Kant e o Princípio Supremo da Moralidade

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Transcrição:

Kant e o Princípio Supremo da Moralidade ÉTICA II - 2017 16.03.2018 Hélio Lima

LEITE, Flamarion T. 10 Lições sobre Kant. Petrópolis: Vozes, 2013

O Sistema kantiano

Estética Transcendental Experiência Lógica Transcendental Conhecimento Dialética Transcendental Pensamento Arquitetônica da Razão Razão Faculdade dos Princípios (Raciocínios, idéias transcendentais) Idéias Reguladoras Homem Deus Mundo Entendimento Faculdade das Regras/Conceitos (Síntese intelectual) Qualidade Categorias Relação (conceitos puros) Quantidade Modalidade Sensibilidade Faculdade da Intuição Intuição Pura (sensível) formas a priori Espaço / Tempo (externo) (interno) Fenômeno: o que se nos apresenta na intuição, tal como nos aparece enquanto diversidade sensível empírica - a posteriori [SCHEIN ERSCHEINUNG - aparência: ilusão fenômeno] N ú m e n o: coisa em si

... eu exijo, para que a Crítica de uma razão pura prática possa ser completa, que se possa demonstrar simultaneamente a unidade da razão prática e da razão especulativa num princípio comum; pois que, em última instância, só pode haver uma só e a mesma razão, e só na aplicação desta há lugar para distinções. (Fundamentação)

O que determina que uma ação é moral? Se a ética é um sistema de regras absolutas, aonde estão essas regras? Na natureza, harmonia? Na religião, Deus? Num ser absoluto? Donde provém o valor moral de uma ação praticada? De móveis exteriores à razão? Dos sentidos? Das intenções com que são praticadas? Pode haver exceção na obrigação moral ou as leis morais são absolutas? As regras morais são leis que a razão estabelece para todos os seres racionais ou há exceções?

O espetáculo de uma ordem moral foi gravado na imaginação da civilização Alfred North Whitehead

Fundamentação da Metafísica dos Costumes Prefácio A velha filosofia grega dividia-se em três ciências: a Física, a Ética e a Lógica. Qual o princípio regente de cada uma delas? Todo conhecimento racional é: ou material e considera qualquer objeto, ou formal e ocupa-se da forma do entendimento - Formal: Lógica - Material:?

Fundamentação da Metafísica dos Costumes... A material, porém, que se ocupa de determinados objetos e das leis a que eles estão submetidos, é por sua vez dupla, pois que estas leis ou são leis da natureza ou leis da liberdade. A ciência da primeira chama-se Física, a da outra é a Ética; aquela chama-se também Teoria da Natureza, esta, Teoria dos Costumes. - Natureza:... leis segundo as quais tudo acontece, - Costumes:... leis segundo as quais tudo deve acontecer

... uma Metafísica dos Costumes, que deveria ser cuidadosamente depurada de todos os elementos empíricos, para se chegar a saber de quanto é capaz a razão pura e de que fontes ela própria tira o seu ensino a priori. (Fundamentação) O problema que aqui levanto é simplesmente o de saber até onde posso esperar alcançar com a razão, se me for retirada toda a matéria e todo o concurso da experiência. (CRP. A XIV)

Rousseau e a ideia da perfectibilidade Não é, pois, tanto o entendimento que estabelece entre os animais a distinção específica do homem como sua qualidade de agente livre. A natureza manda em todo animal, e a besta obedece... O homem experimenta a mesma impressão, mas se reconhece livre de aquiescer ou de resistir; e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma;... Mas, quando as dificuldades que envolvem todas essas questões deixassem algum motivo de discutir sobre essa diferença do homem e do animal, há uma outra qualidade muito específica que os distingue, sobre a qual não pode haver contestação: é a faculdade de se aperfeiçoar, a qual, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e reside, entre nós, tanto na espécie como no indivíduo, ao passo que um animal é, no fim de alguns meses, o que será toda a vida, e sua espécie, ao cabo de mil anos, o que era no primeiro desses mil anos. Por que só o homem está sujeito a se tornar imbecil? - Rousseau. Sobre a origem da desigualdade

Toda gente tem de confessar que uma lei que tenha de valer moralmente, isto é como fundamento numa obrigação, tem que ter em si um valor absoluto A lei moral não pode ser afetada pelas inclinações, ou por quaisquer móbilis empíricos

Uma Metafísica dos costumes é, pois, rigorosamente necessária, não só por motivo de ordem especulativa, para investigar a origem dos princípios práticos que residem a priori na nossa razão, mas também porque os próprios costumes ficam sujeitos a toda a espécie de perversões, enquanto lhes faltar aquele fio condutor e norma suprema do seu exato julgamento. Com efeito, para que uma ação seja moralmente boa, não basta que seja conforme com a lei moral; é preciso, além disso, que seja praticada por causa da mesma lei moral; caso contrário, aquela conformidade será apenas muito contingente e muito incerta, porque o princípio imoral produzirá na verdade de vez em quando ações conformes com à lei moral, mas mais vezes ainda ações contrárias a essa lei.

A Metafísica dos Costumes deve investigar a ideia e os princípios duma possível vontade pura, e não as ações e condições do querer humano em geral, as quais são tiradas na maior parte da Psicologia A presente Fundamentação nada mais é, porém, do que a busca e fixação do princípio supremo da moralidade.

Immanuel Kant Fundamentação da metafísica dos costumes Resumo Ética II Hélio Lima

Fundamentação: estrutura da obra 1) Primeira seção: Passagem do conhecimento racional comum da moralidade ao conhecimento filosófico. 2) Segunda seção: Passagem da filosofia moral popular à Metafísica dos Costumes. 3) Terceira seção: Último passo da Metafísica dos costumes à Crítica da razão pura prática.

Fundamentação da metafísica dos costumes Objetivo:... busca e fixação do princípio supremo da moralidade (106)

Primeira Seção Transição do conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico 1) Boa vontade e dever: - Não será uma nova moral, mas como o princípio supremo da moralidade se apresenta à consciência. - Inteligência, coragem, felicidade não são bens em si, e podem até corromper, se não estiverem ao serviço da boa vontade. - O que torna uma vontade boa? Tão-somente o querer - Qual o conteúdo da vontade que seria boa em si mesma? (112)

2) Dever: este contém em si a boa vontade: agir por dever - Para ter verdadeiro valor moral não basta que a ação seja conforme o dever: deve ser executada por dever. O valor moral de uma ação não reside, portanto, i. no efeito que dela se espera; ii. também não reside em qualquer princípio da ação que precise pedir o seu móbil a este efeito esperado. (115)

É a representação da lei em si mesma que determina a vontade, que constitui o bem excelente que chamamos moral Lei universal: agir com prudência pode ser bom para mim, mas posso erigir essa ação como máxima? Se a mentira fosse erigida como regra, a máxima se destruiria a si mesma. A inteligência comum dá mostras do princípio supremo da moralidade, da boa conduta. Cabe á filosofia fundamentá-lo para evitar o erro sofista.

Segunda seção Transição da filosofia moral para a metafísica dos costumes 1) Dever i) embora derivado da ação comum, não é um conceito empírico, pois a experiência não apresenta nenhum exemplo indubitável de ação cumprida por dever: Quando se trata de ação moral, o que importa não são as ações exteriores que se veem, mas os princípios internos da ação, que não se veem ii) A experiência não pode conferir-lhe universalidade e necessidade. Dignidade do dever: ser uma ideia da razão

A moral não pode e não deve se apoiar na antropologia, no estudo psicológico dos costumes e do caráter do homem, mas numa metafísica => no estudo a priori das condições da moralidade. Todas as coisas da natureza opera segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios: só ele tem vontade

2) Vontade: faculdade de agir segundo certas regras. Regras são máximas - a vontade está sujeita a condições subjetivas - Razão Conflito na determinação da vontade - Sensibilidade

LIBERDADE Determinação da vontade autonomia X heteronomia MORALIDADE Móvel-Intenção RAZÃO Imperativos dever X Inclinação categóricos X hipotéticos AUTONOMIA DA VONTADE princípio supremo da moralidade

3) Imperativos: obrigar/constranger a vontade Hipotéticos necessário para certos fins Categóricos incondicional; não subordinado a um fim; sintético: vontade e a lei