1 EXMO. PRESIDENTE DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS BRASILEIROS INDICAÇÃO N.051/2013 RELATORA: LEILA MARIA BITTENCOURT DA SILVA EMENTA DO PARECER: Inconstitucionalidade da Lei estadual 6.528/2013 que proíbe o uso de máscaras em manifestações populares. Inconstitucionalidade formal ALERJ é incompetente para regulamentar norma constitucional autoaplicável, de eficácia plena e aplicabilidade imediata. Poder Legislativo não pode agir como poder constituinte. Inconstitucionalidade material ofensa aos direitos fundamentais. Inadmissibilidade de contenção da liberdade de reunião. Direito de expressão coletiva não sujeito às exigências alheias ao texto constitucional. RELATÓRIO A INDICAÇÃO nº 051/ 2013 proposta pelo Dr. João Carlos Castellar visa que o IAB atue como Amicus Curie no TJRJ na REPRESENTAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE COM PEDIDO DE LIMINAR proposta pela Seccional da OAB/RJ, que argui a inconstitucionalidade da lei estadual Lei 6.528, de 11 de setembro de 2013, que busca regulamentar o artigo 23 da Constituição do Estado do
2 Rio de Janeiro, ao violar os artigos 9º. 1º; 23, caput e 1º; 72; 98 e incisos da Constituição estadual. Designada, em face da urgência para emitir Parecer sobre a matéria, segue a análise. É O PARECER A nova lei estadual Lei 6.528 de 11/09/2013 estabelece: Art. 1º O direito constitucional à reunião pública para manifestação de pensamento será protegido pelo Estado nos termos desta Lei. Art. 2º É especialmente proibido o uso de máscara ou qualquer outra forma de ocultar o rosto do cidadão com o propósito de impedir-lhe a identificação. O art. 23 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro dispõe: "Todos podem reunirse pacificamente, sem armas, em locais abertos, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo exigido apenas prévio aviso à autoridade". O dispositivo é cópia da Constituição federal que diz o mesmo no art 5, inciso XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente. A única diferença é a ausência da expressão ao público, que não aparece na norma estadual, o que não desmerece a igualdade dos textos federal e estadual. Padece de inconstitucionalidade formal e material a lei estadual em tela pelos motivos que passamos a analisar. inconstitucionalidade formal Preliminarmente não poderia uma lei estadual regulamentar direito fundamental expresso em norma de eficácia plena, não cabendo contenção de qualquer espécie. Aliás, somente caberia norma de contenção por lei, quando o próprio texto
3 constitucional assim determina, conforme, por exemplo, a liberdade de exercício de profissão. Entretanto na matéria em comento, o texto é claro, a aplicabilidade é imediata e a eficácia plena, isto é, não se submete à contenção, vale dizer, à qualquer exigência para o seu exercício, à regulamentação de contenção. A Constituição estadual no artigo 23, que taxativamente dispõe, que todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente. (grifo nosso), aponta rol fechado, que implica na ausência de limitação ao direito de reunião, fora do texto constitucional. liberdade de expressão coletiva Ora, não cabe regulamentar dispositivo constitucional restringindo direito fundamental de expressão coletiva, que é o direito de reunião. As liberdades para o Direito Constitucional, na esteira de José Afonso da Silva, estão assim agrupadas: 1- liberdade da pessoa física ( locomoção, circulação); 2- liberdade de pensamento ( opinião, religião, informação, artística, comunicação do conhecimento); 3- liberdade de expressão coletiva ( reunião, de associação); 4- liberdade de ação profissional ( livre escolha e de exercício de trabalho, ofício e profissão) 4- liberdade de conteúdo econômico e social ( liberdade econômica, livre iniciativa, de comércio, ou autonomia contratual, de ensino e de trabalho). As Constituições federal e estadual expressam clareza quando dizem apenas exigido prévio aviso à autoridade competente., para a realização de reunião pacífica, sem armas, em locais abertos ao público, independe de autorização do poder público. A Constituição limita as exigências ao exercício da liberdade de expressão coletiva ao usar o vocábulo apenas, que significa exigir somente, exclui outra exigência, salvo o prévio aviso à autoridade competente, que nenhuma outra exigência deva prosperar, isto é: não se pode admitir outra exigência que não seja o aviso à autoridade competente. Ponto final. Logo, não se pode limitar a presença ou ausência
4 de máscara ou qualquer outra condição aos titulares do exercício da liberdade de expressão coletiva e que o texto constitucional excluiu limitações, restrições ou contenção, ainda que decorrentes de outro dispositivo, conforme a proibição de anonimato para manifestação de pensamento. Ademais o Poder Legislativo do Estado do Rio de Janeiro não pode agir como Poder Constituinte estadual impondo exigências que o constituinte estadual expressamente limitou em conteúdo, em rol taxativo e excludente, do artigo 23 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro. Excede, pois, a lei, que se quer fuminar por inconstitucional, ao se sobrepor à Constituição em flagrante afronta à hierarquia das normas. Também no campo do direito estrangeiro, inclusive na jurisprudência da França, é certo que as medidas de polícia são, segundo Jean-Jacques Israel, ou devem ser sempre, primeiramente no sentido da plenitude da realização da liberdade de reunião e o Conselho de Estado da França, ao decidir sobre um caso do sindicato dos professores, considerou que a lei relativa à liberdade de reunião exclui qualquer medida de polícia preventiva suscetível de impedir o exercício dessa liberdade. (Droit des libertés Fondamentales. Librarie Génerale de Droit et de Jurisprudence, E. J. A., 1998). Nota-se a importância do exercício da liberdade de expressão coletiva, fixa ou móvel, no direito nacional e estrangeiro, que impõe análise desapaixonada e enérgica, segundo a direção das bases e natureza dos direitos fundamentais, produto de construção histórica e política, em todo o mundo, ao longo de séculos, acima de interesses políticopartidários e particularismos. Vedação de anonimato Ocorre que aquela proibição de anonimato para manifestação de pensamento nas Constituições federal e estadual, ao rezarem que é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato, tratam de casos genericamente considerados para as manifestações individuais que pudessem acarretar afronta aos outros direitos dos indivíduos, dentre eles, a honra, a vida privada, a privacidade, indenizáveis por dano
5 moral, material e imagem, por seus autores a terceiros lesados e daí a necessidade de identificação, assim como o direito de resposta. Ora, isto nada tem com a liberdade de expressão coletiva, que assume natureza, neste caso, política, e não individual, mas de expressão coletiva, ínsita no Estado democrático de Direito. O direito é individual, a liberdade é de cada indivíduo em participar de manifestações públicas em passeatas e reivindicações populares, que em conjunto, indivíduos unidos por objetivos comuns, exercem a liberdade de expressão coletiva, no caso da insatisfação com relação à ineficiência estatal na saúde, educação, transporte e combate à corrupção. Este é o correto entendimento a respeito da liberdade de manifestação do pensamento, proibido o anonimato, que diz respeito à oposição individual contra terceiros para fins indenizatórios. Em manifestações de natureza política existe, inclusive, a presença física do participante, e não o anonimato erroneamente aventado. Cumpre ressaltar que incidem normas aplicáveis em caso de flagrante delito com a respectiva identificação por parte da autoridade pública com lavratura do auto em flagrante, o que indica que não se tratar de anonimato. Quanto às práticas abusivas ou delituosas de alguns manifestantes, cabe a aplicação da legislação em vigor, mas nunca a contenção incidindo sobre todos os manifestantes no exercício da liberdade de expressão coletiva. Trata-se, pois, de melhorar a qualidade da prestação estatal, do trabalho do polícia, na garantia da integridade das pessoas e dos bens públicos e privados e de capacitação de recursos humanos para lidar com as novas situações diante da população insatisfeita. Liberdade de reunião e requisitos Reunião é liberdade de expressão coletiva embora seja direito individual de integrar um conjunto de pessoas com fim comum, de expressar opinião política, filosófica ou religiosa, no caso em tela opinião política, podendo ser móvel, se passeada, ou em local
6 fixo e aberto ao público, correlata a outros direitos, dentre eles, ir, vir e permanecer, em via ou espaço público ( circulação em via pública), e manifestação de pensamento. Portanto, lei estadual não é competente para regulamentar norma de eficácia plena, que não pode ser contida por outra norma seja de que natureza for. À luz da Constituição somente são admissíveis os seguintes requisitos, para a liberdade de reunião, no caso em tela, manifestações populares de desaprovação às autoridades públicas: 1) que sejam pacíficas; 2) sem uso de armas; 3) que haja prévia comunicação à autoridade competente; 4) que não haja outra previamente marcada para o mesmo dia, local e horário. Sem armas significa armas brancas ou de fogo, que denotem, a um simples relance do olhar, atitudes belicosas ou sediciosas, vez que isto não quer dizer que a autoridade possa submeter a revistas para verificar ou não a existência de armas, conforme leciona José Afonso da Silva. ( Direito Constituição Positivo, p. 265, Ed 2012) Objetivos da lei que se fulmina por inconstitucional A lei estadual mistura dois sentidos de cada norma distinta, isto é vedação de anonimato com a liberdade de reunião na expressão coletiva das passeatas e manifestações populares das ruas, protegidas constitucionalmente, o que demonstra inequívoco objetivo de confundir o intérprete mais distraído ou na pior hipótese o absoluto desconhecimento do entendimento constitucional. As manifestações de rua, a partir de junho de 2013, carregam nítida desaprovação aos governos em todas as esferas políticas e administrativas, em face das pautas reiteradas em cartazes e palavras de ordem em relação à ineficiência das autoridades estatais. Ademais existe lei a ser aplicada em caso de pessoas infiltradas entre os manifestantes, encontradas em flagrante delito, que estejam atacando pessoas, patrimônio público ou privado e para evitar tal barbárie há que se ter um aparato preventivo e eficaz, preparado para não atacar ou usar de truculência policial sobre manifestantes pacíficos que estão sob a égide da proteção constitucional à liberdade fundamental de reunião, expressão coletiva da notória insatisfação do povo à atuação do Estado.
7 A famigerada lei estadual carrega o objetivo político de coibir manifestações populares contra opositores das decisões governamentais de notória rejeição popular. Não cabe à lei estadual tentar reprimir manifestações das ruas, impondo exigências porque seria retorno ao autoritarismo que o povo brasileiro não mais quer repetir. Cabe à autoridade pública zelar pela integridade dos manifestantes. Seja qual for o pretexto, sofre de inconstitucionalidade formal e material tal desiderato. Nota-se que solução para o resguardo das pessoas e bens está no uso da inteligência e do respeito às leis que servem e incidem sobre todos, governantes e governados. A norma estadual somente pode alargar direitos fundamentais, sem violar a Constituição estadual e federal, mas nunca limitando direitos expressos. Quaisquer outros dispositivos arguidos perdem importância em face da inconstitucionalidade formal relevante e da inconstitucionalidade quanto ao objeto da lei, genericamente considerado. CONCLUSÃO: A lei estadual que proíbe uso de máscaras em manifestação popular padece de inequívoca inconstitucionalidade formal e material, cabendo às autoridades o cumprimento da Constituição estadual. As únicas limitações às manifestações populares são: 1- que sejam pacíficas; 2- sem uso de armas; 3- que haja prévia comunicação à autoridade competente; 4) que não haja outra previamente marcada para o mesmo dia, local e horário. Outra exigência caracteriza arbitrariedade contrária à democracia. A inconstitucionalidade formal da lei, que proíbe o uso de máscaras em manifestações populares, é fruto de decisão imperial e autoritária do Estado do Rio de Janeiro, que não é competente para contenção da liberdade de reunião protegida constitucionalmente.
8 Norma estadual que restringir direitos fundamentais expressos é inconstitucional, precisa ser expurgada do mundo jurídico, sob pena de grave violação ao Estado democrático de Direito ainda em vigor. As Constituições dirigem-se também aos governantes, que são limitados por elas, devem agir no cumprimento delas, sem arbítrio ou imposições estranhas a elas. A razão de ser das Constituições, na origem, é limitar o poder e proteger o cidadão do arbítrio estatal. Os direitos fundamentais, que são oponíveis ao Estado, servem para dar garantia mínima de construção da liberdade e da justiça, objetivos do Estado brasileiro. O Estado do Rio de Janeiro é fonte cultural, intelectual e política do país, que não pode se amesquinhar, como berço de energias sociais vigorosas, com uma juventude inquietante e inquieta, resistente e persistente, que luta por um país mais justo e igualitário. Pelas razões expostas, urge a participação do Instituto dos Advogados Brasileiros na REPRESENTAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE COM PEDIDO DE LIMINAR, na qualidade de Amicus Curie, por imperiosa destinação e tradição de nossa Casa, afinada desde a sua fundação, na luta por um país mais justo, a fim de tocar as consciências dos integrantes do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, para a verdadeira distribuição da Justiça e defesa do Estado democrático de Direito, em momento tão especial e complexo da vida social e política brasileira, que se registrará para sempre na História do país e do Estado. S. M. J., é o Parecer. Rio de Janeiro, 16 de outubro de 2013. Relatora LEILA MARIA BITTENCOURT DA SILVA Membro da Comissão Permanente de Direito Constitucional do IAB
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