SUMÁRIO EXECUTIVO DE PESQUISAS SOBRE PRISÃO PROVISÓRIA Rede Justiça Criminal Agosto de 2013



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Transcrição:

SUMÁRIO EXECUTIVO DE PESQUISAS SOBRE PRISÃO PROVISÓRIA Rede Justiça Criminal Agosto de 2013 PREFÁCIO Em 2009 a Open Society Foundations entrou em contato com organizações da sociedade civil no Brasil para discutir o uso abusivo da prisão provisória no país, e ao longo de alguns meses realizou uma serie de reuniões com as organizações que vieram a constituir a Rede de Justiça Criminal, e desse diálogo surgiu o financiamento que possibilitou a realização das pesquisas aqui discutidas e também de uma série de ações descritas abaixo. No inicio de 2010 éramos sete organizações 1 e realizamos nossa primeira reunião de planejamento. Ao longo daquele ano, percebemos a necessidade de um documento que trouxesse nossas propostas para avançar em direção a uma justiça criminal mais justa e eficiente. Foi aí que surgiu nosso documento norteador, a Agenda Mínima 2, resultado de um trabalho colaborativo, que traz 11 tópicos referentes à justiça criminal. São eles: fortalecimento da Defensoria Pública, fim do uso abusivo da prisão provisória, gestão mais eficiente do sistema prisional, valorização da educação e do trabalho no sistema prisional, medidas para as mulheres encarceradas, medidas para os egressos, efetivação do controle externo do sistema carcerário, transparência nos dados e acesso à informação, incentivo às penas alternativas, desafios da Lei de Drogas e justiça restaurativa. 1 Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Conectas Direitos Humanos, Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), Associação pela reforma Prisional (ARP), Justiça Global, Instituto Sou da Paz, Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC/PASTORAL CARCERÁRIA) e Instituto de Defensores dos Direitos Humanos (posteriormente) 2 Disponível em http://www.soudapaz.org/portals/0/downloads/agenda%20m%c3%adnima%20- %20Justi%c3%a7a%20Criminal.pdf 1

A construção da agenda mínima nos fez pensar na nossa atuação enquanto grupo. E também nos levou a lugares importantes em relação à tomada de decisões em Brasília. Percebemos que poderíamos ter um trabalho relevante de advocacy no Executivo e Legislativo se tivéssemos alguém atuando em Brasília vale lembrar que as organizações da Rede encontram-se hoje em São Paulo e no Rio de Janeiro. Iniciamos a elaboração de boletins informativos com o objetivo de levar informação qualificada para o Legislativo e o Executivo de forma simples e direta. A partir do trabalho dos projetos desenvolvidos pela Rede, não apenas de pesquisa, começamos a produzir informação de qualidade com o intuito de avançar nos pontos da agenda mínima e começamos a ocupar um espaço até então não ocupado pela sociedade civil em relação ao tema da justiça criminal. Fizemos um levantamento da produção legislativa no Congresso Nacional no ano de 2010. A Rede acompanha hoje em torno de mil projetos de lei que tratam de temas de justiça criminal. Avaliamos os projetos a partir de dois critérios, relevância em relação ao conteúdo e ao momento de tramitação. Desde o primeiro mapeamento dos projetos de lei, elegemos o Projeto de Lei nº 4208/2001 (Lei das Cautelares) como um dos pontos centrais para o avanço das ações pela diminuição das prisões provisórias. Esse projeto esteve no Congresso por mais de 10 anos e foi considerado pelo governo como de alta prioridade, mas perdeu sua importância ao longo dos anos. O projeto de lei tinha sido proposto originalmente pelo Executivo, o que aumentava as chances de se tornar uma lei. Além disso, também continha propostas extremamente positivas com relação à prisão provisória e por isso tornou-se um projeto prioritário para a Rede. Após quase um ano de discussões acerca da importância da lei e conversando com diferentes atores, encontramos fortes aliados na Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério 2

da Justiça. Com eles, fomos capazes de captar a atenção dos líderes partidários e aumentar o nível de prioridade da proposta. A Rede contribuiu fortemente para a inserção do projeto de lei na agenda legislativa, e persuadiu vigorosamente os líderes partidários e legisladores a aprová-la. A lei foi aprovada em abril de 2011 (Lei nº 12.403/2011), e entrou em vigor em 4 de julho do mesmo ano, com o potencial de causar significativos efeitos positivos em escala nacional, efeitos que ainda não se concretizaram, infelizmente. A nova lei estipula que a prisão provisória não é cabível para crimes com penas de até 04 anos, quando os acusados são réus primários e os crimes não são violentos. Para esses casos, existe uma lista de medidas cautelares que podem ser adotadas pelos juízes, isolada ou cumulativamente. A lei contém nove medidas cautelares alternativas à prisão: monitoramento eletrônico; prisão domiciliar; comparecimento periódico em juízo; recolhimento domiciliar no período noturno; pagamento de fiança; proibição de frequência ou acesso a determinados lugares; proibição de manter contato com pessoa determinada; proibição de ausentar-se da comarca; e suspensão do exercício de função pública. A segunda conquista legislativa alcançada pelo projeto foi a aprovação da Lei nº 12.433/2011, que entrou em vigor em junho de 2011, e prevê a remição de pena pelo estudo. Sabemos que vitórias legislativas não necessariamente se realizam no dia-a-dia da rotina policial e da justiça criminal. Nosso desafio é maior, é o de concretizar uma mudança na ideologia vigente de que a prisão é a única forma de punição aceitável. Além da importante atuação em Brasília, a publicação das pesquisas que dialogamos aqui significou um momento importante de fortalecimento do trabalho da rede. As pesquisas foram 3

publicadas e discutidas em seminários e eventos que contaram com a participação de importantes atores do sistema de justiça criminal no Brasil. Essas pesquisas nos trazem, dentre outras coisas, informações sobre quem são os presos, como foram presos, e como o sistema de justiça lida com eles. Acreditamos que a discussão do tema a partir de dados concretos e seguros, nos servirá para avançar em políticas públicas mais eficientes, e esperamos que esses dados tenham capacidade de transformação, ou no mínimo de indignação, fazendo com que tenhamos uma visão mais realista do que se passa atrás das grades, desmistificando figuras usadas frequentemente para justificar o endurecimento penal. Helena Romanach Advogada, cientista social e coordenadora de justiça criminal do instituto sou da paz e facilitadora da rede de justiça criminal entre 2010 e 2012. 4

