andar direito deste prédio e mudou-se para cá com a mãe, que entretanto faleceu; os

Documentos relacionados
Tens seis anos, não é?

Episódio 1. Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância. Sofia: Este é o Largo de São Carlos, em tempos chamado, Largo do Directório.

Sofia: Deve estar no Martinho da Arcada. Este café abriu em finais do século XVIII. Em

A conta-gotas. Ana Carolina Carvalho

jovens soldados sucumbe nas trincheiras. Ao progresso e entusiasmo europeu do século

Sofia: Deve estar no Café A Brasileira, no Largo do Chiado. Há uma estátua de bronze

O Menino NÃO. Era uma vez um menino, NÃO, eram muitas vezes um menino que dizia NÃO. NÃO acreditam, então vejam:

Que Nevão! Teresa Dangerfield

Episódio 7. Penso às vezes que nunca sairei da Rua dos Douradores. Bernardo Soares: Penso às vezes que nunca sairei da Rua dos Douradores.

BALANÇO DA OCUPAÇÃO DO TEMPO DURANTE A SEMANA DE PREENCHIMENTO DA GRELHA - 1º ANO

Cartas inéditas da família de Pessoa encontradas no espólio de Hubert Jennings LUÍS MIGUEL QUEIRÓS 28/01/ :05

PODES SER O QUE TU QUISERES

Sobre a primeira gazetilha de Álvaro de Campos

1 filho de 11 anos Local da entrevista Local de trabalho entrevistada no local de trabalho, numa sala ao lado da sala Comentários

Identificação. M09 Duração da entrevista 29:38 Data da entrevista Ano de nascimento (Idade) 1953 (58) Local de nascimento/residência

Meu amigo mais antigo

Nome:...D.N.I... Centro Associado:...Data:... I. COMPREENSÃO LEITORA

Transcrição de Entrevista nº 10

Garoto extraordinário

Para o meu pai, que era um contador de histórias e sabia provocar o riso. Sinto tanto a tua falta. S.Y.

Que estúpido, meu Deus! Que estúpido! Como pude não notar durante tanto tempo?! Quase dois anos e eu, sem a menor, a mínima desconfiança.

um monstro veio a ` escola! Atividade para ensinar regras e expectativas durante os primeiros dias de aulas Ideia retirada do site:

A DOCUMENTAÇÃO DA APRENDIZAGEM: A VOZ DAS CRIANÇAS. Ana Azevedo Júlia Oliveira-Formosinho

AGRUPAMENTO DE ESCOLAS DE RIO DE MOURO PADRE ALBERTO NETO QUESTIONÁRIO

Fui à biblioteca tentar escolher. Um bom livro para ler. Mas era difícil descobrir. Aquele que me ia surpreender! Desisti da ideia de procurar

Painel 1 : LUZ PAZ CONHECIMENTO

Fernando Pessoa

A Menina do Mar. Sophia de Mello Breyner Andresen. Professora: Natalina Quintas

Nota prévia (Importante ler!)

manhã a minha irmã Inês vai ter o seu primeiro dia de escola. Há mais de uma semana que anda muito irrequieta e não para de me fazer perguntas,

Carlota pintava de pintinhas os sonhos que tinha ao acordar. Todas as manhãs, à sua mãe dizia: só mais um bocadinho, que estou a sonhar. A mãe saía.

ML05: - Veio para Lisboa aos 23 anos - Na resposta à P3 volta atrás à P1

INQ Como é que surgiu a decisão de vir para França? Foi assim de um dia para o outro? Como é que decidiu vir para cá?

O criador de ilusões

Subjects on this conversation: Nathanael s first contact with Portuguese and his experience living in Brazil.

BRUNA RAFAELA. EDITORA BPA Biblioteca Popular de Afogados. Creative Commons

Texto Meu Bebê pequeno:

Juro lealdade à bandeira dos Estados Unidos da... autch! No terceiro ano, as pessoas adoram dar beliscões. Era o Zezinho-Nelinho-Betinho.

Identificação Duração da entrevista 25:57 Data da entrevista Ano de nascimento (Idade) 1968 (43) Local de nascimento/residência

PORTUGUÊS ABC. Ah, é de pernas para o ar Que o seu livro se lê? Parece que a menina Não sabe o ABC.

01. Responda às questões propostas. a) A família de Nilza Cunha é parecida com as famílias de hoje ou de antigamente? Por quê? 2

As Tic- Tecnologias de Informação e Comunicação nos meus Percursos de Vida Pessoal e Profissional

PSY: Você também tratou muito dela quando viviam as duas. A: Depois não percebe que tem de ir apresentável! Só faz o que lhe apetece!

ainda não Luciano Cabral prostituta, vinte e cinco anos cliente, sessenta anos

1. Observe este quadro do pintor René Magritte.

Simulado Aula 03 CEF PORTUGUÊS. Prof. Carlos Zambeli

Às vezes me parece que gosto dele, mas isso não é sempre. Algumas coisas em meu irmão me irritam muito. Quando ele sai, por exemplo, faz questão de

UM MONSTRO EM MINHA ESCOLA Iara M. Medeiros Adaptação da história de.

RETRATO DE FAMÍLIA. Além disso, tenho dois primos e a minha mulher tem quatro, mas com eles só costumamos estar no Natal.

2º Têm-lhe batido, ou dão-lhe pontapés, ou estaladas, ou muros (ou é vítima de outra forma de agressão).

Suelen e Sua História

L. J. Smith. Tradução de Cristina Vaz

Identificação Duração da entrevista 25:20 Data da entrevista Ano de Nascimento (Idade) 1974 (38) Local de nascimento/residência FL07:

Localização: Percurso entre a Brasileira e o Rossio pela Rua do Carmo / Baixa -

ONDE ESTÁ O MEDO? Ficha de Avaliação de Língua Portuguesa 5.º ano. Nome N.º Turma: Data: / / Lê o texto com atenção.

