A LITERATURA COMO PRÁTICA: INTERPELAÇÃO DE SUJEITOS-APRENDIZES DE LÍNGUA ESTRANGEIRA.

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Transcrição:

A LITERATURA COMO PRÁTICA: INTERPELAÇÃO DE SUJEITOS-APRENDIZES DE LÍNGUA ESTRANGEIRA. Jorge Rodrigues de Souza Júnior (IEL-UNICAMP/CAPES) Pretendemos em nosso trabalho refletir sobre práticas que envolvem a literatura em livros didáticos de espanhol, nível intermediário, utilizados em contextos formais de aprendizagem de Língua Espanhola para brasileiros, usados no Ensino Médio. Apesar do título convocar uma reflexão sobre a interpelação de sujeitos-aprendizes de LE pela literatura, em realidade a realizaremos sobre um outro lugar, naquele em que tal interpelação não ocorre. Nosso olhar se centrará em atividades propostas pelos autores dos livros didáticos para a interpretação de textos literários, e se tais atividades mobilizam e/ou interpelam o sujeito em relação ao funcionamento desses textos, analisando como se instaura o confronto da materialidade lingüística com o sujeito. Nossa pesquisa de dissertação de mestrado, em curso, analisa práticas que envolvem o trabalho com textos literários em livros didáticos de espanhol para brasileiros e propõe o uso de antologias de dramaturgia argentina em práticas de ensino dessa língua. Ademais de operar com conceitos da Análise do Discurso, de linha francesa, também operamos com os componentes que constituem a perspectiva multidimensional-discursiva proposta por Serrani (2005) para um currículo de ensino de línguas. Pela perspectiva multidimensional-discursiva a prática de ensino deve levar em consideração que o aprendiz é um sujeito que está na linguagem, pois esta o constitui; que a linguagem está submetida a uma memória de discursos, nos quais os sentidos estão presentes; e que o sujeito, ao discursar, recorre a processos identificatórios com os discursos presentes na memória de sua língua, para significar o que diz (e também para significar-se). Por esta perspectiva o currículo de ensino de línguas (seja materna ou estrangeira) não é abordado por uma perspectiva unidimensional mas sim multidimensional, no qual o conteúdo de uma aula de língua pode ser trabalhado sobre componentes interdependentes, rompendo com uma prática que se apresente somente sob uma concepção de linguagem, conforme Serrani (2005): 1. Componente Intercultural; 2. Componente Língua-Discurso; 3. Componente de Práticas Verbais. A partir do texto literário esses componentes serão trabalhados. O componente intercultural é o espaço no qual o sujeito-aprendiz terá oportunidade em estudar não somente a cultura da língua estrangeira, mas também os grupos e sujeitos pertencentes a esse outro dizer, assim como as práticas discursivas que o envolvem; pode-se trabalhar o conteúdo específico de linguagem juntamente com o que se trabalhará neste componente, evitando que a aula de língua seja somente uma prática normativista. É aconselhável que o professor parta do contexto cultural do aluno, para que este possa ter um olhar mais sensível ao outro da língua estrangeira. Podemos traçar três eixos temáticos (Serrani, 2005, p. 31-32), a partir dos quais o texto literário poderá ser trabalhado sob o componente intercultural: 1. Territórios, Espaços e Momentos (de que lugar sócio-espacial o texto foi produzido?); 2. Pessoa e Grupos Sociais (não somente identificar os grupos sociais presentes no texto, mas também uma oportunidade para que os alunos trabalhem com textos produzidos por diferentes grupos sociais, ademais de ter acesso a materiais que apresentem um olhar a grupos não presentes nos livros didáticos); 3. Legados Sócio-culturais (é a oportunidade de o aluno não somente ter acesso a conteúdos enciclopédicos, mas também a uma cultura e a um universo distinto do seu, que funcionará subjetivamente no aprendiz em seu processo de aprendizagem, mobilizando-o nos discursos da língua estrangeira). O componente língua-discurso traz um olhar discursivo sobre a linguagem e também toda a teoria que estamos apresentando neste trabalho: a língua é o sistema fonológico e morfossintático, o que se representa na esfera da materialidade lingüística, no fio do discurso; o processo discursivo refere-se às posições enunciativas, que ocorrem em contextos sócio-históricos e subjetivos, em toda produção verbal. São processos interdependentes, ou seja, a língua ocorre em processos discursivos, mas estes não podem

acontecer sem a materialidade lingüística: é a alteridade intrínseca da linguagem. Neste componente o sujeito-aprendiz será mobilizado em relação à diversidade lingüística de uma língua, à heterogeneidade que a constitui, às diferentes condições de produção do discurso, de como é realizada a tomada de palavra pelos falantes e em quais situações é permitido dizer determinados discursos (e de que lugares esses discursos são produzidos: em uma escola existem discursos distintos dos que ocorrem em uma instituição jurídica ou comercial, por exemplo). O componente das práticas verbais é o espaço em que se trabalharão as atividades mais recorrentes em uma aula de língua: produção oral e escrita, compreensão auditiva, leitura e também tradução, pois, apesar de que somos contra a uma prática que esteja baseada somente na metalinguagem e no normativismo, cremos que o sistema da língua não está separado das condições de produção do discurso; a materialidade lingüística forma base dos processos discursivos. Ademais, a tradução ajuda o aluno a compreender que os sentidos dos discursos são distintos nas duas línguas, que o significado das palavras, muitas vezes, não é transparente. A dicotomia entre língua e literatura é irreal. É possível uma prática de ensino de línguas que se utilize dessa última, contra outra que apresente somente conteúdos e funções, vazias de sentido, levando o aluno a ser um papagaio na língua estrangeira (REVUZ, 1998). Aprender uma nova língua é ter um novo olhar, é ser também outro sujeito: como professores temos que dar ao aluno esta oportunidade de conhecer esse novo mundo da língua estrangeira. Se admitimos que haja uma dicotomia entre língua/literatura, estaríamos legitimando apenas dois funcionamentos possíveis da língua, um em que a somente a literalidade é possível e outro em que as condições de produção permitiriam a ocorrência de diferentes sentidos; esses processos, como já dissemos, são interdependentes, são intrínsecos à linguagem e um processo de ensino e aprendizagem de uma língua, seja materna ou estrangeira, tais processos devem estar comtemplados. Como, em sua maioria, os materiais didáticos estão pensados sob o enfoque comunicativo, em que a apresentação dos temas a serem estudados se dá a partir de situações comunicativas e descontextualizadas, pensamos nosso trabalho em relação à literatura nos livros didáticos como acesso à manifestação do equívoco, do não-estabilizado, como lugar de memória, de acesso aos diferentes sentidos que constituem um discurso; porém não queremos dizer que em textos não-literários tal funcionamento não ocorra a materialidade do texto literário permite um trabalho com os sentidos mais produtivo que outros tipos de funcionamento; porém também é uma questão política, em trazer à tona novamente o trabalho com a literatura em aulas de língua estrangeira, prática abandonada nos diversos materiais didáticos elaborados sob o enfoque comunicativo. Em nossa pesquisa refletimos que, na ocorrência dos textos literários nos livros didáticos, há um funcionamento outro do que aquele em que tal texto foi produzido, pois as condições de produção dos textos literários são diferentes das dos enunciados elaborados pelos autores desses livros. Ter acesso a esse jogo contraditório é reconhecer esse trabalho que demanda várias possibilidades de sentidos, esse deslocamento do sujeito-aprendiz mobilizando sentidos, leituras e interpretações frente à língua estrangeira. Nessa perspectiva, pensar em que perfil de leitores os autores levam em consideração ao realizar o trabalho com a literatura nos livros didáticos é pertinente; como Orlandi (2008), pensando no confronto em uma forma-leitor projetada no livro didático e a constituição desse sujeito-aprendiz em leitor, em como se dá o trabalho com essa contradição. Seguindo com Orlandi (idem), investigar a produção do efeito-leitor a partir da materialidade mesma do texto em sua relação com a discursividade e os diferentes gestos de interpretação que aí se dão. Partimos de reflexões 1 de Pêcheux (1997) e Orlandi (1988 & 2008) sobre a relação texto/discurso para tecer um olhar sobre o funcionamento do texto literário nas práticas de ensino de Língua Espanhola para 1 A Análise do Discurso de linha francesa postula que todo discurso está constituído por uma memória discursiva, composta por discursos que já foram realizados em um contexto sócio-histórico. O inconsciente (conceito tomado da Psicanálise) atuaria de maneira a que todo sujeito tivesse a ilusão em ter a autoria de seu dizer, ou seja, de ser autor de seu discurso. Mas para que seu discurso seja entendido e adquira sentido, ocorrem vários processos de apagamento, em que não é possível detectar a origem de um dizer. Nessa postulação é importante ressaltar dois conceitos: as noções de intradiscurso e interdiscurso: o primeiro seria o nível de formulação do discurso, o fio discursivo, a linearidade do dizer, no qual temos a materialidade lingüística; o segundo seria o nível de constituição do discurso, uma rede complexa de discursos, na qual todo dizer está inserido. Temos neste nível o já-dito, a memória discursiva de sentidos.

brasileiros. O texto, como materialidade lingüística, formulado intradiscursivamente, é também discurso, dotado de uma memória discursiva (o interdiscurso) que o sustenta e dá condições a determinados sentidos e não outros dando condições a certos discursos e dizeres formulados. Sua manifestação é a possibilidade de um sentido, frente a outros. Sua ocorrência em um livro didático se dá em condições de produção específicas e distintas de outras possíveis formas de ocorrências (em um jornal, em uma antologia, em uma coleção didática) e em cada uma delas se dá sob sentidos diferentes. Os sentidos têm sua história e suas redes de significação, às quais o sujeito se filia. Cito Orlandi (1988): Ao afirmarmos que os sentidos têm sua história, estamos enfatizando que a variação tem relação com os funcionamentos distintos, ou seja, com os contextos de sua utilização. E ao afirmarmos que um texto tem relação com outros, estamos apontando para o fato de o conjunto de relações entre os textos mostrarem como o texto deve ser lido. (ORLANDI, 1988, p. 42) E o sujeito-aprendiz de língua estrangeira, também leitor, é mobilizado a inscrever-se nos sentidos que permeiam o texto literário? Tais sentidos, materializados no recorte realizado pelo livro didático, possuem sua história e são variados conforme as suas condições de produção. No âmbito escolar a regulação e a produção de sentidos são institucionalizados de tal forma que se encontram centralizados no sujeito-professor, e a leitura de textos, como prática, se dá conforme condições nas quais as interpretações do sujeito-aprendiz não são legitimadas. Apesar de não pretender analisar, nesse trabalho, práticas realizadas pelos professores com o texto literário em sala de aula, recorro a Pfeiffer, quando analisa o leitor no contexto escolar, na aprendizagem da língua materna: (...) não é dado ao aluno espaço para que ele reflita sobre a leitura, todas as respostas são dadas antes que os alunos respondam. Estas respostas vêm via fala do professor, baseada no livro didático que assume as vestes do discurso científico da verdade unívoca; e via livro didático (com os grifos das respostas que o próprio texto traz). E nos parcos momentos em que os alunos se posicionam sob a forma de comentário, eles são ignorados pelo professor. (PFEIFFER, 1998, p. 95). Analisar esse funcionamento, em aulas de língua espanhola como língua estrangeira, justifica-se pelo fato de estas possuírem, como um dos seus principais apoios pedagógicos, o livro didático. Baseando-nos em Orlandi (1988) quando diz que a leitura ideal do professor está amarrada àquilo que é fornecido pelo livro didático, a preocupação com as práticas com o texto é central e a prática do professor e os sentidos mobilizados por ele merecem especial atenção. Em práticas de ensino de uma língua estrangeira, o sujeito, ao submeter-se à sua aprendizagem, possui o referencial de sua língua materna (REVUZ, 1998, p. 215); tal tarefa só se realiza quando já se teve acesso à linguagem, através de uma outra língua (Ibid, p. 215). Neste sentido o sujeito-aprendiz, ao primeiro contato com a língua estrangeira a percebe, (...) ao mesmo tempo, próxima e radicalmente heterogênea (Ibid, p. 215), em comparação com a materna pois, ao entrar em contato com a língua estrangeira nota o quão forte é o funcionamento do simbólico dessa língua (diferente do de sua língua materna) e esse contato também mobiliza os laços que o identificam à sua língua. Para instaurar o espaço da diferença entre as duas línguas, a aprendizagem de uma língua estrangeira deve mobilizar o sujeito-aprendiz aos sentidos que a permeiam. E por abordar a leitura de textos como prática no âmbito escolar, realizamos uma reflexão sobre como funciona a inscrição do sujeito nas redes de significantes desses textos e em que condições isso se dá (ORLANDI, 2008: p. 61); como na produção do discurso há a inscrição do outro, Orlandi propõe que no campo da leitura a função-autor tem o seu duplo no efeito-leitor (Idem). Não se pode falar do lugar do outro; no entanto, pelo mecanismo da antecipação, o sujeitoautor projeta-se imaginariamente no lugar em que o outro o espera com a sua escuta e, assim, guiado por esse imaginário, constitui, na textualidade, um leitor virtual que lhe corresponde, como com seu duplo. Esse é um jogo dos gestos de interpretação que se dá na ou a partir da materialidade mesma do texto e ao qual o analista deve ser sensível quando pensa o imaginário que constitui o sujeito leitor virtual e o sujeito leitor efetivo com suas determinações concretas. (ORLANDI, 2008, p. 61).

Descritas as leituras das quais partimos para a realização desse trabalho propomos, a partir da materialidade dos discursos que constituem o corpus, realizar um recorte sobre aquilo que para nós mais demandou análise entre os fragmentos de textos literários dos livros que analisamos. Como a análise é sempre um movimento de descrição e interpretação, esta não fecha outras interpretações possíveis sobre os funcionamentos dos discursos analisados. Partindo dessa premissa, realizamos uma reflexão sobre a ocorrência de um texto literário, de gênero poético, e sua relação com as outras práticas propostas na primeira unidade didática de um dos livros de espanhol que compõe o nosso corpus. A unidade do livro que analisamos (que está dividido em três níveis: básico, intermediário e avançado) compõe o volume de nível intermediário. Este está dividido em oito unidades temáticas, organizadas a partir de temas do cotidiano (Comportamento e Identidade, Línguas, Trabalho, Dinheiro, Saúde, Viagem, Diversão, Modernidade). A nomeação de cada unidade é feita por ditados populares que tem a ver com cada um dos temas acima; no final de cada uma, há uma lista de sugestão de leitura, com comentários (muitos deles dos próprios autores) extraídos de guias de leitura, jornais e revistas. Primeiramente apresentamos uma descrição dessa unidade. No início da Unidad 1 há a citação do ditado Amigo que no da y cuchillo que no corta, que se pierdan poco importa, que está relacionado ao tema proposto para essa unidade, a identidade e o comportamento. Nela encontramos cinco textos (três reportagens de revistas e dois poemas de Neruda). O primeiro é um artigo de uma revista espanhola (Cosmopolitan) sobre a cantora Shakira. Para este há dois exercícios de compreensão textual e de vocabulário e um terceiro que propõe uma conversação a partir do tema do texto. O segundo é um poema de Pablo Neruda, um auto-retrato (também o título do poema), com a citação da referência da obra de onde foi retirado; junto ao poema encontramos uma nota explicativa sobre alguns léxicos, à maneira de glossário, e um texto informativo sobre o autor e sua obra. O exercício proposto para esse texto é a elaboração de um auto-retrato pelo aluno; e a página é finalizada com a seguinte citação de Neruda: Si no hubiera sido poeta, sería constructor de casas, unicamente, sem nenhuma atividade proposta a ela. O terceiro texto da unidade, retirado de uma revista espanhola (Prima), que possui como tema o como fazer amizades, é mote para uma atividade de conversação pautada por perguntas a partir do texto. O quarto texto indicado no índice a ser trabalhado nessa unidade é um fragmento (a estrofe nº 12) de outro poema de Pablo Neruda (Alturas de Macchu Picchu), com espaços vazios correspondentes às formas de imperativo que ocorrem no poema para que o aluno complete, seguindo indicações de verbo e pessoa entre parêntesis; não há exercício de interpretação proposto como atividade complementar. O quinto e último texto indicado é uma lista de 5 cosas que ellas nunca entenderán sobre los hombres! / 5 cosas que ellos jamás entenderán de las mujeres!, retirado de uma revista chilena (Buenhogar), a partir do qual é proposta uma dinâmica em grupo para elaboração de um manual de instruções, à semelhança do texto apresentado, para uma vivência sem conflitos com o sexo oposto. Dito isto, passaremos à análise da ocorrência do fragmento do poema Alturas de Macchu Picchu. Esse poema está dividido em 12 estrofes, em que o eu lírico parte em direção a Macchu Picchu, relatando os sentimentos que sente ao realizar essa empreitada e o peso histórico de sua tragédia: a injustiça da exterminação do lugar e a de seus habitantes; rememora os sujeitos que ali viveram e sua cultura, o subjugo espanhol e a relação opressor x oprimido. Termina o poema com a estrofe XII dirigindo-se aos diferentes sujeitos que ali viveram e os convoca para que façam dele o seu porta-voz, para que ele compreenda a força desse acontecimento e que a memória dessa exterminação não se apague. As condições de produção da leitura desse fragmento são reguladas pelo recorte realizado pelas autoras do livro didático. A extensão do texto e sua linearidade materializadas no corpo do livro apagam os sentidos que permeiam os demais fragmentos do poema determinam outros sentidos que os produzidos pelo poeta. Ou seja, as condições de produção do texto literário no livro didático são distintas daquelas em que o poema foi realizado. Tal gesto determina uma unidade aparente: o fragmento funcionando como um todo, evidência de unidade que apaga os vestígios de sua produção: sua relação com os demais fragmentos do texto. Consideramos que este trabalho realizado pelas autoras do livro didático possuem uma função-autor (conforme Orlandi (2008) a concebe: tal função realiza o imaginário da unidade e a ilusão do sujeito como origem e é a que está mais exposta às injunções sociais e históricas, à normatividade institucional ) realizada sob outro lugar, diferente da função-autor realizada pelo trabalho de produção do poema pelo poeta. Já é outro texto.

Ademais desse trabalho de recorte, a prática proposta para esse texto produz outros sentidos que determinam o estatuto de sua materialização. O fragmento citado é textualizado com espaços em branco em quase todos os versos, mas não é permitido que se preencha com qualquer palavra tais espaços devem ser preenchidos com a conjugação do Modo Imperativo dos verbos que estão entre parêntesis. Evidência de unidade e de também de uma leitura e interpretação únicas, o sentido limitado pelas palavras e sua literalidade, o dizer como uma extensão com limites, pausas, beiradas (bordas) possíveis (ORLANDI, 2008, p. 93). Esse funcionamento determina o estatuto do livro didático nas aulas de língua estrangeira e também nas da materna, conforme Pfeiffer, pois é no livro didático que se encontram todas as informações necessárias para a compreensão, por exemplo, dos textos literários (1998, p. 92). Nessa linha de reflexão, interpretamos que as práticas propostas pelo livro didático também determinam o como esse texto deve ser lido e o que está permitido a ser interpretado pelo leitor. Como o discurso, definido em sua materialidade simbólica é efeito de sentido entre locutores (ORLANDI, op. cit.), repetimos que a função-autor tem seu duplo no efeito-leitor, constituído na materialidade do texto. E aqui chamamos a atenção novamente para as diferentes condições de produção do poema de Neruda e de seu fragmento materializado no livro didático: assim como todo discurso é injungido à interpretação, o funcionamento do efeito-leitor do poema Alturas de Macchu Picchu se dá frente à função-autor do poema, sem limites de interpretação; entretanto, a interpretação do fragmento pelo sujeito-aprendiz-leitor se dá sob outro estatuto, conforme o recorte realizado pelo livro didático: que sentidos estão permitidos para serem interpretados pelo sujeitos-aprendiz-leitor? Que efeito-leitor está constituído? Se o sujeito-aprendiz-leitor é convocado somente a conjugar verbos em Imperativo, para completar os espaços vazios do fragmento do poema textualizado, ele não é capaz de interpretá-lo (a noção de capacidade é discurso recorrente em discursividades pedagógicas). Ou melhor, não lhe é permitido a interpretação, ou outras interpretações possíveis para aquele texto, cujo funcionamento é de um arquivo, um sentido que já está ali e não passível de interpretação - recorremos à uma das noções de arquivo de Pechêux, uma leitura impondo ao sujeito-leitor seu apagamento atrás da instituição que o emprega (PECHÊUX, 1997, p.57) nesse caso, a instituição escolar. Se a interpretação se dá sob essas condições, não temos acesso à historicidade dos sentidos que permeiam tal texto: a memória interdiscursiva de seus enunciados (os versos), que sustentam o funcionamento discursivo, é interditada sob uma prática que não postula espaços de significação ao sujeitoaprendiz. Sentidos são silenciados e outros são evidentes: decodificação, uso do código lingüístico, produção oral e escrita. Dito isto, cremos que o papel do professor é o de dar condições para que os sentidos sejam interpretados, sob uma prática que mobilize o sujeito-aprendiz frente à memória de sua língua materna e também da estrangeira: o sentido não é estável, é histórico e sustentado por uma memória que o constitui. Dar atenção ao que está silenciado na ocorrência dos textos no livro didático (não somente os literários, mas de qualquer outro funcionamento), que evidências de sentido estão presentes e qual a relação de um texto com os outros presentes é romper com uma prática que não dá condições à interpretação pelo sujeitoaprendiz-leitor. Referências Bibliográficas ORLANDI, E. P. Discurso e leitura. SP, Campinas: Cortez Editora, Editora da Unicamp, 1988.. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2008. PFEIFFER, C. O leitor no contexto escolar. In: ORLANDI, E. P. (org.) A leitura e os leitores. Campinas: Pontes, 1998. p. 87-104. PÊCHEUX, M. Ler o arquivo hoje. In: ORLANDI, E. P. (org.) Gestos de leitura: da história no discurso. Campinas: Pontes, 1997. p. 55-66.

REVUZ, C. A língua estrangeira entre o desejo de um outro lugar e o risco do exílio. In: SIGNORINI, I. (org.). Lingua(gem) e identidade. Campinas: Mercado de Letras, 1998. pp. 213-230. SERRANI, S. Discurso e cultura na aula de língua: Currículo, leitura, escrita. Campinas: Pontes, 2005.