INTRODUÇÃO Este documento apresenta os principais resultados de quatro pesquisas desenvolvidas em São Paulo e Rio de Janeiro por instituições que integram a Rede de Justiça Criminal apoiadas pela Open Society Foundations. Impacto da Assistência Jurídica a Presos Provisórios: um experimento na cidade do Rio de Janeiro (2011) - Associação Pela Reforma Prisional (ARP). Prisão Provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo (2011) - Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). Tecer Justiça: Presas e Presos Provisórios da Cidade de São Paulo (2012) - Instituto Terra, Trabalho e Cidadania/Pastoral Carcerária (ITTC/Pastoral Carcerária). Prisões em Flagrante na Cidade de São Paulo (2012) - Instituto Sou da Paz (ISDP). Os objetivos da presente publicação são os de prestigiar e compartilhar com organizações da sociedade civil, pesquisadores, ativistas e públicos em geral do Brasil e da América Latina as reflexões e dados produzidos por estas instituições ao longo de 2010/2011 em torno de um tema comum, a prisão provisória, fortalecendo argumentos contra o uso abusivo e arbitrário deste dispositivo legal. A despeito dos diferentes métodos e enfoques empregados, discriminados na sessão seguinte, as pesquisas partem de um diagnóstico comum acerca do sistema penitenciário nacional e do papel desempenhado pela prisão provisória no agravamento deste cenário. Em 2010, ano de início das referidas pesquisas, o Brasil era o país com a quarta maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, Rússia e China. O crescimento 5

da população prisional pode ser observado no gráfico 1. De acordo com dados de 2011 do Infopen - sistema de informação e estatística do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), ligado ao Ministério da Justiça - havia no Brasil 514.582 presos em todos os regimes ou 269,79 para cada 100 mil habitantes. Entre 1995 e 2011 o número de presos aumentou 246%. Gráfico 1. População Carcerária no Brasil, de 1995 a 2011. Números absolutos e taxas por 100 mil habitantes 600.000 500.000 400.000 300.000 200.000 93 103,5 114,3 137,1 127,7 135,3 269,79 260,1 231,9 244,9 213,8 222,1 184,3 195,3 171,3 300 250 200 150 100 100.000 0 514.582 496.251 473.626 451.429 422.590 401.236 361.402 336.358 308.304 240.107 233.859 232.755 194.074 170.602 148.760 1995 1997 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 50 0 Número de Presos Presos por 100 mil habitantes Fonte: Depen/MJ A razão entre presos provisórios e presos condenados também cresceu vertiginosamente na última década: em 2000 era de 0,54 preso provisório para cada preso condenado e em 2011 passou a 0,73 provisório por condenado, de acordo com o gráfico 2. 6

Gráfico 2. Número de presos condenados e provisórios, e razão provisórios/condenados no sistema prisional brasileiro 2000-2011 3 350.000 300.000 250.000 200.000 150.000 100.000 50.000 0 0,91 0,86 0,79 0,77 0,77 0,79 0,77 0,73 0,70 0,53 0,50 0,50 80.775 151.980 78.437 155.422 80.235 159.872 135.650 172.654 160.414 175.944 166.599 194.803 165.707 235.529 183.576 239.014 196.670 254.759 209.126 264.500 215.229 281.022 217.146 297.436 2000 2001 2002* 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 1,00 0,90 0,80 0,70 0,60 0,50 0,40 0,30 0,20 0,10 0,00 Condenados Provisórios Razão Fonte: Depen/MJ O cenário que por si só é assustador, toma contornos trágicos quando associado a problemas de superlotação, insalubridade e falta de condições mínimas de higiene e convivência, abusos físicos por parte de autoridades públicas e entre os próprios presos, entre outras violações de direitos básicos amplamente denunciadas por organizações da sociedade civil, como bem apontado por Salla: Não é admissível um país viver um período de prosperidade econômica, de melhoria de condições de vida para milhões de pessoas, de conquista de expressivo avanço na proteção e promoção de direitos humanos em outras áreas e ter um sistema prisional que siga na mão oposta, que continue a ser o território dos horrores, da violência e da degradação dos indivíduos (2012, p.157). 3 Os dados disponíveis no site do DEPEN para 2002 referem-se até junho do referido ano. 7

Com este pano de fundo, as organizações da Rede lançaram mão de diferentes estratégias de pesquisa com vistas a traçar um diagnóstico a respeito do uso da prisão provisória no Brasil e assim subsidiar as ações de advocacy e campanhas da Rede de Justiça Criminal. Dada a vasta quantidade de dados e reflexões produzidos por cada uma das pesquisas muitos deles concordantes e complementares entre si - achamos que seria de grande utilidade agrupá-los em torno de um único documento, facilitando o acesso dos leitores aos principais resultados. Longe de esgotar os pontos debatidos por cada pesquisa, o Sumário pretende ser um convite para a leitura integral das mesmas. Para apresentar o conteúdo das pesquisas, optamos por dividi-lo em três eixos respeitando a própria arquitetura dos estudos aqui resumidos e a importância dos tópicos em discussão: Eixo 1 Perfil do Preso e Contexto da Prisão: nesse tópico descrevemos o contexto da abordagem, perfil sociodemográfico e jurídico dos acusados por crimes violentos e não violentos e a forma de atuação das polícias. Ao agrupar essas informações, podemos verificar a existência de uma política de segurança pública que tem alvos demográficos bastante específicos. Eixo 2 - Dinâmica Judicial: apresentamos os dados referentes ao modo de atuação do judiciário confirmando a tese do uso abusivo da prisão provisória e a questão do acesso à justiça. Eixo 3 Drogas e Prisão Provisória: elegemos dar uma atenção especial à questão do tráfico de drogas, pois dentre todos os crimes, ele vigora como um dos principais responsáveis pelo o crescimento da população carcerária nos últimos anos. Além disso, no Brasil e no mundo o tema está no centro das discussões políticas atuais. 8

Dado que em cada eixo se articulam diferentes informações das pesquisas para a construção da argumentação, alguns dados serão apresentados em mais de um eixo. Por fim, depois da apresentação dos resultados das pesquisas, esse documento traz Conclusões e Recomendações, com considerações sobre a prisão provisória e recomendações com vistas a orientar mudanças legislativas e práticas cotidianas das organizações do sistema de justiça e policial. Esperamos que esta publicação sirva de inspiração para a realização de pesquisas, bem como fomente o necessário monitoramento do uso da prisão provisória, contribuindo para o fortalecimento das políticas públicas voltadas para a redução da população carcerária e, em especial, para a construção de um sistema de justiça criminal mais humano. 9

RECORTES DAS PESQUISAS PESQUISA Impacto da assistência jurídica a presos provisórios: um experimento na cidade do Rio de Janeiro (2011) Associação pela Reforma Prisional (ARP) Foco: pesquisa baseada em um Projeto de Intervenção Jurídica, que consistiu em assistência multidisciplinar aos presos provisórios. A pesquisa analisou, não apenas os casos de presos assistidos pelo Projeto, mas também casos que não foram atendidos. Local: Cidade do Rio de Janeiro carceragens Período: junho de 2010 a junho de 2011 Pesquisa/Projeto:a pesquisa teve por base duas fontes de dados: (i) aplicação de survey para 479 presos; (ii) análise de 575 casos, sendo que 130 foram assistidos pelo Projeto de Assistência,148 foram abordados mas não foram assitidos e 297 presos correspondiam ao grupo de controle, que não foram assistidos pelo Projeto, mas acompanhados para realização de comparações. Perfil do público atendido: acusados de delito contra o patrimônio sem violência nem grave ameaça à pessoa, ou acusados de crimes de tráfico privilegiado. PESQUISA Prisão Provisória e Lei de Drogas (2011) Núcleo de Estudos da Violência/USP (NEV-USP) Foco: o uso da prisão provisória nos casos de tráfico de drogas; operadores que trabalham com a Lei de Drogas Local: Cidade de São Paulo Número de casos analisados: 667 autos de prisão em flagrante; 928 réus. Período: novembro e dezembro de 2010 e janeiro de 2011 Entrevistas: 70 [9 defensores, 8 promotores, 12 juízes, 16 delegados e 26 policiais militares] Delitos: Casos registrados como tráfico de drogas. PESQUISA Tecer a Justiça: presas e presos provisórios da cidade de São Paulo (2012) Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) e Pastoral Carcerária Foco: pesquisa baseada em um Projeto de Intervenção Jurídica, que consistiu em assistência multidisciplinar aos presos provisórios. A pesquisa analisou, não apenas os casos de presos assistidos pelo Projeto, mas também casos que não foram atendidos. Local: Centro de Detenção Provisória CDP Pinheiros I e Penitenciária Feminina de Santana Período: junho de 2010 e dezembro de 2011 10

Pesquisa/Projeto: a pesquisa teve por base 2 bancos de dados: (i) dos questionários aplicados a 1161 detentos/as; (ii) dos processos analisados (dos processos em que o Projeto Tecer a Justiça atuou, parte deles foi analisada e as informações foram computadas em banco de dados separado). Perfil do público atendido: O projeto atendeu pessoas presas por qualquer tipo de crime, que foram dividas em três categorias: delitos de drogas, crimes não violentos e violentos. PESQUISA Prisões em flagrante na cidade de São Paulo (2012) Instituto Sou da Paz Foco: traçar o perfil das pessoas que foram presas em flagrante na cidade, com foco em suas características sociodemográficas e sociojurídicas (tipo de crime e circunstâncias da prisão) Local: Cidade de São Paulo Número de casos analisados: 4.559 presos em flagrante denunciados Período: abril a junho de 2011 Delitos: os flagrantes de crimes dolosos ocorridos na capital (com exceção dos crimes contra a vida ou previstos na Lei Maria da Penha) 11

EIXO 1 PERFIL DO PRESO E CONTEXTO DA PRISÃO Perfil sociodemográfico dos presos Um dado já bastante conhecido para presos em geral e que se confirma em relação aos presos provisórios é de que os homens são a grande maioria dos presos, compondo em torno de 90% do total das três amostras nas pesquisas que apresentaram esse dado 4. A presença de mulheres aumenta um pouco quando são considerados apenas os crimes relacionados a drogas. Dados do Infopen/Ministério da Justiça mostram, no entanto, que o número de mulheres presas aumentou não apenas em função do tráfico de drogas, mas também em relação a outros crimes 5. A prevalência da maternidade sobre a paternidade (ao menos alegada) entre as pessoas presas pode ser tributária do próprio perfil prevalecente da mulher encarcerada, como de chefe de família e portadora da guarda de filhos menores, o que certamente contribui para que sua prisão (com a consequente ausência de atenção às suas especificidades) redunde em efeitos sociais ainda mais perversos. A maioria dos presos em flagrante concentra-se na primeira faixa etária, dos 18 aos 25 anos, tendência que já vem sendo observada desde os anos 1990 no contexto urbano brasileiro. Se há indícios de que há um crescimento da criminalidade entre os jovens, é importante frisar que as políticas penais e de segurança pública acabam sempre por ter como alvo privilegiado os jovens que são com maior frequencia revistados pela polícia em comparação com outros grupos etários. Em 11% das ocorrências estudadas também foram apreendidos adolescentes, que foram levados ao Distrito Policial (duas pesquisas da cidade de São Paulo apresentam exatamente a 4 A pesquisa do ITTC/Pastoral Carcerária sobre São Paulo foi realizada com uma amostra estratificada, propositadamente equitativa na distribuição entre homens e mulheres. As outras três pesquisas não fizeram esse recorte e, portanto têm mais semelhança com o universo das pessoas presas. 5 Veja os dados na discussão sobre drogas, nesta publicação. 12

mesma porcentagem, em outra a porcentagem foi de 8,3%). O número de adolescentes identificados na coleta diz respeito àqueles que foram apreendidos com os adultos no momento do flagrante. Nenhuma das pesquisas tem informação a respeito de flagrantes que tenham envolvido somente adolescentes, pois esses casos seguem para a Vara da Infância e Juventude. A pesquisa do ITTC/Pastoral Carcerária relevou que em um terço das ocorrências que envolviam adolescentes, houve a imputação ao adulto do crime do artigo 244-B 6 do Estatuto da Criança e do Adolescente, embora em nenhum dos casos, com desfecho processual conhecido, tenha havido condenação por esse crime pelo juiz singular. Os dados referentes a presos em flagrante denunciados segundo cor acrescentam subsídios ao debate sobre a discriminação racial no âmbito do sistema jurídico-criminal. A porcentagem de pretos e pardos entre os presos provisórios no Rio de Janeiro e em São Paulo foi de no mínimo 55% quando a representação desse mesmo grupo na população do sudeste é de 35%. Apenas a pesquisa realizada pelo ITTC/Pastoral Carcerária levantou informações diretas sobre renda. 41,6% das mulheres e 27,9% dos homens declararam ganhos de até um salário mínimo. Por outro lado, 16,9% dos homens e 13,8% das mulheres disseram não ter renda. O lugar onde foi realizada essa pesquisa contém especificidades que exigem cautela na generalização dessa renda para o universo dos presos provisórios de São Paulo o que será explicado logo adiante. De qualquer modo, a baixa escolaridade, a dependência da assistência judiciária da defensoria pública e a condição de trabalho informal ou precário 7 nos permite inferir com razoável grau de segurança a situação geral de baixa renda entre os presos provisórios. A situação de prisão 6 Artigo 244-B. Corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos, com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la. Pena: reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. 7 É importante frisar que o trabalho informal ou temporário não é necessariamente um indicador de baixa renda. Mas o acúmulo deste com a baixa escolaridade e a dependência da assistência judiciária que indica as condições de baixa renda e precariedade no trabalho. 13

torna o quadro ainda mais grave quando se leva em conta que boa parte dos presos são responsáveis pelo sustento familiar e muitos têm filhos. Em relação à presença de pessoas em situação de rua, as duas pesquisas que apresentaram esses dados, ambos para a cidade de São Paulo, mostraram porcentagens diferentes na pequisa do ITTC/Pastoral Carcerária, 31% (homens) e 13% (mulheres) declararam viver em situação de rua. Na pesquisa do ISDP, 7,1% das pessoas (entre homens e mulheres) declararam a mesma situação. Essa diferença provavelmente está relacionada ao tipo de coleta, a pesquisa do Sou da Paz analisou o que foi declarado para o processo, o ITTC/Pastoral Carcerária entrevistou as pessoas diretamente. Outro fator que pode ter contribuido foi à escolha do CDP I de Pinheiros para a realização da pesquisa do ITTC/Pastoral Carcerária, sendo que essa unidade abrange as prisões realizadas na área central onde vive a maior parte das pessoas em situação de rua. Entre 2008 e 2010, mais de mil vagas em albergues no centro de São Paulo deixaram de existir, medida que está em consonância com o projeto político de retirada pessoas em situação de rua do centro da cidade. A dificuldade dessas pessoas no acesso a documentos, como comprovante de residência, acaba servindo como justificativa para a manutenção da prisão provisória, assunto que será discutido mais adiante. DADOS DAS PESQUISAS Pesquisa Cidade do Rio de Janeiro ARP- Impacto da Assistência Jurídica a Presos Provisórios (2011) Uma parte da pesquisa foi de tipo survey, em que foram entrevistadas 479 pessoas, cerca de 20% dos presos provisórios das dez carceragens da região metropolitana do Rio de Janeiro. A amostra de presos ouvida no survey se compõe da seguinte forma: Homens 96,3% e mulheres 3,7% Idade média em torno de 29 anos 40% de cor parda e 22% de cor preta 14

Quase todos os entrevistados já haviam trabalhado, sendo que 71% deles estavam trabalhando quando foram presos, a maioria sem carteira assinada, principalmente na construção civil, no comércio e em atividades domésticas. 74% tinham filhos 58% eram os responsáveis pelo sustento da casa Pesquisas Cidade de São Paulo ITTC/Pastoral Carcerária - Tecer justiça (2012) 1161 pessoas do Centro de Detenção Provisória CDP Pinheiros I e Penitenciária Feminina de Santana que responderam a um questionário. Os resultados do perfil sociodemográfico seguem abaixo 8 : 44,8 % dos homens e 42,9% das mulheres com idade entre 18 e 25 anos. Em 8,3% dos casos de prisões em flagrante havia adolescentes no momento do suposto delito. 46,3% das pessoas da amostra eram pardas, 15,9% eram pretas e 35% eram brancas. 70,2% dos homens e 63,8% das mulheres possuiam no máximo o primeiro grau completo. 27,1% dos homens e 34,3% das mulheres com ensino médio completo ou incompleto. Apenas 2,7% dos homens e 1,9% das mulheres com ensino superior completo ou incompleto. 39% dos homens e 27,4% das mulheres declararam ter trabalho formal ou informal e contínuo no momento da prisão. 30,2% dos homens e 30,8% das mulheres declararam ter trabalho informal e temporário. 30,8% dos homens e 41,8% das mulheres declararam não ter trabalho no momento da prisão. 41,6% das mulheres e 27,9% dos homens declararam ganhos de até um salário mínimo e 33,8% das mulheres e 42,2% dos homens, entre um e 03 salários mínimos. Os homens e mulheres que não possuem renda familiar perfazem 16,9% e 13,8%, respectivamente. 81,2% das mulheres e 53% dos homens declararam ter filho. 33,6% dos homens e 30,5% das mulheres disseram ser o principal provedor para o sustento da família. 31% dos homens e 13% das mulheres declaram viver em situação de rua antes da prisão. 8 A pesquisa foi aplicada em quantidades semelhantes entre mulheres e homens e não representa a proporção de pessoas presas por sexo. 15

ISDP - Prisões em flagrante na cidade de São Paulo (2012) A amostra de 4.559 autos de prisão em flagrante revelou o seguinte perfil do preso provisório da cidade de São Paulo: 91,9% de homens e 7,9% de mulheres. Maioria de jovens com idade entre 18 e 25 anos (55%). Em 11% dos casos de prisões em flagrante, havia adolescente no momento do suposto delito. 44,4% pardos, 11% pretos e 41,7% brancos. 75,7% com escolaridade até o primeiro grau completo, 20,9% com ensino médio e apenas 1,8% com ensino superior. 39% declararam ter filhos e 43,56% declararam não ter filhos. Para 7,1% foi declarada a situação de morador de rua. NEV-USP Prisão Provisória e Lei de Drogas (2011) As informações sobre os presos provisórios abaixo foram colhidas dos 667 autos de prisão em flagrante de tráfico de drogas: 87% homens e 13% mulheres. 75,6% jovens na faixa etária entre 18 e 29 anos. Em 11% das ocorrências também foram apreendidos adolescentes, que foram levados ao Distrito Policial. 46% foram classificados como pardos, 41% como brancos e 13% como pretos. Pretos e pardos somam aproximadamente 59% dos apreendidos. Cerca de 79% das pessoas com até o primeiro grau completo e 14% com o segundo grau completo. Menos de 1% com curso superior completo ou incompleto. 62,17% declararam exercer atividade remunerada, 29,43% declararam estar desempregados e 8,40% disseram-se estudantes. Perfil sociojuridico Com relação a antecedentes criminais, as pesquisas apresentaram os seguintes dados: 16

DADOS DAS PESQUISAS Pesquisa Cidade do Rio de Janeiro ARP- Impacto da Assistência Jurídica a Presos Provisórios (2011) 28% já haviam sido presos uma vez antes da prisão atual. Pesquisas Cidade de São Paulo ITTC/Pastoral Carcerária - Tecer justiça (2012) 53,8% dos homens e 68,4% das mulheres nunca havia cumprido pena de prisão. 9,0% dos homens 6,5% das mulheres haviam cumprido algum tipo de pena alternativa. 24,6% dos homens e 16,6% das mulheres declararam estar respondendo a processo (que não aquele que motivou a prisão atual). ISDP - Prisões em flagrante na cidade de São Paulo (2012) Entre os presos em flagrante denunciados, 52,6% possuíam antecedentes criminais, ou seja, já haviam sido indiciados ou processados anteriormente. Quando se consideram apenas os presos em flagrante que apresentavam processos de execução aqueles que já foram condenados ou mesmo iniciaram o cumprimento de sua pena, há um decréscimo significativo de casos, reduzindo-se a 27,6%, praticamente a metade daqueles com antecedentes criminais. NEV-USP Prisão Provisória e Lei de Drogas (2011) 57% das pessoas apreendidas por tráfico de drogas não apresentam antecedente. Tipo criminal Na pesquisa realizada pela ARP (2011), os crimes mais recorrentes entre os presos em flagrante foram os de tráfico de drogas (32,6%) e roubo (26,8%). 17

Na pesquisa do ISDP (2012) o tráfico de drogas e o furto representaram as maiores incidências criminais entre as mulheres presas em flagrante denunciadas na capital, ambos correspondendo a 35% dos delitos praticados. Note-se que esses crimes têm uma representatividade muito maior no universo das mulheres do que no dos homens (21,6% e 25,3% respectivamente), ao passo que com o roubo acontece o contrário (32,4% dos delitos entre os homens e 14,2% dos delitos entre as mulheres). Classificando-se os crimes dos acusados a partir da natureza jurídica, encontramos nas pesquisas do ITTC/Pastoral Carcerária (2012) e ISDP (2012) as seguintes porcentagens: tráfico de drogas: 25,3% (ITTC/ Pastoral Carcerária) e 22,7% (ISDP); crimes violentos 9 32,5% (ITTC/ Pastoral Carcerária) e 30,5% (ISDP) e crimes não violentos 10 42,2% (ITTC/ Pastoral Carcerária) e 40% (ISDP). Quanto à tipificação penal dos crimes de droga especificamente, apesar de uma das importantes inovações da Lei de Drogas ter sido prever tipos penais mais variados, na prática houve pouca variação na classificação dada pelo delegado, o que pode ser observado pela primazia do enquadramento dos delitos dessa natureza no caput do artigo 33 da Lei nº 11.343/2006, presente em mais de dois terços dos casos na pesquisa para o qual esse dado foi compilado (ITTC/ Pastoral Carcerária). Os crimes enquadrados desta forma indicam tráfico em oposição aos crimes enquadrados no artigo 28 da mesma lei, que indicam porte de drogas para uso e não são punidos com prisão. Por fim, foi constada a primazia de delitos patrimoniais não violentos (furto) junto à população em situação de rua, o que revela os expedientes de sobrevivência de um público que 9 Para a pesquisa ITTC/Pastoral Carcerária, a categoria crime violento inclui: roubo simples, roubo qualificado, lesão corporal em contexto doméstico, roubo e outro crime. A pesquisa ISDP não usou essa categoria e para esta análise foram somados os crimes de roubo. 10 Para a pesquisa ITTC/Pastoral Carcerária, a categoria crimes não violentos inclui: furto simples, furto qualificado, furto e outro(s) crime(s), estelionato, receptação, dano, falsificação de documento particular e uso de documento e crimes de perigo. A pesquisa ISDP não usou essa categoria e para esta análise foram somados os crimes de furto, receptação e aqueles ligados ao Estatuto do Desarmamento. 18

tem sido alvo de medidas de controle e repressão, que articulam as diferentes forças repressivas do estado e do município. DADOS DAS PESQUISAS Pesquisa Cidade do Rio de Janeiro ARP- Impacto da Assistência Jurídica a Presos Provisórios (2011) Quase todos os presos entrevistados (95%) estavam respondendo por um único crime. Principais acusações nos crimes com e sem flagrante: tráfico de drogas (27%), roubo (23,6%), homicídio (13%) e furto (10,5%). Observa-se que entre os presos em flagrante, as maiores parcelas o foram por tráfico de drogas (32,6%), roubo (26,8%) e furto (15%); já entre os presos sem flagrante, prevalecem os acusados de delitos diversos (categoria outros, 25,4%), seguido de homicídio (21,9%), tráfico de drogas (21,4%) e roubo (26,8%). Pesquisas Cidade de São Paulo ITTC/Pastoral Carcerária - Tecer justiça (2012) Diferentemente das informações apresentadas para essa pesquisa até agora, os dados abaixo não foram colhidos por meio de survey, mas a partir do acompanhamento de 348 processos consultados. Esses processos dizem respeito a ocorrências criminais com data entre os dias 24 de agosto de 2010 e 22 de maio de 2011: Dos casos acompanhados, 25,3% eram tráfico de drogas; 32,5% eram crimes violentos e 42,2% eram crimes não violentos. Eram primários, ou seja, não tinham cometido nenhum crime antes: 65,3% das pessoas que respondiam por crimes de drogas, 44,9% das pessoas que respondiam por crimes não violentos e 62,3% das pessoas que respondiam por crimes violentos. Entre os crimes não violentos o furto foi a acusação mais comum. Furto simples: tentado, 10,8%, consumado, 24,6% (35,4% no total); furto qualificado: tentado, 16,8%, consumado, 31,7% (48,5% no total); outros 16,2%. 19

Entre os crimes classificados pela pesquisa como violentos, o roubo foi o mais comum. Roubo simples: tentado 15,2%, consumado 34,1% (47,3%); Roubo qualificado: tentado 2,9%; consumado 41,3% (44,2%), outros 6,7%. Entre os crimes relacionados a droga, 78,9% dos casos foram enquadrados no artigo 33 caput da Lei nº 11.343 (referente a tráfico); 11,6% foram enquadrados no artigo 33 caput e também nos artigos 34 (referente a maquinário, aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à fabricação) e/ou 35 (associação). Apenas 1,1% dos casos foram enquadrados no artigo 28 caput da Lei nº 11.343/06 (referente a usuário). Entre os que foram acusados de crimes de drogas, 52,9% declararam exercer atividade remunerada e 42,5% declararam-se desempregados. Entre os que respondiam por crimes não violentos, 51,6% declararam atividade remunerada e 44,4% declararam estar desempregados. Entre os acusados por crimes violentos, 50,4% declararam exercer atividade remunerada, 48,8% declararam estar desempregados. ISDP - Prisões em flagrante na cidade de São Paulo (2012) 80,96% dos denunciados respondiam a um único crime. 22,7% foram acusados por crimes relacionados a drogas, 30,5% por crimes violentos e 40% por crimes não violentos. Os tipos penais mais recorrentes foram: roubo (31%), furto (26,1%) e tráfico de drogas (22,7%). Do total de delitos praticados pelas mulheres, 35% foram tráfico de drogas, 35% furto e 14,2% roubo. Entre os homens, 32,4% dos delitos cometidos foram roubos, 25,3% foram furtos e 21,6% foram tráfico de drogas. 51,4% dos que declararam serem moradores de rua foram presos por furto, seguido pelo roubo com 31,4%. O tráfico de drogas foi responsável por 10% dessas prisões. NEV-USP Prisão Provisória e Lei de Drogas (2011) Enquadramento dado pela autoridade policial no momento da lavratura do auto de prisão nos crimes relacionados a droga: 76% apenas no artigo 33, caput da lei 11.343/2006; 20

11% dos casos a classificação foi no artigo 33 combinada com outros delitos. Em quase 10% deles foram reunidos os artigos 34 e 35. Nenhum caso enquadrado no artigo 28 caput (referente a usuário). Contexto da abordagem A maior parte das pessoas presas em flagrante foi abordada durante patrulhamento de rotina por parte da polícia militar. Poucos casos foram resultados de investigação, apenas 4%. Quanto ao local em que ocorreu a prisão, tanto homens quanto mulheres são presos principalmente em vias públicas. Contudo, em relação às mulheres, há duas especificidades: serem presas em estabelecimentos comerciais e em unidades prisionais. O primeiro caso se explica pela prática de furtos em supermercados e lojas. Já em relação aos estabelecimentos prisionais, as mulheres foram presas com drogas, tendo a maior parte delas dito que o marido estava sendo ameaçado por presos da unidade e, caso a esposa não levasse a droga, ele seria morto. Tudo indica que patrulhamento de rotina, polícia militar e via pública são os elementos base da política de segurança pública em São Paulo em detrimento do trabalho investigativo. Entrevistados na pesquisa do NEV-USP (2011) mencionaram a atitude suspeita como motivadora das abordagens que resultaram em prisões por droga, um elemento que dá margem a ação seletiva motivada por preconceitos de classe e etnia. Na pesquisa do ISDP, foi observada a prevalência de apenas um indiciado nas prisões em flagrante (64,4%), ou seja, apenas uma pessoa teria sido presa pela polícia. Mesmo nos casos de roubo, crime em que a coautoria delitiva é mais constatada, na maior parte dos casos (56%) havia apenas um indiciado. No caso de tráfico de drogas, 70% dos casos foram de apenas um indiciado. Este último número é corroborado pela pesquisa do NEV-USP (2011): em 69% dos flagrantes por 21

tráfico de drogas a pessoa foi presa sozinha. Se o tráfico de drogas é uma atividade que envolve uma cadeia de atores que transacionam dinheiro e mercadorias ilegais em várias escalas, a prisão de um único indivíduo demonstra o escopo limitado da ação da polícia que em suas abordagens de rua, mesmo quando está prendendo um traficante e não um usuário, seleciona a ponta da cadeia. Na pesquisa da ARP, que investigou presos provisórios por flagrante e sem flagrante no Rio de Janeiro ficou demonstrado que o flagrante amplia significativamente a possibilidade de o acusado sofrer violência no momento em que é detido. Ser negro também aumenta a chance de agressão quando a pessoa é detida(arp, 2011). Na Pesquisa ITTC/Pastoral Carcerária (2012), muitos homens e mulheres entrevistados descreveram experiências muito semelhantes, como o zigue-zague 11, o micro-ondas 12, o uso de spray de pimenta nos olhos e no nariz, a invasão de domicílio, o flagrante forjado, a extorsão, a discriminação racial e a ameaça contra parentes (inclusive crianças). Em se tratando da população feminina, também foram marcantes as denúncias de violência sexual, que abrangem pedido de propina sexual, apalpadelas durante a revista por policial masculino, obrigação de ficar nua e ameaça de estupro. A pesquisa também abordou experiências anteriores dos entrevistados com a polícia. Os resultados demonstram que a trajetória dos homens que responderam ao questionário no CDP I de Pinheiros é marcada pela presença dos agentes do aparato repressivo do Estado, tanto na forma de abordagens como de agressões físicas e verbais (92,1%). Ainda que mais baixos, não são desprezíveis os dados de que 23,3% das mulheres foram muitas vezes agredidas verbalmente pela polícia e que 43,7% presenciaram muitas vezes alguém ser agredido por policial. Duas das pesquisas abordaram também outro tipo de questão relacionada aos direitos e garantias, a entrada na residência ou a chamada entrada franqueada. Na pesquisa do ISDP (2012), 90,9% das prisões realizadas na residência do acusado foram feitas sem mandado judicial. 11 O motorista da viatura policial faz manobras bruscas com o veículo enquanto a pessoa algemada com as mãos para trás vai batendo a cabeça e o corpo no porta-malas da viatura policial, onde se encontra solta. 12 A pessoa presa permanece, sem água, no interior da viatura por longas horas debaixo de sol com as janelas do veículo fechadas. 22

A pesquisa do NEV-USP (2011) também encontrou casos frequentes de entrada franqueada. Questionados se essa prática estaria ferindo o direito à inviolabilidade da residência, alguns operadores (policiais, promotores, juízes) entrevistados responderam que a entrada na residência é legítima porque o tráfico é considerado crime permanente. Essa premissa será questionada adiante, na discussão sobre drogas. DADOS DAS PESQUISAS Pesquisa Cidade do Rio de Janeiro ARP- Impacto da Assistência Jurídica a Presos Provisórios (2011) Pouco menos da metade dos presos provisórios disse ter sofrido algum tipo de violência no momento da prisão e quase 1/3 afirmou ter sofrido mais de uma forma de agressão ou ameaça entre as listadas no questionário (agressão verbal, agressão física, ameaça de agressão física, ameaça de morte, foi baleado). Entre os presos em flagrante entrevistados, é menor a proporção dos que não sofreram nenhum tipo de agressão (48%) e é maior a proporção dos que dizem ter sido vítimas de mais de um tipo de agressão ou ameaça (37%). 64% dos entrevistados que afirmaram ter sofrido mais de uma forma de violência ou ameaça no momento da prisão eram pretos ou pardos, contra menos de 23% dos brancos. Em todos os tipos de agressões ou ameaças, pretos e pardos foram mais vitimados que brancos. Também foram alvo, em proporção muito maior, das agressões mais graves, como terem sido baleados (apenas pretos e pardos foram baleados), agredidos fisicamente (76,5% dos que foram agredidos fisicamente eram pretos ou pardos) ou ameaçados de morte (apenas 10% dos ameaçados eram brancos). Pesquisas Cidade de São Paulo ITTC/Pastoral Carcerária - Tecer justiça (2012) 23