I. Compreensão do oral

Entidade Mantenedora: SEAMB Sociedade Espírita Albertino Marques Barreto CNPJ: / ALUNO(A): A5

Era Domingo, dia de passeio! Estava eu e as minhas filhas no

Agrupamento de Escolas de Mértola Ano Letivo

À minha Mãe, por ser a minha maior inspiração.

Análise de textos poéticos. Texto 1. Infância

Identificação. FL01 Duração da entrevista 28:30 Data da entrevista Ano de nascimento (Idade) 1974 (37) Local de nascimento/residência

Índice. 8-9 Porque é que tenho de dizer «obrigada»? Porque é que tenho de dizer «por favor»?

BANCO DE QUESTÕES - PRODUÇÃO TEXTUAL - 4º ANO - ENSINO FUNDAMENTAL

CENTRO EDUCACIONAL NOVO MUNDO Língua Portuguesa

A PREENCHER PELO ALUNO

- Professora Sofia Almeida - Ficha de Revisões para o Teste. Grupo I

firma Félix, Valladas & Freitas Lda. Um dos sócios da empresa era Mário Freitas, primo

Os da Minha Rua de Ondjaki

Carta ao poeta Fernando Pessoa. por rubens jardim

Presentes SoliDArios

A primavera voltou. LÍNGUA PORTUGUESA. Compreensão da leitura

Os e mails de Amy começaram no fim de julho e continuaram

Tens alguma bagagem? Sim, tenho a minha mochila e um saco grande. Bom, eu fico com o saco e tu ficas com a mochila. Está bem?

ª «ė ě«z ª QUEM E MARIA?

Não ando à procura de um príncipe encantado

Rosário Alçada Araújo

BARROS, Sônia. O segredo da xícara cor de nuvem. Moderna, Página 1 de 9-16/07/2015-9:07

a) Pelo resultado dos exames, os alunos da minha sala foram considerados brilhantes. b) O almoço do dia dos pais na casa de meu avô estava delicioso.

Sabe, eu tenho um novo amigo aqui na escola. Ele vê as coisas de maneira diferente do jeito que a gente vê.

Exercício Extra 19 A COISA

PE Episódio #91 Nível I Iniciação (A1-A2) Texto: Catarina Stichini Voz: Joaquim Jorge e Catarina Stichini A MINHA CASA

Textos. O Natal que eu gostaria de ter! Miguel Feijó O Natal que eu gostaria de ter Bia da Rosa Ferreira... 3

Equivalente ao 12º ano, já em idade adulta Estado civil

Chico. só queria ser feliz. Ivam Cabral Ilustrações: Marcelo Maffei 5

Irene TEXTO ANA SOUSA DIAS DATA DA REPORTAGEM 12/2007. Recanto do departamento de Matemática, Universidade de Carnegie Mellon, 2007 Foto: Joana Barros

OS XULINGOS ERAM PEQUENOS SERES, FEITOS DE MADEIRA. TODA ESSA GENTE DE MADEIRA TINHA SIDO FEITA POR UM CARPINTEIRO CHAMADO ELI. A OFICINA ONDE ELE

FICHA DE TRABALHO DE LÍNGUA PORTUGUESA

Sofia: Estará agora a descer a Rua Augusta em direcção ao Terreiro do Paço. Em 1929

Colégio Santa Dorotéia

O sapo estava sentado à beira do rio. Sentia-se esquisito. Não sabia se estava contente ou se estava triste

Protocolo da Entrevista a Anália

Segunda-feira, depois do jantar

Colégio Santa Dorotéia Disciplina: Língua Portuguesa / ORIENTAÇÃO DE ESTUDOS Ano: 2º - Ensino Fundamental - Data: 8 / 11 / 2018

Agrupamento de Escolas de Alhandra, Sobralinho e São João dos Montes. BECRE Soeiro Pereira Gomes

Sérgio Mendes. Margarida e o lobo. Ilustrações de Ângela Vieira

Presa ao sofá, mulher com obesidade mórbida sonha em andar pelo Rio

ATITUDE SUSPEITA Luís Fernando Veríssimo

o Rafa. Os dois andavam sempre juntos, brincavam juntos,

Transcrição:

1 Episódio 12. Come chocolates pequena, come chocolates Localização: Casa Fernando Pessoa / Campo de Ourique Eléctrico Sofia: Nos anos 20 e 30 Campo de Ourique era um bairro afastado do centro da cidade, e aqui vivia uma classe média baixa. Hoje o número 16 da Rua Coelho da Rocha é A Casa Fernando Pessoa. Abriu em 1993. Porta a abrir-se Sofia: Em 1920 a família de Pessoa regressa da África do Sul. Ele alugou o primeiro andar direito deste prédio e mudou-se para cá com a mãe, que entretanto faleceu; os irmãos rapazes, que depois foram estudar para Inglaterra e a irmã Teca, que aqui casou e formou uma família. Passos em chão de madeira

2 [00:00:51.19] Manuela Nogueira: Eu conheço o tio Fernando desde que abri os olhos. Ele era uma pessoa extraordinariamente alegre, bem-disposta em casa, não tem nada que ver com a imagem que hoje em dia aparece. Era uma pessoa que tinha o gosto de brincar com crianças, mas não de as educar. E depois escrevia uns versos muito malcriados, que é o que os miúdos gostam. A minha mãe dizia, Ó Fernando por amor de Deus e ele insistia e eu até os tenho aqui se quiser eu posso dizer alguns. O Monstro do Loch Ness naquela altura veio nos jornais a aparição, na Escócia, no Loch, que quer dizer lago, não é?, do monstro Ness. