerada a fase mais negra e dramática de sua história, quando os federalistas foram levados para lá e não retornaram. O movimento rebelde foi debelado em Santa Catarina, com a prisão e execução de 185 amotinados. Após o epi- FOTO: RICARDO SIQUEIRA 58
sódio, ocorreu a mudança do nome da cidade de Desterro para Florianópolis. Em 1907, a Fortaleza de Santa Cruz de Anhatomirim passou a pertencer ao Ministério da Marinha. Em 1932, voltou a ser utilizada como prisão no desfecho da Revolução Constitucionalista. Em 1938, foi tombada como monumento histórico nacional, pelo então Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, atual IPHAN. Durante o período compreendido entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, a fortaleza ganhou novas instalações, como a estação radiotelegráfica e a usina de eletricidade, e foi reequipada com armamentos mais modernos. Até o fim da Segunda Guerra Mundial, funcionou como fortificação, sendo desativada após esse período, por causa da evolução tecnológica bélica, que a tornou ineficaz como unidade militar. A Marinha ainda manuteniu as instalações, em função da existência do farolete de sinalização marítima, até a década de 1960. A partir daí, a fortaleza foi definitivamente abandonado e depredada. Em 1979, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) adotou a fortaleza, reabrindo-a ao público em 1984 e transformando-a em uma das principais atrações turísticas do Sul do país. A guarita protegia a sentinela e facilitava a observação. A Fortaleza A Fortaleza de Anhatomirim é a principal e maior fortificação catarinense, por ter sido a sede do primeiro governo da Capitania de Santa Catarina. Com o material de artilharia que recebeu 70 peças de ferro, anti-carga, alma lisa, projéteis esféricos, constituía, na época, poderoso poder de fogo. Era a artilha- 59
Os arcos caracterizam o estilo renascentista do quartel da fortaleza. Durante a Guerra do Paraguai (1864-1868), o prédio abrigou enfermarias para os soldados brasileiros feridos e prisão para os prisioneiros paraguaios. ria de D. João V de Portugal. Em toda a extensão da ilha, encontram-se edifícios históricos dos séculos XVIII, XIX e XX espalhados de maneira harmônica, contrastando com a beleza do mar e da vegetação. Ao desembarcar na ilha, entrando na fortaleza, uma escadaria de pedra dá acesso à portada principal que conduz a uma praça central, em frente à casa do comandante. O quartel da tropa, nas proximidades, é um prédio que se destaca pela magnífica arquitetura renascentista. Possuía, na época da sua construção, quatro baterias. A bateria nordeste formava, juntamente com a bateria norte, as duas principais bases de fogo da fortaleza. Com o material de artilharia recebido de D. João V de Portugal, possuía a fortaleza, na época, poderoso poder de fogo. 60
Nelas os canhões ficavam colocados sobre carretas de madeiras e estas sobre uma estrutura com tijolos ou, algumas vezes, com pedras. Essas bases encontram-se hoje alteradas pelas adaptações que sofreram principalmente nas duas últimas guerras mundiais, quando receberam armamentos mais modernos. Ainda existiam a bateria sudeste, próxima à portada, e a bateria baixa, localizada em frente à bateria norte. Através de uma passagem subterrânea um túnel com teto de tijolos em forma de abóbada, pode-se chegar a essa bateria complementar de defesa, localizada em nível inferior à bateria principal. Hoje, a bateria norte transformou-se em uma grande área verde de lazer, sombreada por uma frondosa jaqueira. A fonte de Anhatomirim é um poço natural de água potável e muito abundante, abrigado por uma construção em alvenaria de tijolos com FOTO: RICARDO SIQUEIRA cobertura em forma de abóbada. Sua função no século XVIII, mantida até os dias atuais, era coletar e armazenar as águas provenientes de um olho d água natural da ilha a fim de abastecer a fortaleza. A árvore dos enforcados faz parte do folclore da ilha. Trata-se de um araçazeiro que, segundo a tradição popular, teria sido local de enforcamento e fuzila- A posição de tiro, ao fundo, e as guaritas que protegiam a observação das sentinelas. 61