Para 65,7% dos homens e 77,1% das mulheres a prisão foi efetuada pela polícia militar. Para 10% dos homens e 11,6% das mulheres a prisão foi efetuada pela polícia civil. Para 11,4% dos homens e 3,4% das mulheres, a prisão foi efetuada pela Guarda Civil Metropolitana. Para 78,6% dos homens e 56,% das mulheres, a prisão ocorreu em via pública. 6,8% dos homens e 21,9% das mulheres foram presos em estabelecimento comercial. 3,8% dos homens e 12,8% das mulheres foram presos em residência ou local de hospedagem. 4,6% das mulheres foram presas em unidade prisional ou delegacia, o que não ocorreu entre os homens. 67,6% dos homens e 65,4% das mulheres disseram ter sofrido agressão verbal no momento da prisão. 56,5% dos homens e 40,3% das mulheres disseram ter sofrido agressão física e 33% dos homens e 22,7% das mulheres disseram terem sido ameaçados com arma no momento da prisão. 57,9% dos homens disseram já terem sido abordados por policial muitas vezes em situações anteriores, 56,7% disseram já terem sido agredidos verbalmente por policial muitas vezes, 35,6% disseram já terem sido agredidos fisicamente por policiais muitas vezes e 65,1% já presenciaram muitas vezes alguém ser agredido por policial. 19,4% das mulheres disseram já terem sido abordadas por policial muitas vezes em situações anteriores, 23,3% disseram já terem sido agredidas verbalmente por policial muitas vezes, 10,2% disseram já terem sido agredidas fisicamente por policiais muitas vezes e 43,7% já presenciaram muitas vezes alguém ser agredido por policial. ISDP - Prisões em flagrante na cidade de São Paulo (2012) 79,2% das prisões em flagrante na capital foram realizadas por policais militares. Apenas 13,2% foram realizadas por policias civis. A abordagem policial, proveniente do policiamento ostensivo realizado pela polícia militar, foi responsável por 33,27% das prisões. A situação de denúncia da vítima e a situação de denúncia e abordagem policial responderam por 16,10% e 14,5% das prisões, respectivamente. A atividade investigativa, realizada por destinação funcional pela Polícia Civil, respondeu por apenas 4% das prisões. Na faixa etária de 18 a 25 anos, 62,89% das prisões foram decorrentes de abordagem policial. À medida que se avança nas faixas etárias, o percentual de prisões decorrentes de abordagens policiais vai declinando gradativamente. 24

76,6% das prisões foram realizadas em local de acesso público, 10,6% em estabelecimento comercial e 8% em residências. 90,9% das prisões na residência do acusado foram feitas sem madado judicial. Em 56% dos casos de roubo, 65% dos casos de furto e em 69,7% dos casos de tráfico, foi indiciado apenas um autor. NEV-USP Prisão Provisória e Lei de Drogas (2011) 86% das prisões em flagrante (droga) foram feitas pela polícia militar e 9,58% pela polícia civil 62,28% das prisões ocorreram durante o patrulhamento de rotina, 24,7% das abordagens foram motivadas por denúncia e 4% foram motivadas por investigação. As mulheres, quando comparadas proporcionalmente, foram presas através de denúncias (35%) e em revistas na penitenciária (10,9%) enquanto os homens sofreram mais abordagens a partir de patrulhamento de rotina (67,8%) 82% das prisões foram realizadas em via pública e 12,46% em residências. Em 69% dos casos a pessoa foi presa sozinha. Em 17,5% houve entrada na residência, a chamada entrada franqueada 13. 13 Nota: % calculada sobre o total de acusados em que havia essa informação. 25

EIXO 2 DINÂMICA JUDICIAL Para compreender como os casos de prisão em flagrente e prisão provisória são tratados pelo sistema de justiça criminal é importante descrever seu fluxo e cada fase considerada importante para o processo. Quando uma prisão em flagrante é realizada 14, o acusado é conduzido à autoridade competente, o delegado de polícia. Na delegacia, são ouvidas as pessoas que realizaram a prisão em flagrante, eventuais testemunhas, a vítima nos casos em que há e o acusado. O delegado elabora o auto de prisão em flagrante. Cabe à autoridade competente, diante dos fatos que lhe são apresentados, enquadrar a conduta delituosa em um determinado tipo penal. O juiz deve ser comunicado da prisão em flagrante no prazo de 24 horas, devendo dar vista ao Ministério Público e, se o acusado não tiver indicado o nome do seu advogado, também deve ser encaminhada cópia dos autos à Defensoria Pública. Nesse momento, a defesa pode apresentar pedido de liberdade provisória. Apresentado o pedido, será dada vista ao Ministério Público para que se manifeste sobre o que foi requerido e, então, o juiz decidirá novamente se mantém a prisão ou se concede a liberdade provisória ou relaxa a prisão, caso constate a existência de uma ilegalidade. A liberdade provisória pode ser concedida quando não estiverem presentes os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal 15. 14 Será considerado em flagrante delito, nos termos do art. 302, do Código de Processo Penal, quem: (i) está cometendo a infração penal; (ii) acaba de cometê-la; (iii) é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; (iv) é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração. Em relação ao crime de tráfico de drogas, entende-se que é crime permanente, isso significa que a consumação do crime se prolonga no tempo, ou seja, enquanto alguém estiver guardando a droga consigo ou em sua residência, haverá o estado de flagrância. 15 De acordo com o art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. 26

