Demandas por um novo arcabouço sociojurídico na Organização Mundial do Comércio e o caso do Brasil. Michelle Ratton Sanchez *



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Transcrição:

Demandas por um novo arcabouço sociojurídico na Organização Mundial do Comércio e o caso do Brasil Michelle Ratton Sanchez * * Professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. Pesquisadora do núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Bacharel e Doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Sumário Introdução...1 Testemunho do autor...8 Debate...13

Introdução Esta é uma breve apresentação da tese por mim depositada como requisito parcial para obtenção do título de doutora perante o Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob orientação do Professor José Eduardo Campos de Oliveira Faria. A tese foi depositada em janeiro de 2004 e defendida em 30 de abril de 2004. Desenvolvi e redigi a tese (1998-2003) durante um período de afirmação e desenvolvimento das atividades na Organização Mundial do Comércio (OMC), como ente responsável pela promoção de um fórum para criação e aplicação de regras do sistema multilateral. A OMC foi criada em 1994, durante um momento histórico de intensificação das relações tanto entre os Estados como entre outros atores ditos de caráter não-estatal, no cenário internacional. Tanto quanto a intensificação, o que apontei na tese sob ambas as vertentes de fragmentação e de concentração do processo de globalização, a forma com que essas relações e interpenetrações foram estabelecidas também foi desafiadora para a concepção de ordem até então. Tal dinâmica de novas interações provocou a quebra de referenciais de espaço e tempo, basilares para o direito. Proporcionou uma pluralidade de espaços e a concomitância de tempos que desafiou e afetou a estabilidade do Direito Internacional. Assim como em outras áreas, no sistema multilateral de comércio, as relações perpassaram os sujeitos de Direito Internacional clássico (os Estados) e requereram uma reavaliação de suas posições no sistema internacional, tanto em relação a mudanças no próprio Estado quanto à emergência e crescente influência dos atores não-estatais. A quebra dos referenciais de espaço e tempo apontou, assim, para a necessidade de reestabelecer as diferentes formas de interação diante da pluralidade de atores e promoveu questões sobre: em que medida e como é possível estabelecer as redes de interação e, sobretudo, de cooperação entre os diversos atores? A tese partiu, então, da premissa de que alguns destes novos desafios proporcionados pelo processo de globalização afetaram o sistema multilateral de comércio, em específico a regulamentação da OMC. Objetivo e hipóteses Ao analisar as complexas relações e interferências entre os diferentes atores, centrei a atenção nas demandas por um novo arcabouço sociojurídico na OMC, ou seja, nas demandas por estruturas institucionais que admitam o reconhecimento de novos sujeitos e novas fontes no sistema multilateral de comércio. Pode-se indicar que a forma de análise se configura como uma sociologia jurídica do direito do comércio internacional. A principal hipótese do meu trabalho era a de que se há novos atores nos fóruns de caráter pressupostamente intergovernamental, como a OMC, eles acabam por provocar novas dimensões de espaço e tempo para a regulamentação nesses fóruns. A fim de confirmar a hipótese, em uma a primeira parte da tese, examinei se os atores não-estatais pretendiam obter novas formas de participação, o que poderia alterar 1

a estrutura sociojurídica da OMC, uma organização constituída sobre a lógica interestatal em seus moldes tradicionais. Em uma segunda parte do trabalho, propus a mesma hipótese para analisar como tais transformações têm sido recepcionadas por atores relacionados à política de comércio exterior, no Brasil. Em síntese, no trabalho da tese, procurei detectar as tendências e os limites da regulamentação do comércio internacional na OMC frente às mutabilidades constantes dos elementos integrantes do sistema mundial atual e as novas demandas apresentadas pelos diferentes atores em interação e o caso do Brasil. Estrutura da tese Como indicado, para a análise das influências da globalização no direito do comércio internacional definido no âmbito das relações multilaterais na OMC e o caso do Brasil, organizei a tese em duas partes. Na primeira, analisei a influência das novas demandas na regulamentação da OMC e, na segunda parte, analisei como o Governo e a sociedade brasileiros reagem ante a tais mudanças. A primeira parte foi, então, dividida em sete itens. Uma introdução (item 1), com a colocação do tema e das hipóteses a serem analisadas. No item 2 aponto a metodologia de análise, nos itens 3, 4 e 5 apresento e relaciono a estrutura do espaço e das instituições relacionadas ao direito do comércio internacional na OMC e no item 6 dimensiono as influências dos processos de fragmentação e cooperação na constelação jurídica do sistema multilateral de comércio. No sétimo item, por fim, apresento algumas conclusões do trabalho. Mais detalhadamente, a partir do item 2, aponto que é possível haver a apresentação de uma nova forma de organização social um novo modo de produção, nos termos da teoria de Boaventura de Sousa Santos. Identificado o novo modo de produção cosmopolita, analiso, no item 3, como o mesmo tem influenciado a regulamentação da OMC de 1994 até hoje. No item 4, com o propósito de identificar as unidades de prática no sistema multilateral de comércio, apliquei os conceitos de unidade interna (formal) e de unidade externa (informal). Ao configurar essas duas unidades de prática na OMC, procurei trazer uma leitura mais abrangente do sistema multilateral de comércio, a fim de que fosse possível configurar as diferentes formas de participação e interferência admitidas e aquelas que permanecem como demandas. Considerando-se a pluralidade, inclusive de atores, em relação a cada uma das unidades, no item 5 analisei diferentes instituições (ou atores) capazes de organizar o fluxo constante de relações sociais que se estabelecem no espaço estrutural da OMC. O Estado como a instituição tradicional do sistema interestatal assume um papel privilegiado na OMC, com o especial e exclusivo direito de deliberação (voto). Os demais atores foram, então, identificados em relação a suas formas de interferência na OMC: como comerciantes, como assistentes ou propositivos. No item 6, passei então à análise da constelação jurídica na OMC, ou seja, a criação e aplicação da regras do sistema multilateral de comércio e o mecanismo de solução de controvérsias. O objetivo neste item foi apontar as influências do pluralismo em relação 2

aos mecanismos da OMC, bem como as novas tendências de formulação de respostas admitidas pelo sistema. Na conclusão, item 7, procurei discernir as resultantes do processo de globalização que promoveram "distúrbios" nas formas tradicionais de concepção do sistema internacional e, conseqüentemente, nas suas respectivas formas de regulamentação, no caso, sob o enfoque no sistema multilateral de comércio regulamentado pela OMC. Na segunda parte do trabalho, procurei trazer a hipótese ao caso brasileiro e, para tanto, concentrei a análise nos resultados obtidos em entrevistas a representantes significativos na formulação da política de comércio exterior do Brasil. A tese ainda conta com uma série de apêndices nos quais, além de apresentar a metodologia aplicada nas pesquisas de campo, consolidei os resultados dessa pesquisa. Nos apêndices procurei destacar os procedimentos definidos para a participação de atores não-estatais na OMC e indicar a relação de atores (inclusive brasileiros) que participaram até o momento por meio dos procedimentos indicados. Modelo teórico adotado e importantes conceitos aplicados O modelo teórico escolhido para desenvolver a principal hipótese do trabalho foi o de Boaventura Santos. Este modelo estrutura-se em torno de seis modos de produção (doméstico, da produção, do mercado, comunitário, da cidadania e mundial), que se organizam em torno de estruturas básicas e constelações. Tal modelo se apresentou como o mais adequado para identificar uma diferenciação no espaço mundial entre o interestatal e o cosmopolita. Um primeiro espaço ao qual se adequam os institutos do Direito Internacional clássico e um segundo que aponta para a emergência das novas formas de interação e dimensões de espaço e tempo (o que toca no tema da regulamentação). Além disso, os demais modos de produção identificados na teoria de Boaventura Santos favoreceram uma análise mais detalhada sobre as formas de atuação dos diversos atores na OMC. Em relação aos conceitos aplicados no trabalho, em virtude das mudanças nas concepções tradicionais de espaço e tempo, muitas das nomenclaturas técnicas do Direito Internacional ficaram prejudicadas. Tanto quanto a pluralidade de relações, emerge uma diversidade de termos para definir as novas relações. Assim, quanto às diferentes concepções espaciais, foram aplicados os termos: "local", "infranacional", "nacional", "interestatal", "internacional", "transnacional", "cosmopolita", "mundial" e "global". A partir da tradicional distinção entre o nacional e o internacional, o "nacional" manteve-se como o conceito das acepções relacionadas ao Estado como ente político. Quanto ao "internacional", parti da constatação de que o conceito estava muito fragilizado tal como aplicado nas teorias políticas atuais e por essa razão restringi parte desse conceito ao interestatal, ou seja, o espaço em que ocorrem as relações entre os Estados. Apliquei os termos "interestatal" e "cosmopolita" como referências a um espaço estrutural específico, no contexto dos modos de produção identificados no item 2.1. O termo "infraestatal" manteve o referencial do Estado e foi utilizado, em especial, para 3

referências relativas a instituições públicas com atuação para além do espaço nacional, mas que, de alguma forma, ainda mantêm uma relação com o espaço nacional (p.ex. parlamentos e autoridades públicas). O conceito de "transnacional" foi aplicado para definir instituições com atuação em mais de um Estado, sem vínculo com apenas uma ordem jurídica nacional nem ao Direito Internacional (como esse foi classicamente concebido). Os termos "local" e "global" aparecem com uma dimensão sem referência necessária ao Estado como entidade política. Referem-se, respectivamente, às particularidades identificadas em um espaço-tempo e às totalidades comuns a diferentes espaços-tempos. Por fim, ainda apliquei na tese o termo "mundial" com referência ao que envolve totalidades que, no entanto, podem ser congruentes e incongruentes. O "mundial" difere-se, no trabalho, do "global" na medida em que este permite identificar os elos comuns de meio-ambiente e patrimônio comum da humanidade, enquanto que o "mundial" pode fazer referência tanto a esses elementos como a outros de unidade mais tênue (como a questão de direitos humanos e multiculturalismo). Outro conceito aplicado a ser esclarecido é o de "instituições não-estatais". Ao invés de atores, na tese utilizei a nomenclatura "instituições" em consonância com a teoria de Boaventura Santos. Tendo em vista que a OMC é uma organização de caráter intergovernamental, que admite como Membros Estados, e no caso, também, Territórios Aduaneiros, o conceito de "instituições não-estatais" admitiu um caráter residual e serviu-me para definir todos aqueles atores que não são e não podem vir a ser Membros da OMC. Adicionalmente, também foi necessário incluir no conceito toda e qualquer forma de organização e representação social que não o Estado na forma como ele é representado na OMC. O conceito, quando aplicado às estruturas e mecanismos jurídicos da OMC, inclui, a título de exemplo: organizações intergovernamentais, organizações não-governamentais, parlamentares, autoridades públicas infra-estatais, mídia e especialistas com atuação na sua capacidade pessoal. Observações sobre os dados apresentados Uma parte central da tese está fundamentada em pesquisas de campo, que se concentraram em análises de documentos oficias e não-oficias da OMC, na coleta de material de atores não-estatais e entrevistas com funcionários da OMC, representantes do Governo brasileiro e de atores não-estatais. Todos os dados levantados restringiramse ao período de 1 de janeiro de 1995 a 30 de setembro de 2003. Na coleta dos dados da pesquisa de campo pretendi identificar a institucionalização dos canais para participação na OMC e em que medida os atores não-estatais os utilizam, e o quanto demandas por novos mecanismos, por um lado, já alteraram a estrutura institucional da OMC ou, por outro, ainda remanescem como demandas. O objetivo mediato na coleta dos dados foi também identificar as tensões entre o espaço interestatal (garantido aos Membros da organização intergovernamental) e o espaço cosmopolita na OMC, tal como desenvolvido na tese. Nessa análise, grande parte dos dados levantados foram testados em relação à constelação jurídica da OMC, em seus três níveis, ou seja, no direito como mecanismo 4

para: (i) a regulamentação ou criação de regras; (i) a integração ou aplicação de regras; ou (iii) a solução de controvérsias. A previsão geral de participação para os atores nãoestatais está no Acordo Constitutivo da OMC (Artigo V) e algumas regulamentações e interpretações específicas para cada mecanismo foram desenvolvidas ao longo dos anos. No sistema da OMC, o processo de negociação de regras dá-se nas Conferências Ministeriais, realizadas a cada dois anos, e nas negociações prévias ou posteriores a tais conferências realizadas com o objetivo de preparar a agenda ou dar continuidade às negociações. Se na Rodada Uruguai não havia qualquer mecanismo para a participação de atores não-estatais, com base no Artigo V, a partir de Cingapura estabeleceu-se uma forma específica para tal participação e algumas outras alterações foram necessárias nos últimos anos face à crescente demanda. Entretanto, as medidas adotadas até hoje não fizeram nada mais do que implementar parte das previsões estabelecidas no Artigo V do Acordo Constitutivo. E ainda hoje grande parte da demanda relativa aos aspectos institucionais com uma relação direta com processo de criação de regras tem por objetivo implementar esse artigo e finalmente promover consultas e cooperação entre a OMC e os atores nãoestatais. A perspectiva de integração da constelação jurídica tem como principal mecanismo para aplicação das regras na OMC o Mecanismo de Revisão de Políticas Comerciais, que analisa periodicamente a política comercial adotada pelos Membros conforme a participação do Membro no volume de transações internacionais. Ao lado desse mecanismo há também o trabalho contínuo promovido pelos Conselhos e Comitês das OMC, os quais recebem as notificações dos Membros sobre as regulamentações e medidas que tenham relação com os Acordos da OMC. Para nenhum desses mecanismos há uma regulamentação específica quanto à participação de atores não-estatais. E, dentre as poucas demandas apresentadas por atores não-estatais para que seja possível a sua influência na aplicação das regras pela OMC, destacam-se aquelas baseadas na consolidação do Artigo V, com vistas a promover mecanismos de consulta e cooperação para essa forma de regulamentação. Quanto ao sistema de solução de controvérsias, desde que a OMC foi constituída, esse foi talvez o principal tema de debate sobre a Organização. É o mecanismo que mais aporta aspectos "jurisdizados" na Organização. A possibilidade de influência dos atores não-estatais neste mecanismo decorre tanto de uma atuação de acordo com as previsões nos Acordos da OMC como de uma atuação por mecanismos não-oficiais. No primeiro caso, há a possibilidade de o Painel solicitar informações técnicas à organizações intergovernamentais e não-governamentais. Os mecanismos não-oficiais são aqueles pelos quais são apresentadas as novas demandas de participação por uma insuficiência nos mecanismos formais. Assim, existem ainda muitas demandas pendentes para maior influência de atores não-estatais no mecanismo de solução de controvérsias; dentre as quais: aquelas que já estão em pauta para revisão do mecanismo de solução de controvérsias; aquelas que já foram em algum momento objeto de proposta por parte dos Membros; e as novas 5

propostas que se concentram no espaço cosmopolita, em demandas por parte de atores não-estatais. Na Parte II da tese, com base nas entrevistas realizadas e nos dados obtidos, observei que a participação da sociedade civil brasileira está em movimento crescente, mais acentuado a partir de 2003. Mas, na relação entre os espaços interestatal e cosmopolita, foi identificada ainda uma forte dependência dos atores não-estatais brasileiros, em geral, em relação ao espaço interestatal. Dos representantes da sociedade civil entrevistados na pesquisa de campo, 90% não pretendia aumentar sua participação no espaço cosmopolita. Os entrevistados que integram essa maioria parecem identificarem-se com a política promovida pelo Governo brasileiro, ou (i) pelo fato de serem muito influentes na definição dessa política no nível interno, ou (ii) por não terem conhecimento da agenda de negociações comerciais multilaterais nem de seu conteúdo técnico, ou, (iii) mesmo por acreditarem na representatividade e qualificação dos negociadores brasileiros. Restam ainda 10% das instituições brasileiras entrevistadas que apontaram para uma definição de diplomacia pelo espaço cosmopolita. Nesse caso, as instituições entrevistadas destacaram uma atuação independente, quando não conseguem desenvolver sua participação no âmbito interno. No entanto, essas instituições, em especial por reivindicarem a mudança do status quo, não têm a OMC como um fórum possível para apresentar suas propostas. Conclusões Das análises desenvolvidas nas duas partes do trabalho, com uma relação estreita com os resultados obtidos na pesquisa de campo, foi possível concluir que: (i) A criação da OMC favoreceu o incremento do grau de "jurisdização" do sistema multilateral de comércio, inclusive no que tange a participação de atores nãoestatais. No entanto, a regulamentação sobre a forma de participação e o detalhamento sobre como devem se desenvolver consta de documentos diversos com caráter de soft law e varia muito de um mecanismo da constelação jurídica para outro. (ii) No período analisado, observou-se uma participação crescente dos atores não-estatais nos mecanismos de participação. Mas, apesar de a "jurisdização" do sistema multilateral de comércio ter favorecido a repolitização do próprio sistema, há uma vasta gama de demandas pendentes por parte daqueles atores. Isso aponta para o fato de a OMC não ter mecanismos de participação que atendam aos anseios dos atores em interação (ou mesmo sensibilidade para defini-los) e que, assim, sejam apresentadas demandas para mudanças no arcabouço institucional. (iii) Grande parte das propostas relativas aos aspectos institucionais da OMC volta-se para a incorporação de elementos com um caráter cosmopolita na estrutura de decisão de um fórum interestatal. No entanto, não pretendem alterar o núcleo interestatal da Organização. (iv) A influência das demandas dos atores não-estatais oscila conforme o grau de interesse dos atores nos mecanismos previstos, a identificação de um ou outro 6

mecanismo como mais eficaz, a sensibilidade institucional de cada uma das formas de regulamentação e, por fim, conforme a capacidade responsiva da OMC. (v) A forma com que as propostas estão sendo incorporadas ocorre como distúrbios no sistema; não há hoje uma incorporação sistêmica. Isso gera incerteza sobre a alteração do arcabouço sociojurídico da OMC e a funcionalidade da integração de novos elementos. Os desafios para a OMC acabam sendo, portanto, descobrir novos mecanismos de organização e de interação sem desfuncionalizar aqueles já existentes e definir os mecanismos de sensibilidade institucional em relação às novas demandas sem provocar uma instabilidade caótica. Diante dos desafios para apreender as diferentes formas de organização de interesses e suas demandas por um novo arcabouço sociojurídico, a tendência na OMC parece ser de incorporar essas turbulências com base na experimentação de formas de governança, em definições ad hoc. Com base nas conclusões da Parte I, na Parte II as conclusões indicam que, em face das mudanças no arcabouço sociojurídico na OMC, o Estado e a sociedade civil brasileiros não estão aptos a recepcionar e promover essa mudança. Não existe hoje é a disposição para a definição de uma diplomacia de caráter pluralista na área do comércio internacional, especificamente em relação à OMC. Se essa perspectiva de atuação se mantiver e as mudanças no arcabouço sociojurídico da OMC continuarem, haverá um crescente déficit de representatividade dos atores brasileiras no sistema multilateral de comércio. 7

Testemunho do Autor O título completo da tese é Demandas por um novo arcabouço sócio-jurídico na OMC e o caso do Brasil e nela trabalho, basicamente, com duas hipóteses. Uma que supõe existirem relações que se desenvolvem para além das fronteiras dos Estados, e outra que se propõe a identificar como, na OMC, algumas destas relações já estavam sendo estimuladas, como a estrutura da Organização estava adequada e como as novas demandas estavam aparecendo. Nesse contexto, a intenção era analisar como o direito ocidental moderno, a partir de sua caracterização espaço-tempo classicamente restrita ao território, entende estas novas relações além fronteiras. Na segunda parte do trabalho, faço uma análise do caso brasileiro e de como nossa sociedade, hoje, estaria envolvida nesse processo além fronteiras diante da OMC. Quis combater um falso consenso de que a sociedade brasileira não está apta a participar do sistema internacional. Para tanto, desenvolvi pesquisas de campo, fiz entrevistas com algumas instituições que já participaram da OMC e com organizações de atuação significativa no contexto internacional que não tinham participado ainda, justamente com o objetivo de questioná-las sobre o porquê do conceito de comércio internacional que elas mantinham. A tese oscila muito entre o normativo e o descritivo, seguindo sempre a perspectiva de explorar o normativo com a idéia de descrever melhor algumas categorias. Na primeira parte de trabalho, e aí minha experiência em Genebra foi muito importante, tentei notar o quão residual o conceito de internacional estava se tornando. Tudo que não se conseguia justificar chamava-se de internacional, correndo-se, assim, o risco de perda, para o direito, da própria natureza do que é internacional. Ao perder essas categorias de sujeitos e fontes que foram desenvolvidas em uma área específica do direito se correria o risco de corromper estes conceitos antes mesmo de se definir as novas tendências. Para isso utilizei o modelo do teórico Boaventura de Souza Santos, um sociólogo do direito. A tese tem também esta característica, pois sempre desenvolvi pesquisa na área do direito com enfoque sociológico e é da natureza da sociologia trabalhar com uma perspectiva interdisciplinar, aliando conceitos de áreas especificas com a filosofia do direito e criando estas pontes no conhecimento. Essa é a natureza que permeia a tese, e permeia o modelo do Boaventura. Faço esta ressalva porque foi essa uma das principais críticas da minha banca de defesa da tese: o quanto o modelo do Boaventura é fechado em si. Mas justifico a utilização deste modelo e deste autor afirmando que não é o trabalho do Boaventura que muitos relacionam ao Fórum Social Mundial que utilizo, e sim o trabalho desenvolvido até sua tese de livre docência em Yale, Towards a New Common Sense. Uso esse modelo porque ele utiliza a mesma linguagem da sociologia jurídica a qual estava mais adaptada. Não quis re-imaginar ou re-institucionalizar o cosmopolitismo, mas trabalhar com os modos de produção do sistema capitalista, até porque isso seria mais adequado dentro do contexto da OMC. Além disso, esse modelo 8

traz algo muito importante que é justamente o destaque dado a posição dos atores na Organização de um sistema e a distinção de sua racionalidade. Foi com base nisso que tentei buscar nas Relações Internacionais a distinção entre o que eram as relações interestatais, nas quais determinados atores sempre foram privilegiados, e um outro campo de atuação que chamo de o das instituições nãoestatais. Este é um conceito bastante residual do modelo do Boaventura Santos, que utiliza a nomenclatura de instituições privilegiadas para cada modo de produção que ele identifica na sociedade com a idéia de atores não-estatais. Não quis utilizar o termo atores não-estatais para não deixar o Estado simplesmente como mais um ator. Discordo desta visão e considero que o Estado tem ainda um papel além fronteiras muito importante nas relações interestatais. Ele não é mais um ator, ele é o único ator. Em outro espaço, no qual também utilizo a nomenclatura cosmopolita sem me vincular a nenhuma das linhas, desenvolvo um conceito que pode adequar o perfil de cosmopolitismo e neste contexto de cosmopolitismo o Estado poderia ser considerado como mais um ator, e para tanto recorri à nomenclatura de instituições não-estatais. No final do segundo capítulo do trabalho já discordo um pouco sobre o histórico do processo de globalização e de quanto o Estado participa como um ator importante na regulamentação do comércio internacional. No terceiro capítulo tento descobrir qual é a regulamentação da OMC, a natureza desta regulamentação e quais são as particularidades que me permitem afirmar que esta Organização já reconhece uma parcela destas relações além fronteiras. Identifico, assim, alguns elementos importantes. Há uma institucionalização com a criação e funcionamento da OMC, um alto grau de jurisdização e muitas áreas passam a ser regulamentadas em um sentido de homogeneização de legislação. Além disso, há a idéia do empreendimento único, que passa a ser muito importante com relação à flexibilidade que os Estados tem ou não na aceitação destas regras na sua regulamentação interna. Pretendo mostrar que o sistema nacional passa a ser permeado não só economicamente, mas também juridicamente no tema do comércio internacional. Com isso, começa a haver uma demanda pela repolitização do sistema, na medida em que o centro da produção de regras é deslocado, há também uma demanda para o deslocamento da esfera de decisão, o que enfatiza a questão de como se introduzir alguns interesses locais nesta estrutura multilateral que não é mais regida apenas por aquele modo de produção interestatal no qual o Estado é o único ator. Há a possibilidade de fazer este tipo de análise pela perspectiva do Estado, suas mudanças, o papel que ele cumpre na sua regulamentação, mas quis analisar justamente o papel das instituições não-estatais e como isso se deu na OMC. Dessa forma, noto um tratamento muito diferenciado entre a OMC de 95 até 99, quando aconteceu a famosa reunião ministerial em Seattle e a OMC de 99 até os dias atuais. Nesta análise consigo identificar que na OMC atualmente coexiste este sistema interestatal, baseado em um conceito de cidadania mais hierárquico, no qual o Estado vai representar os interesses 9

da sua população por meio da sua política externa; e um outro espaço cosmopolita, no qual não há mais o conceito de representação, mas o conceito de participação direta. Neste momento, identifico este cosmopolitismo caracterizado por relações que não seriam relações naturalmente de anarquia, tal como ocorre tradicionalmente no sistema internacional do Hedley Bull, mas uma categoria hetererárquica, em que algumas instituições assumem uma posição de horizontalidade e, a cada momento, uma chama para si o ponto de decisão. Conseguindo-se, por várias vezes, identificar o ponto de decisão ad hoc, como uma frente que se desenvolve com categorias da teoria geral do direito. Nestas relações internacionais de caráter cosmopolita, as relações heterárquicas me permitiriam trabalhar tanto com a idéia de coerência na relação entre diferentes instituições que puxam para si a decisão, como com a idéia de governança global, que hoje tem muitos teóricos. No item 4 trago a sistematização destas relações dentro da OMC e trabalho com os conceitos de unidade prática interna e de unidade prática externa na Organização. Faço um paralelo entre as idéias de transparência interna e externa, mas vou além, porque a transparência interna, de forma geral, é tratada como a transparência para os membros da Organização, e a transparência externa é em relação ao público. Trago também a idéia de unidade interna como tudo o que é reconhecido formalmente pela Organização em termos de participação e representação, e a idéia de que esta atuação é vinculante. Na unidade interna pretendo identificar o que é informal, justamente para compreender, no trabalho da sociologia jurídica, quais são as turbulências que estas instituições não-estatais trazem para a OMC como, por exemplo, a demanda para ampliar o espaço cosmopolita. Trabalho ainda com alguns conceitos que são levantados da democracia dentro das organizações internacionais, como as idéias de representação, legitimidade e prestação de contas. Pretendo analisar quatro categorias que são identificadas como forma de participação: informação, consultas (que seriam participação por meio de fluxo bilateral de informação), cooperação (construída a partir de consultas mais freqüentes e interação constante), e deliberação (envolvendo o processo de votação). Como na pesquisa de campo não encontrei nenhuma demanda por parte das instituições não-estatais de influírem no processo de deliberação, busquei analisar o que existe hoje como mecanismo nesta unidade de prática interna, como mecanismo formal para informação, consulta e cooperação, e o que existe como mecanismo informal na unidade externa. A isso agrego a pesquisa de campo e apresento em quadros sistemáticos na tese, sobre o que existe, o que se demanda e o que se identifica como falha. No item 5 do trabalho trato da identificação da pluralidade destas instituições e isso fundamenta a utilização do modelo do Boaventura Santos, que é um modelo que me permite identificar as instituições pela racionalidade e as dividir em 4 categorias de instituições que participam da OMC. Uma delas o Estado, que seria a instituição para deliberação; depois as instituições não-estatais comerciantes, que têm um papel diferenciado na OMC; em seguida as organizações não-estatais assistentes, que são 10

aquelas que participam dos mecanismos de consulta formal desta unidade de prática interna; e por último as instituições não-estatais propositivas. Esta última categoria entra justamente porque há um grupo forte de instituições que não querem necessariamente participar de nenhum mecanismo formal da OMC e isso é deliberado entre estas instituições, ainda que se ampliem os mecanismos de participação. Elas não pretendem participar da OMC seja por questões ideológicas ou por preferirem outros mecanismos de participação, como os fóruns paralelos que são desenvolvidos perante as Conferências Ministeriais. Depois disso, entro mais na parte jurídica do texto para tentar identificar o quanto esta tensão entre o espaço interestatal e o espaço cosmopolita na OMC foi traduzida pelos mecanismos jurídicos, entre eles o mecanismo do processo de negociação de regras que basicamente se concentra na Conferencia Ministerial da OMC. Em um segundo momento, são identificados os instrumentos de interação que seriam de aplicação das regras como, por exemplo, as reuniões de conselhos e comitês da OMC, simpósios e alguns trabalhos cotidianos da Organização, e um terceiro nível que seria o mecanismo de solução de controvérsias que aplica e interpreta suas regras. Como conclusão geral, entre todas estas categorias e a descrição delas, identifico que os mecanismos mais jurisdizados da OMC são os mais responsivos as demandas das instituições não-estatais. Entre eles há este desequilíbrio que existe hoje na OMC, entre o procedimento de interpretação e o de aplicação das regras. O mecanismo de solução de controvérsias acaba sendo um dos mais jurisdizados, com um grau médioalto, porque é um mecanismo ainda diplomático-jurídico, mas o seu processo, se equiparado ao processo executivo-legislativo nacional, estaria ainda menos jurisdizado e menos submetido ao controle por estas instituições não-estatais e aberto a esta participação. Como estes mecanismos mais jurisdizados são mais responsivos, isso pode acabar agravando a falta de equilíbrio, uma vez que já existem mecanismos mais jurisdizados pela natureza da Organização e a demanda das instituições não-estatais está elevando ainda mais o grau de jurisdização destes mecanismos. Isso pode ocorrer caso não se considere esta participação de uma forma sistêmica. Não se deve deixar de reconhecer que existem dificuldades internas na Organização que levam a esta constatação. Prevalece ainda, entre muitos membros, o modelo de clube da era GATT. Algumas delegações acreditam que a OMC é um mecanismo apenas diplomático, que não deve ter transparência pública, no qual os Estados decidem e que só devem responder as demandas nacionais internamente. Outra tensão existente está entre a idéia do diplomático e do jurídico. Não se pode deixar de reconhecer os riscos apontados nesta tensão entre o cosmopolita e o interestatal, uma tensão que é traduzida como Norte-Sul e que se manifesta na diferença entre a capacitação técnica e financeira das instituições não-estatais tanto dos países desenvolvidos quanto dos em desenvolvimento. Os mecanismos da OMC não estão aptos a atender esta demanda. Há um risco também de se valorizar os mecanismos do mundo ocidental, com base nos princípios de democracia e participação. A OMC ainda tem que pensar como atender a estas 11

demandas sem incorrer no risco de desequilibrar os interesses econômicos e sociais. Dentro do conceito de governança global é claro que a OMC não pode promover toda esta participação e ela jamais vai conseguir trazer sozinha este equilíbrio entre o econômico e o social, afinal isso depende de uma interação com todo o restante do sistema internacional. Há ainda algumas questões finais que permanecem, e que foram trazidas à tona na conclusão do trabalho. São perguntas sobre quem a OMC atende hoje, se ela é uma organização interestatal ou cosmopolita ou se ela pretende trabalhar com ambos os conceitos, quais os temas que a Organização abrange etc. Isso é muito importante porque justamente no capítulo 3 destaco a idéia de que a OMC avança em alguns campos de regulamentação, o que acaba alterando também o sistema do comércio internacional, assim, um possível avanço em outras áreas deve ser reanalisado. Proponho, perante uma análise conjunta, a criação de um código fonte do que pode ser colocado dentro da OMC, tanto do seu preâmbulo, quanto de seu artigo 20 revisado, para que assim ela possa ter um meio formal de comunicação com outras organizações internacionais. Um dos desafios hoje é transformar os mecanismos de organização e interação na OMC sem desfuncionalizar os já existentes. Nesse sentido, é importante destacar o lado cosmopolita e o interestatal. Deve-se reconhecer a necessidade de estabelecer um equilíbrio, pois ao se consagrar elementos mais cosmopolitas certa tensão interestatal pode ser gerada. Afinal, é nesse núcleo que se concentra o elemento da deliberação. Outro dilema é o de como definir mecanismos de sensibilidade institucional na OMC sem provocar uma instabilidade caótica. O que se constata é que muito do que é desenvolvido atualmente nesta unidade externa se torna imprevisível no que concerne à participação das instituições não-estatais. Elas, em sua maioria, são definidas em termos ad hoc, com caráter pessoal, sem nenhuma transparência e sem nenhum controle efetivo. O secretariado da OMC é quem na verdade acaba respondendo cotidianamente pelo pouco que é possível. A tendência que se constata, até pela pesquisa de campo, é que esta incorporação não sistêmica de demandas esta sendo feita sem uma preocupação com quais níveis de regulamentação se está atingindo na OMC; bem como se está sendo permitia uma participação cosmopolita e com base em experimentação ad hoc. Isto fica bastante evidente no caso de algumas posições apresentadas por instituições não-estatais, de caráter comerciante ou não, sem saber ao certo se elas são aceitas ou rejeitadas no mecanismo de solução de controvérsias da OMC. Para deixar o leitor ciente de que não foram trabalhados apenas conceitos residuais, esforcei-me em criar muitas categorias, muitas nomenclaturas. Isso é problemático na teoria das relações internacionais, pois quando se discute cosmopolitismo, governança, não fica claro quem são os atores, quais as categorias com as quais se está trabalhando e, para o direito, isto é muito complicado, afinal o direito precisa ter a noção exata de quem são os sujeitos e quais são as fontes. Esta presença de uma nova esfera cosmopolita, de um modo de produção cosmopolita, altera sensivelmente o direito internacional clássico. 12

Debate Pergunta Desde que a OMC começou a existir houve um processo paralelo muito forte e a própria rodada Uruguai já foi um exemplo deste aumento de representatividade. Vários atores começaram a se tornar presentes neste cenário em que não figuravam anteriormente. Nas outras rodadas havia um clube de ricos, alguns empresários dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) que se interessavam e os governos mediavam, faziam acordos que fossem aceitáveis, mas não havia esta complexidade de atores. Ao mesmo tempo em que isso começou a ocorrer, os acordos se tornaram cada vez mais complexos e adentraram áreas que a princípio não estão diretamente ligadas ao comércio internacional, mas sim a regulamentação doméstica. Este nível duplo e paralelo de complexidade é realmente ambicioso e traz um problema muito sério cuja solução tem que ser também ambiciosa. Tudo isto ocorre em um momento no qual os grandes pólos do comércio têm cada vez menos interesse no livre comércio ou, pelo menos, fica cada vez mais complicado para eles mesmos tratarem do assunto. Soa hipócrita os EUA falarem em livre comércio, o mesmo para a UE, e o Japão mais ainda. Ocorre uma total falta de liderança, tanto que o G-20 acabou tendo algum sucesso na Conferência de Cancun - uma vez que o sistema está completamente acéfalo, não há uma liderança no lugar de onde ela normalmente vem, sobretudo Washington. Têm-se, atualmente, atores e acordos num nível complexo e o papel do Estado é muito mais difícil. O exemplo mais cabal, em minha opinião, é a questão das transnacionais. Quando falamos nelas, sempre emerge uma questão relacionada aos interesses que estão sendo defendidos. Os EUA falam em nome da IBM Inc.? Sobre qual IBM se está falando? No passado era mais fácil haver uma identificação entre as transnacionais e o interesse de pólo da OCDE, como os EUA. Por exemplo, para uma política regional de um setor produtivo qualquer, a coincidência dos fatos de que as empresas queriam se integrar em nível mundial e que a maior parte das barreiras estavam em países em desenvolvimento, tornava fácil para os EUA dizer: Em nome da IBM, defendemos que Índia, Brasil, Malásia, Cingapura, Coréia eliminem barreiras. Atualmente não funciona assim porque as barreiras não são tão grandes e há a questão das grandes empresas transferirem empregos para esses países. O interessante agora é que a natureza deste protecionismo também se alterou, pois não apenas há o protecionismo americano tradicional possível do século XIX com aço, têxteis, agricultura, mas também se diz que não é permitido transferir livremente off-shore e outsourcing para países como a Índia e o Brasil, o que faz surgir uma briga frontal com as próprias multinacionais norte-americanas. Os EUA compraram essa briga de vez. Se o Kerry vencer as eleições americanas teremos um cenário, se não ganhar teremos outro, mas de qualquer forma o que queria expor era o elemento, digamos, histórico desta questão da liderança, da falta de liderança e do posicionamento, sobretudo dos EUA, que sempre foi o líder do sistema. 13

Isso teve algum ponto de contato na tese? Porque, certamente, são parâmetros para se estudar milhões de outros assuntos. Drª. Michelle Sanchez Todas essas relações acabaram me surpreendendo em alguns momentos da tese. Acho que a complexidade da qual você fala, o protecionismo crescente nos países, uma busca por barreiras que nos leva a questionar até que ponto elas podem continuar sendo barreiras, está realmente muito presente. No início do trabalho estava mais propensa ao rompimento da idéia de espaço e tempo, mas não se pode mais fechar seu território completamente. Na verdade, até se pode fazer, afinal a política americana tem feito isso cada vez mais na gestão Bush, mas não se pode deixar de reconhecer que não é eficaz. A flexibilização crescente da cadeia produtiva foi uma das minhas preocupações quando abordei esta idéia de separar o interestatal e o cosmopolita, porque existe uma tendência forte a se dizer que os EUA estão aqui, mas estão em nome da IBM. Isso tem sido algo bem normativo, e os Estados devem assegurar o elemento interestatal e manter este núcleo de decisão, senão podem perder tudo. Depois, no espaço cosmopolita, o Estado pode sim ser mais um ator e daí ele pode se aliar a IBM. Claro que existe este outro elemento, mas no momento da decisão isso não é tudo. Teoricamente é muito fácil se distinguir estes dois momentos, mas o que quero destacar é que neste elemento interestatal existe uma necessidade de cooperação entre os Estados para identificação de suas naturezas, para que eles se auto-identifiquem e se autopreservem como instituições políticas. Isso ocorre justamente por causa do receio em relação ao déficit que pode advir de se repolitizar um sistema e de se deixar de politizar um outro. O Estado pode perder a natureza dele, e imagino que isso possa levar a uma solidariedade entre os Estados no fortalecimento desta esfera interestatal. Preocupei-me muito com isso, mas não quis escrever ao longo da tese. Poderia ter escrito a tese de trás para frente para trazer dados, mostrar a participação e o estado das instituições e depois começar a normativizar, mas tive dificuldade justamente em discernir para o leitor estas relações de forma a que não permanecesse a idéia das relações de poder, dos EUA fazendo alianças. Exatamente em que níveis ocorreriam estas interações? Será que quando os EUA estão se aliando a IBM existe apenas isso? Não se limita aos EUA e IBM, mas também perante a sua sociedade civil, o sistema internacional, ou seja, existe uma postura de Estado, não é um ator que está totalmente instrumentalizado pelo poder econômico. Numa parte da tese exponho isso de uma forma um pouco mais evidente. A presença das transnacionais se dá justamente no mecanismo de solução de controvérsias. Fica mais evidente o quanto elas se aliam aos Estados e com os exemplos isso fica mais claro. Dos casos sobre os quais consegui dados, foram os casos dos EUA e do Japão os que tinham mais fontes na doutrina, mas é claro que as alianças existem, o que eles chamam de public-private partnership. 14