mento de dezenas de prisioneiros ao final da Revolução Federalista, em 1894, quando Anhatomirim foi usada como presídio. Na parte mais alta da ilha, ergue-se o farolete, que, juntamente com o farol da Ilha do Arvoredo, orienta a navegação noturna pela entrada da Barra do Norte da Ilha de Santa Catarina. O farolete é No pavimento superior da Casa do Quartel, atualmente, há um espaço livre utilizado para realização de exposições temporárias. composto de uma coluna de ferro de 8m de altura, cuja lâmpada atual, instalada em agosto de 1990, possui alcance geográfico de 13 milhas náuticas e alcance luminoso de 9 milhas. O farol, inaugurado em 1873, era inicialmente alimentado por gás. Passou a funcionar com energia elétrica no início de 1980. O paiol tem a sua localização afastada das instalações principais. O primeiro a ser construído era considerado demasiadamente exposto e vulnerável. No século XIX, construiu-se novo paiol, o atual, oferecendo maior segurança contra qualquer ameaça externa. A última restauração da fortaleza ocorreu no início da década de 1980, quando a construção principal, com teto em forma de abóbada, foi adaptada para abrigar um aquário exibindo a riqueza da fauna marinha da região. 62
A distância da ilha ao continente é de 170 metros, percurso realizado por embarcações alugadas no continente. Conclusão Ao encerrarmos a nossa reportagem, lembramos que a história de Anhatomirim começou com a construção de quatro fortificações, ordenada pelo rei de Portugal, visando, principalmente, barrar a ameaça vinda pelo Casa do comandante. mar. Dessas, a Fortaleza de Santa Cruz era a mais importante. A invasão da Espanha, ocorrida em 1777, é um fato histórico questionado por alguns historiadores. As guarnições das fortalezas abandonaram as suas posições e a esquadra deslocou-se para o Rio de Janeiro. A Espanha tomou posse da ilha sem nenhuma reação. Em 1778, pelo Tratado de Santo Ildefonso, Portugal recebeu de volta tudo que havia sido conquistado pelos espanhóis. Na Revolução Federalista, em 1894, o forte serviu como presídio. Os revoltosos somaram 185, foram levados presos para a ilha e nunca mais voltaram, sendo fuzilados ou enforcados. É considerada uma página negra e dramática da sua história. No desenrolar das guerras mundiais, novas instalações foram acrescentadas, como a estação radiotelegráfica e a usina de eletricidade. 63
Vista geral da ilha: o verde da vegetação, o mar azul, os costões rochosos e as construções renascentistas. Imagem que os visitantes guardarão para sempre. Antigas peças de artilharia foram substituídas por armamento mais moderno que, com o passar do tempo, tornou-se ineficaz. Em 1938, a fortaleza foi tombada pelo IPHAN iniciando a sua restauração que, pela ação do tempo, estava semidestruída. A Universidade Federal de Santa Catarina prosseguiu nesse trabalho e apadrinhou Anhatomirim. Atualmente, a UFSC desenvolve um turismo cultural de qualidade, mostrando a história do forte em multimídia. Na Fortaleza de Anhatomirim, podemos apreciar a beleza natural da vegetação e do mar, as construções antigas em estilo renascentista e nos beneficiarmos também, dentre outros atrativos, de um restaurante com alimentação farta e saborosa, que ocupa as antigas instalações da capela. Sem dúvida, conhecer a fortaleza é uma oportunidade de resgatar a sua memória, uma história com muitos reveses, mas que encanta a todos que a visitam. No Trapiche, os turistas retornam ao continente. Um passeio que encanta a todos que visitam a Fortaleza. Paulo Roberto Rodrigues Teixeira Coronel de Infantaria e Estado-Maior, é natural do Rio de Janeiro. Tem o curso de Estado-Maior e da Escola Superior de Guerra. Atualmente é assessor da FUNCEB e redator-chefe da revista DaCultura. 64