Quando a ideologia vem à tona: elementos do nível discursivo no texto publicitário 1

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Transcrição:

Quando a ideologia vem à tona: elementos do nível discursivo no texto publicitário 1 Adriana Tulio BAGGIO 2 Faculdade Internacional de Curitiba - Facinter, Curitiba-PR Resumo Para cumprir seu objetivo, o discurso publicitário busca a identificação com o públicoalvo, acabando por refletir a sociedade que o produz. Assim, a compreensão do discurso publicitário só é possível ao considerar os aspectos internos e também o contexto de sua produção. Para contemplar estes dois fatores, o artigo sugere a análise sociossemiótica, com destaque para o nível discursivo, um dos três que compõem o percurso gerativo da significação. Aqui são exemplificados, em relação ao discurso publicitário, os processos de embreagem e debreagem, o dito e não-dito, a tematização e a figurativização, os símbolos, índices e ícones. Por fim, levando em conta as informações que podem ser obtidas neste tipo de análise, propõe-se a sua utilização no ensino de criação publicitária, objetivando despertar a consciência para uma publicidade sustentável. Palavras-chave Publicidade; discurso publicitário; sociossemiótica; criação publicitária; ensino de publicidade. Introdução O discurso publicitário, através de suas especificidades, constitui um dos produtos mais representativos de determinada cultura. Por ter como objetivo primordial a venda do produto, serviço ou idéia anunciada, todos os recursos nele utilizados convergem para a realização desse propósito. Como esse processo acontece pela identificação entre o público e mensagem do anúncio, é fundamental que o discurso publicitário espelhe a cultura e a sociedade que o produz e para a qual se dirige (BAGGIO, 2003). Analisar o discurso publicitário sem levar em conta o seu contexto não permite apreender todos aspectos envolvidos na sua construção. Para realizar este processo, um 1 Trabalho apresentado no DT 08 Estudos Interdisciplinares da Comunicação do XI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul, realizado de 17 a 19 de maio de 2010. 2 Professora do curso de Comunicação Social - Publicidade, Propaganda e Marketing. E-mail: atbaggio@gmail.com. 1

caminho possível é a análise a partir da sociossemiótica, que difere das outras correntes semióticas ao considerar os discursos não-literários, permitindo assim a identificação dos traços socioculturais, das ideologias, dos sistemas de valores das comunidades onde o discurso é produzido através da situação de comunicação entre um enunciador e um enunciatário, cujo produto é um texto. No caso do discurso publicitário, o enunciador é o anunciante, o enunciatário é o consumidor ou o indivíduo-alvo da mensagem, enquanto que o texto é a peça publicitária (comercial de televisão, anúncio de jornal ou revista, spot de rádio, banner de internet, outdoor etc.) A sociossemiótica e os três níveis do discurso A sociossemiótica, desenvolvida e estudada no Brasil pelo professor Cidmar Teodoro Pais (1992), vê o texto não apenas como texto lingüístico, manifestado oralmente ou por escrito. Pode-se considerar como texto um romance, um poema, um tratado científico, e ainda um quadro, uma escultura, uma forma arquitetônica, um espetáculo de dança, um gesto entre amigos, uma conversa de bar, uma novela, e também um anúncio publicitário. Dentro desta abordagem, a construção da significação de um texto obedece a um percurso gerativo que vai do abstrato ao concreto e pode ser dividido em três etapas, independentes para efeitos de estudo, mas cuja relação é condição sine qua non para a formação da significação: a estrutura fundamental ou profunda, a estrutura intermediária ou narrativa e a estrutura discursiva. O foco deste trabalho é este terceiro nível, onde se pode perceber os temas e figuras escolhidos pelo enunciador para manifestar o discurso publicitário. O nível fundamental ou profundo apresenta a primeira etapa da significação e acontece através do estabelecimento de uma relação de oposição entre dois termos que, por sua vez, representam duas idéias contrárias, mas de uma mesma categoria semântica. Essa relação é fruto da redução da rede de relações presentes nas estruturas narrativas e discursivas. São articulações pouco numerosas, mais simples porém mais globalizantes (COURTÉS, 1991, p. 136). Por essa razão, para efeito de análise, o nível fundamental é o última a ser considerado. 2