Comentário Gostaria de ouvir você falar sobre as demandas do Brasil na OMC. Recentemente, há duas ou três semanas, houve aqui no CEBRI uma apresentação excelente do embaixador Seixas Correa, o chefe da delegação brasileira na OMC, na qual ele se referiu ao que aconteceu depois da Conferência de Cancun, que foi um fracasso, e como a situação se restabeleceu de uma maneira favorável. O embaixador Seixas Correa aventou para uma conferência que vai haver em Hong Kong, se não me engano, em setembro, onde serão retomadas as questões que foram abandonas, vários pontos de atrito que não foram resolvidos em Cancun. Drª. Michelle Sanchez Realmente não falei sobre a segunda parte do trabalho. O que pretendi analisar neste ponto foi o quanto à sociedade brasileira estaria envolvida neste processo além fronteiras. Foi uma parte do trabalho que, no momento de estruturar e fechar a tese, fiquei em dúvida se deveria fazer dela uma segunda parte, um capítulo ou um apêndice, porque acho que há muito a ser desenvolvido e concluído a seu respeito. Decidi por deixá-la como uma segunda parte do trabalho, como uma exemplificação, porque senti que era uma informação importante para este argumento das relações Norte-Sul países desenvolvidos e em desenvolvimento. Fiz entrevistas, das quais os questionários estão anexados a tese, com representantes do governo brasileiro e da sociedade civil mais ampla, incluindo o setor empresarial. A participação da sociedade civil brasileira na OMC pela unidade interna, pelos mecanismos formais, deu-se apenas em conferências ministeriais e até 2003. Em Cancun, apenas quatro instituições participaram, dentre as quais duas eram do setor empresarial (CNA e CNI) e outras duas internacionais (Greenpeace e WWF). Quando estava quase fechando a tese, fui a Cancun participar do projeto de pesquisa de campo e vi que vinte instituições brasileiras haviam se inscrito na conferência ministerial, não contando as que não estavam no mecanismo formal e participando dos fóruns paralelos. Também foi uma grande surpresa a composição da delegação brasileira. Pela primeira vez o Ministro Celso Amorim cadastrou a todos que pediram para serem cadastrados na delegação, assim todos podiam participar das reuniões, etc. Isso acontece em muitas delegações, mas não era a tradição brasileira. Às vezes, um ou outro representante de um setor empresarial estava presente na delegação, mas nunca foi algo formalmente reconhecido. Neste caso também não foi formal, mas teve uma abertura deliberada. Quem estava em Cancun sabia que se quisesse fazer parte da delegação brasileira poderia se inscrever, entrar nas reuniões e ter um diálogo mais próximo com a delegação. Algo que pude notar da sociedade civil brasileira, por meio das entrevistas, é que, primeiramente, não é correto afirmar que ela não tenha interesse pelo comércio internacional e não tenha capacidade de atuar em mecanismos internacionais. Em muitas outras áreas distintas, como meio ambiente e direitos humanos, em quase todas as conferências internacionais, há uma grande mobilização da sociedade civil brasileira para estar presente. 15

A questão é que o tema do comércio não é de interesse da sociedade civil brasileira. Esse fenômeno é muito recente e por isso, como conversamos eu o Mário Marconini, há a necessidade de se estimular este debate no Brasil e mostrar o quanto o comércio é um tema importante, e não trabalhar apenas com essa polaridade de que o comércio é o tema inimigo, porque as relações são muito mais complexas hoje em dia. Pode até haver aspectos negativos, mas as relações são muito mais complexas e, quando se tratar de comércio e meio ambiente, por exemplo, tudo vai ficar mais complicado. Estas constatações foram muito importantes, pois a sociedade brasileira tem sim capacidade de atuar no cenário internacional e, para mim, foi um primeiro contato com movimentos sociais da sociedade civil muito complexos. Hoje trabalho com a idéia de participação destas instituições não-estatais no sistema internacional, estudando basicamente a ONU e outros mecanismos de integração regional. A nomenclatura em si já é muito difícil ONGs, sociedade civil, atores não-estatais é difícil fazer um recorte do que é sociedade civil e como ela se organiza, porque a forma de organização da sociedade civil é extremamente complexa. Essa relação além fronteiras parece estar muito presente na sociedade civil. Em Cancun isso ficou evidente. Muitas instituições tinham sido financiadas por instituições dos países do norte, mas não se podia dizer que estes tinham controle sobre a atuação delas mesmo que, em teoria, esses elementos estejam vinculados. No entanto, não havia controle em Cancun, não era necessário apresentar relatório, simplesmente buscava-se acesso à informação alianças a troca de informação era grande. Existe uma rede de informações muito mais complexa que é difícil de se traduzir para o direito internacional. É complicado porque não se consegue traduzir a forma de organização destas instituições, e uma conseqüência que isso pode trazer para o sistema é dificultar a identificação da forma do seu sujeito e quais são as fontes que se pode retirar dali. Essas considerações foram importantes para alertar que existe esta capacidade, apesar de haver pouco interesse pelo comércio internacional. O alvo da minha pesquisa agora é a relação interna do governo com a sociedade civil, que ainda é muito frágil, e sem mecanismos formais. Participei de algumas reuniões do Grupo de Trabalho Interministerial sobre Sociedade da Informação, que é aberto, mas não formal, não tem mecanismos de registro das instituições. Ele é um organismo que concentrava a participação das representações do setor empresarial e que foi ampliado, mas só o foi devido à promoção de um debate. Obviamente, quem já estava inicialmente participando do Grupo tinha um discurso especializado, afinal o discurso da OMC é muito técnico, complicado para economistas, juristas, cientistas políticos. É muito difícil traduzir nas respectivas linguagens e técnicas específicas. O que aconteceu foi que sindicatos e outras organizações e movimentos que têm uma atuação mais específica por áreas não tinham uma linguagem comum por meio da qual dialogar, gerando um déficit na comunicação. As minhas primeiras constatações foram que não havia demandas pela reestruturação, e que quando havia demandas por parte da sociedade civil brasileira eram por uma participação maior por meio do governo brasileiro. Apesar desta atuação 16

em rede, existem algumas ONGS foi muito interessante a forma como elas respondiam aos questionários que atuam com base no efeito bumerangue, ou seja, se elas não conseguem na instância nacional tentam pleitear no nível internacional e podendo com isso reverter a política do sistema nacional. Muitas ONGs já tinham esta visão de que poderiam utilizar a instância da OMC para provocar este efeito bumerangue. Comentário Uma questão que considero interessante é que, atualmente, com as vitórias no mecanismo de solução de controvérsias e o G-20, a impressão que se tem do país no exterior é muito mais positiva do que a realidade, no que concerne ao que a sociedade brasileira deve ou não comunicar ao governo. Por meio de certas atuações internacionais tem se conseguido transferir uma imagem contraditória, afinal esta é uma política que está sendo conduzida por um setor do Itamaraty com anuência parcial do Ministério da Industria e da Fazenda, que não interferem muito, mas a sociedade infelizmente não participa na construção desta posição. Pergunta Você citou a tênue ligação entre poder público e sociedade, nestas questões de comércio internacional. Tenho curiosidade de saber como isso funciona em outros países expressivos, e se existe uma forma de comunicação melhor. Minha outra pergunta é a seguinte: Você falou do jurisdicionalismo esta palavra não existe, estou inventando aqui e da implementação prática, não tão forte, do que vem a ser juridiscionado. Quais as perspectivas de incremento desta implementação prática, na medida em que as questões internacionais ainda dependem muito das relações de poder, enquanto estas questões ferem interesses de quem tem poder para admitir ou se contrapor à jurisdição? Drª. Michelle Sanchez Em relação a como se dá a participação em outros países, devo dizer que nunca estudei um outro sistema especificamente, mas em uma pesquisa mais ampla pude notar algumas questões. Inclusive neste novo estudo que desenvolvo atualmente na FGV, sobre o mecanismo de participação da sociedade civil e o governo brasileiro, pretendo fazer uma comparação com o Canadá, porque, até onde sei, Canadá, Suíça e, em menor grau, os EUA são considerados os governos que dão uma abertura maior para um diálogo com a sociedade civil. Inicialmente, as categorias que pretendo utilizar são as mesmas que apliquei na OMC informação, consulta e cooperação. A participação é, no momento, muito mais ampla. Deve-se eliminar a idéia de que ela se dá apenas naquele elemento da decisão, pois ela está tanto no momento da elaboração da política como depois na implementação. Quando houver um mecanismo de revisão de política comercial de cada país, a sociedade civil pode ter informações de como isso está sendo aplicado, quais são as dificuldades, se há mesmo uma função de denúncia. 17

Pelo que sei, o governo canadense é muito mais consultivo. Digo isso porque muitas das informações que encontrei pelo site do governo do Canadá, dificilmente encontrava no site do MRE. Às vezes, até estão disponíveis no site, mas nunca se consegue achar o mecanismo certo. Menciono tudo isso mais em referência às negociações da ALCA. O governo canadense disponibiliza o conteúdo do que está sendo negociado e isso é muito importante porque, hoje, quando é dada a publicidade no Brasil, ela é muito posterior, então não se consegue acompanhar o processo de decisão, exceto pela mídia que também tem uma tradução do comércio internacional muito imperfeita. Em Cancun, notei também que o governo tinha pelo menos duas ou três reuniões por dia com as instituições canadenses. Elas eram abertas, mesmo eu, que não era canadense, pude estar presente nas reuniões. Os pequenos agricultores se manifestavam e discutiam com o governo, então, no momento da decisão de uma conferência ministerial, via-se uma representação da sociedade civil, pelo menos aqueles que tinham a possibilidade de estar lá, de se manifestar e de participar do debate enquanto as negociações estavam em andamento. Foi muito interessante porque se teve um debate muito técnico, da sociedade civil, sobre a fórmula específica de redução de subsídios, e isso é muito significativo. Não era uma participação ideológica, política, sem sentido, na qual o governo poderia argumentar que estava apenas cumprindo protocolo, sendo obrigado a comunicar a sua sociedade civil, era efetivamente uma consulta. Então isso é o que posso citar como exemplo hoje, mas espero, realmente, conseguir mais dados porque considero importante, para o Brasil, ter estes dados comparativos. Como o Mário disse, é difícil se fazer uma análise um pouco mais antropológica, afinal nossa idéia é de que o Brasil é sempre o bonzinho do sistema internacional, o que sempre defende o que é bom e por isso há complicações na identificação da sociedade civil brasileira. Seria necessário traduzir inclusive isso para incrementar nosso autoconhecimento. Agora responderei a pergunta que se refere à idéia da jurisdização e de como implementar isso na prática. Não quero aqui equiparar, apenas fazer uma ressalva. O que tenho visto nos processos de integração regional, como na União Européia ou no Mercosul, é sempre esta tensão de institucionalizar ou não. Na Europa existe até uma área especifica de estudo sobre comitologia, quer dizer, eles estudam como os comitês estão saturados de mecanismos internos, jurisdização e formalizações. Mas se percebe que isso não necessariamente vai de encontro com a vontade uníssona na política, porque se avaliarmos, por exemplo, a França, vemos que ela não está contente, a Alemanha também não ninguém fica contente, mas é o que resulta daquele conjunto. Essas relações de poder são algo a se atentar e por isso exponho esta tensão entre o interestatal e o cosmopolita o cosmopolita não pode avançar sem ter em conta o interestatal, existe um limite e é um limite a ser respeitado. Existe um avanço que não é apenas limitado por isso, já que o conjunto leva a algumas mudanças que isoladamente não são do interesse dos EUA, mas que são atingidas na OMC sem os interesses dos grandes players. Às vezes, por falta de atenção ou cansaço, coloca-se uma nota de rodapé 18