A autoridade policial terá um prazo determinado para concluir o inquérito policial 16. Esses prazos podem ser duplicados 17 se houver um pedido fundamentado da autoridade policial. Findado o inquérito policial, este será encaminhado ao juiz, que dará vista para o Ministério Público para que este requeira o arquivamento dos autos, requisite diligências ou ofereça a denúncia 18. O juiz, então, decidirá se recebe ou rejeita a denúncia. Caso a receba, o juiz designará data para a audiência de instrução e julgamento 19. Nessa audiência, serão ouvidas as testemunhas de acusação e defesa e o acusado será interrogado. Após esses atos será dada a palavra ao Ministério Público e ao defensor para que façam suas alegações finais orais 20. Encerrados os debates, o juiz proferirá a sentença de imediato ou em 10 dias. Em junho de 2011, entrou em vigor a Lei nº 12.403/11, que alterou alguns dispositivos do Código de Processo Penal relacionados à prisão provisória. Essa lei também introduziu no ordenamento jurídico medidas cautelares alternativas à prisão. As pesquisas apresentadas foram realizadas antes dessa lei. 16 Inquérito policial é um procedimento policial administrativo que apura e investiga um crime e antecede a ação penal. 17 De acordo com o artigo 51 da Lei 11.343/2006:"O inquérito policial será concluído no prazo de 30 (trinta) dias, se o indiciado estiver preso, e de 90 (noventa) dias, quando solto. Parágrafo único: Os prazos a que se refere este artigo podem ser duplicados pelo juiz, ouvido o Ministério Público, mediante pedido justificado da autoridade de polícia judiciária". 18 Denomina-se de denúncia a acusação formulada pelo Ministério Público, na qual deve constar de forma detalhada a descritiva a conduta do acusado, as testemunhas que a acusação deseja que sejam ouvidas e a descrição do crime que teria sido praticado pelo acusado. 19 Audiência de instrução e julgamento é a sessão pública da qual participam o juiz, auxiliares da Justiça, testemunhas, advogados, promotores e partes, com o objetivo de realizar a prova oral, debater a causa e proferir sentença. 20 Até 2008, a lei processual previa a apresentação de alegações, não havendo a previsão de sustentação oral. Apesar das alterações trazidas pela Lei 11.719/08, que incluem de forma mais acentuada a oralidade no procedimento ordinário, vale observar que frequentemente não há debates, sendo esses substituídos por textos previamente preparados pelas partes. 27

Encaminhamento dos casos de flagrante no Rio de Janeiro De acordo com o fluxograma abaixo podemos visualizar melhor como são processados os casos de flagrantes no sistema de justiça da cidade do Rio de Janeiro: A "audiência especial" para ciência da denúnica ocorre na capital do Rio de Janeiro. Em conversa com juízes, promotores e defensores a equipe de pesquisa da ARP não foram obtidas informações confiáveis sobre a origem do procedimento. O certo é que os juízes determinam a requisição dos réus presos para tomar conhecimento da denúncia (ARP, 2011). 28

Encaminhamento dos casos de flagrante em São Paulo Em São Paulo, diferente do Rio de Janeiro, existe um Departamento que recebe todos os flagrantes da cidade: o Departamento de Inquéritos Policiais (DIPO). Este é um órgão que só existe na cidade de São Paulo. Todos os inquéritos policiais, bem como os autos de prisão em flagrante, são encaminhados para esse departamento. Trata-se de órgão com competência para todos os crimes punidos com reclusão, exceto para os casos de responsabilidade das Varas de Júri, ou seja, casos de homicídios e tentativas de homicídio. Assim, no caso de São Paulo, o juiz que recebe a comunicação da prisão e que deve decidir pela manutenção ou não dessa medida é o juiz do DIPO. Da mesma forma, esse juiz deve ser comunicado da prisão em 24 horas, devendo dar vista ao Ministério Público e, se o acusado não tiver indicado o nome do seu advogado, também deve ser encaminhada cópia dos autos à Defensoria Pública. Nesse momento, já pode a defesa apresentar pedido de liberdade provisória. Apresentado o pedido, será dada vista ao Ministério Público para que esse se manifeste sobre o que foi requerido e, então, o juiz decidirá novamente se mantém a prisão ou se concede a liberdade provisória. Oferecida a denúncia pelo Ministério Público, o Departamento de Inquéritos Policiais (DIPO) encaminhará os autos à Vara Criminal onde tramitará o processo. 29

Qualidade dos autos Crimes como furto, roubo e tráfico de drogas, pelos quais grande parte dos suspeitos é mantida presa provisoriamente, são em sua maioria casos de prisão em flagrante realizada pela Polícia Militar. Conduzidos à autoridade policial, será lavrado o auto de prisão em flagrante e instaurado o inquérito policial, cuja função é embasar a decisão judicial acerca da legalidade da 30

prisão e o ajuizamento da ação penal (função dos autos de prisão em flagrante), bem como auxiliar na elucidação dos crimes perpetrados, a partir da colheita de provas (função dos inquéritos policiais que se pretendem aqui discutir), orientando o órgão de acusação quanto à proposição da ação penal e oferecendo elementos probatórios ao juiz. A partir de entrevistas com operadores do sistema de justiça, a qualidade dos autos de prisão em flagrante e do inquérito policial foi colocada em questão, uma vez que exerce influência direta nas fases posteriores do processo penal. Verificou-se que a ação da Polícia Judiciária vai pouco além da lavratura do auto de prisão em flagrante. Como aponta um dos promotores entrevistados: quando o flagrante chega à delegacia, raramente é iniciada uma investigação (...) a polícia civil não faz este trabalho, os inquéritos nada mais são do que os autos de prisão em flagrante (NEV-USP, 2011, p.58). Vale lembrar que a pesquisa do NEV-USP, única a realizar entrevistas e a abordar a questão deste tópico, investigou exclusivamente casos de tráfico de drogas. Porém, sem deixar a ressalva de lado, cremos que são opiniões representativas do que ocorre com as prisões em flagrante como um todo. Não há uma investigação aprofundada, função da polícia civil essencial à fundamentação das etapas subsequentes do processo penal. Se considerarmos o artigo 6º do Código de Processo Penal, não há cumprimento das providências necessárias para a apuração do fato criminal, providências estas que são deveres da autoridade policial. A precariedade da instrução dos inquéritos policiais e a deficiência da polícia civil na colheita de provas são assinaladas por outro promotor entrevistado, que acrescenta: o ideal seria um trabalho de investigação, em que se reunissem mais provas, fossem ouvidas outras testemunhas, inclusive os parentes da pessoa apreendida (NEV-USP, 2011, p.58). A consequência disto é a superestimação da atuação da polícia militar, uma vez que não há outros indícios de autoria e materialidade que não a palavra dos policiais que efetuaram a prisão. 31