A estrutura narrativa, por sua vez, apresenta uma sintaxe e uma semântica narrativas. Diana Luz Pessoa de Barros faz uma associação entre a sintaxe narrativa e um espetáculo. Para a professora, a sintaxe narrativa deve ser pensada como um espetáculo que simula o fazer do homem que transforma o mundo. Para entender a organização narrativa de um texto é preciso, portanto, descrever o espetáculo, determinar seus participantes e o papel que representam na historiazinha simulada (1999, p. 16). Este nível caracteriza-se pela busca de um Objeto de valor por um Sujeito. Dessa forma, a narrativa pode ser aplicada não somente aos textos narrados, mas a todos os enunciados onde exista um Sujeito que procure um Objeto de valor. Nessa busca o Sujeito é instigado por um Destinador, que é o idealizador da narrativa, e é ajudado por um Adjuvante ou prejudicado por um Oponente. Estes "papéis" da narrativa são chamados de actanciais. Quanto mais diferenciados e em maior quantidade mais o texto será carregado em ideologia, aqui considerada como o sistema de valores do indivíduo (BATISTA, 2001, p. 150). Destinador ------------------ Objeto de valor ------------------------- destinatário Adjuvante-------------------- Sujeito ------------------------- Oponente (COURTÉS, 1979, p. 80) Quando a narrativa chega até a superfície, ao nível de manifestação, temos a passagem para as estruturas discursivas, o nível mais superficial do percurso gerativo da significação. Segundo Barros (1999, p. 53), as estruturas discursivas são as mais específicas, mas também mais complexas e enriquecidas semanticamente, que as estruturas narrativas e fundamentais". É no nível discursivo que melhor se observam as técnicas persuasivas de construção do discurso publicitário. Nível discursivo: a manifestação dos mecanismos de persuasão do discurso publicitário 3

No percurso gerativo da significação do discurso publicitário, a enunciação é o processo de produção deste discurso, pressuposta pela existência do enunciado (a peça publicitária). A existência de um enunciado traz à tona a presença de um enunciador (anunciante), que realiza um fazer persuasivo, e de um enunciatário (consumidor), que realiza um fazer interpretativo. Na estrutura discursiva pode-se perceber as escolhas feitas pelo enunciador no sentido de conduzir a interpretação do enunciatário. São escolhas deliberadas, que juntas formam um discurso coeso e uniforme, indispensável para o sucesso da mensagem publicitária. a. Embreagem e debreagem Na estrutura discursiva, a embreagem e a debreagem estão relacionadas com os processos de aproximação e distanciamento do discurso em relação à enunciação e têm a finalidade de criar a ilusão de verdade. Quanto mais distante estiver o discurso da enunciação, maior a sensação de objetividade. Existem, como bem se sabe, recursos que permitem fingir essa objetividade, que permitem fabricar a ilusão de distanciamento, pois a enunciação, de todo modo, está lá, filtrando por seus valores e fins tudo o que é dito no discurso. O principal procedimento é o de produzir o discurso na terceira pessoa, no tempo do então e no espaço do lá (BARROS, 1999, p. 55, grifo da autora). A debreagem enunciva, que produz distanciamento, é muito freqüente no discurso da imprensa, que deve se manter imparcial em relação aos fatos narrados. Já a debreagem enunciativa, em primeira pessoa, está mais presente na literatura, na poesia. Ela produz o efeito de subjetividade, aproximando a enunciação do enunciado. No discurso publicitário, no entanto, observamos a presença dos dois procedimentos com o mesmo fim persuasivo. Os anúncios publicitários falam de forma objetiva, aconselhando, mostrando as qualidades de um produto, como se não tivessem nenhuma relação com ele. É a busca do efeito de neutralidade em relação ao que se diz, falso pela presença de um conflito de interesses. Por outro lado, a busca da persuasão também pode ser feita através do uso do discurso subjetivo, quando a publicidade coloca o próprio anunciante para falar sobre o que está sendo anunciado. 4

Outro processo utilizado para a criação de um efeito de realidade é a cessão da palavra a um interlocutor em discurso direto. Chama-se debreagem interna, e acontece na publicidade quando o anúncio usa o testemunho de uma pessoa real, que pode ou não ser conhecida do público. No caso das celebridades, o fator persuasivo vem da opinião de uma pessoa reconhecida publicamente. Quando o testemunho parte de uma pessoa comum, a persuasão se dá pela credibilidade de alguém mais próximo do consumidor, com os mesmos valores, problemas e estilo de vida. b. O dito, o não-dito e o dito de forma diferente Para que haja persuasão, é preciso haver um contrato estabelecido entre o enunciador e o enunciatário. O enunciador pode trabalhar com a verdade ou com a falsidade, com o dito e o não-dito. Cabe ao enunciatário interpretar e crer ou não crer, e perceber o que realmente está sendo dito ou a presença do que não foi dito. Este processo, por mais intrincado que pareça, é o que desperta a atenção do enunciatário para o discurso, através do estranhamento provocado pela utilização não-tradicional da língua, seja no seu aspecto lógico, semântico, sintático, morfológico ou fonológico. Na prática, no discurso publicitário temos a utilização das figuras de retórica, como a antítese e a ironia, a metáfora, a metonímia, o eufemismo e a hipérbole, a elipse, a paronomásia, a rima, a aliteração, entre outras. Muitas dessas figuras podem ser percebidas no plano da manifestação do discurso. Como exemplo, vamos considerar um anúncio hipotético de produtos dietéticos. Neste tipo de anúncio é comum encontrar expressões como "fique em forma", que pressupõe o não-dito você não tem uma boa forma, portanto, vai precisar do produto que está sendo anunciado. Outros termos, como "gordurinhas" e "cheinha", por sua vez, são um eufemismo para gordura, gorda, obesa. Já a imagem de uma fita métrica e de um vestido justo são metáforas para um corpo magro, segundo o padrão de beleza que baseia o contrato estabelecido entre enunciador e enunciatário nesse tipo de discurso. c. Tematização e figurativização 5

A semântica discursiva tem ainda como componentes a tematização e a figurativização. A tematização compreende os valores abstratos do texto, que estão expressos em palavras e sintagmas com elementos comuns de significação, podendo ser agrupados. A redução destes grupos a elementos mínimos permite a identificação das idéias em oposição que constituem o nível fundamental do discurso. Já a figurativização reveste o esquema narrativo de elementos concretos, especificando e particularizando o discurso. Neste processo, o autor escolhe as figuras que vai utilizar para caracterizar atores, tempo, espaço e valores. Conforme alerta Fiorin (2000, p. 65), a relação entre abstrato e concreto não representa uma polarização, mas um processo contínuo no qual, de maneira gradual, do mais abstrato chega-se ao mais concreto. Na publicidade podemos perceber os temas que refletem os valores abstratos do percurso narrativo. No percurso do anúncio hipotético de produtos diet, o tema /boa forma/ ou /magreza/ é um valor a ser conquistado pelo Sujeito. Neste anúncio, o percurso narrativo que vai do estado /gordo/ para /magro/ será tematizado na forma do consumo deste tipo de produto. As figuras que poderiam ser utilizadas para se chegar a esse tema são, conforme já descrito anteriormente, a fita métrica, a imagem de uma mulher magra, ou ainda um vestido justo, uma pena, cores claras, as palavras "leve", "magra", "boa forma", "diet", "light" e até termos mais amplos, apropriados pela publicidade para dar credibilidade à sua promessa, como "vida saudável" (buscar a boa forma pode ser futilidade, mas buscar uma vida saudável é relevante). Um mesmo elemento figurativo pode servir a vários temas, da mesma maneira que um tema pode ser formado por várias figuras. Quando um tema é constituído por várias figuras diferentes, temos o que Courtés (1991, p. 167) chama de discurso parabólico: um mesmo conceito é ilustrado por diversas figuras, onde a austeridade do tema dá lugar ao prazer do figurativo. Conforme o autor francês, o discurso parabólico, pela sua força de persuasão, é muito utilizado não só no mito, no conto, na religião, mas também no discurso político e no publicitário. Quanto a este último, pode-se retomar o exemplo do anúncio do produto dietético para exemplificar o processo. Existe um tema - a boa forma - e várias figuras que ilustram essa promessa, conforme já citado acima: a fita métrica, a imagem de uma mulher magra, um vestido justo, uma pena, cores claras, as palavras "leve", "magra", "boa forma", "diet", "light". 6

d. Símbolos, ícones e índices como figuras As figuras utilizadas para a ilustração de um tema são escolhidas pelo enunciador. Há figuras, no entanto, que já são intimamente relacionadas com um determinado tema. São os símbolos, elementos concretos a veicular um conteúdo abstrato (FIORIN, 2000, p. 69). Essa noção, aplicada ao papel da figura em relação ao tema, segue a linha semiótica de Pierce, que define o símbolo como um dos tipos de signos cuja relação com o referente é arbitrária e convencional (PIGNATARI, 1992, p. 25). Barros (1992, p. 25) também retoma a semiótica de Peirce ao identificar um outro tipo de figura, o ícone, signo que possui semelhança ou analogia com o seu referente. Para a autora, esse processo no discurso tem a função de ancoragem, de construção do efeito de realidade, para tornar o discurso crível. Na iconização [do discurso], mas também nas demais etapas da figurativização, o enunciador utiliza as figuras do discurso para levar o enunciatário a reconhecer 'imagens do mundo' e, a partir daí, a acreditar na 'verdade' do discurso, graças, em grande parte, ao reconhecimento de figuras do mundo (1999, p. 72). Os ícones, sob esse aspecto, são informações reais sobre espaço, tempo e também sobre o sujeito. Como exemplo na publicidade, podemos citar as campanhas da empresa de cosméticos Natura, cuja estratégia de comunicação consiste em mostrar mulheres "reais" (que não sejam modelos), apresentando, ao lado de suas fotografias, informações como idade e profissão. A empresa, enquanto enunciatária, deseja com isso dar credibilidade aos seus produtos, mostrando mulheres "normais", belas de acordo com a idade que têm. Ampliando ainda mais a contribuição de Peirce para a classificação das figuras com base na sua teoria semiótica, pode-se considerar a presença do índice, o terceiro tipo de signo. O índice "mantém uma relação direta com o seu referente, ou a coisa que produz o signo" (PIGNATARI, 1992, p. 25). Na publicidade, um exemplo de índice é o aroma de pizza que foi utilizado em determinada campanha de outdoor veiculada pelo restaurante Pizza Hut. A figura do cheiro ilustra o percurso temático do sabor e é índice na medida em que tem relação direta com a pizza que o produziu. 7

Possíveis utilizações da análise sociossemiótica no ensino de Publicidade e Propaganda A análise sociossemiótica do discurso publicitário, especialmente da sua estrutura discursiva, é um procedimento metodológico que pode atender a diversos objetivos. O fato de considerar tanto os signos verbais quanto não-verbais, por exemplo, pode facilitar aos alunos dos cursos de Publicidade e Propaganda o entendimento de que o processo de criação se realiza em conjunto pelo diretor de arte, responsável pelo aspecto da imagem, e pelo redator, responsável pelo aspecto verbal. Desta forma, mostra-se que as figuras escolhidas por estes profissionais no momento da criação da peça publicitária devem sempre estar a serviço do tema a ser transmitido, e que estes temas e figuras revestem uma narrativa, que por sua vez é fundamentada em uma ideologia. O processo demonstra, também, como o repertório, o conhecimento do público-alvo, da cultura, da sociedade e do briefing transmitido pelo cliente são importantes no momento da criação, já que estes conhecimentos serão os balizadores das escolhas feitas pelos profissionais. O método também é útil para que se identifique a ideologia transmitida pela publicidade, compreendendo que ela é um reflexo da sociedade e da cultura em que está inserida. Muitas vezes o discurso publicitário não é analisado com a devida atenção pela sua falta de credibilidade (já que a ele é inerente o conflito de interesses). Porém, sua aparente falta de importância faz com que tenha mais liberdade para veicular mensagens que, muitas vezes, refletem situações prejudiciais às pessoas e à sociedade, reforçando ou legitimando estereótipos e preconceitos. Retomando as estruturas discursivas propostas pela sociossemiótica, vale lembrar que por baixo de uma manifestação aparentemente inócua podem se revelar narrativas e ideologias bastante poderosas, ainda mais pelo seu excelente caráter persuasivo. Se for possível considerar este método enquanto técnica de apoio à criação publicitária e, ao mesmo tempo, procedimento de análise, talvez os profissionais da publicidade possam fazer escolhas que atendam, simultaneamente, as necessidades mercadológicas do anunciante e a demanda por peças publicitárias menos preconceituosas, estereotipadas e ofensivas. É uma sugestão para se pensar o fazer 8

publicitário dentro do amplo campo das discussões sobre relações comerciais mais justas, mais responsáveis e mais sustentáveis. Referências bibliográficas BAGGIO, Adriana T. O espetáculo semiótico da publicidade que não diz seu nome: aspectos da temática homossexual na publicidade brasileira. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2003. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1999. 4ª edição. BATISTA, Maria de Fátima B. de M. O discurso semiótico. In: ALVES, Eliane; BATISTA, Maria de Fátima; CHRISTIANO, Maria Elizabeth (orgs.). Linguagem em foco, João Pessoa: Editora Universitária/Idéia, p. 133-157, 2001. COURTÉS, Joseph. Analyse sémiotique du discours: de l'énoncé à l'énonciation. Paris: Hachette, 1991.. Introdução à semiótica narrativa e discursiva. Tradução de Norma Backes Tasca. Coimbra: Almedina, 1979. FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2000. PAIS, Cidmar T. Elementos para uma tipologia dos sistemas semióticos. Revista Brasileira de Lingüística. São Paulo: SBPL, vol. 6, nº 1, p. 45-60, 1992. PIGNATARI, Décio. Informação, linguagem e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1997. 10ª edição. 9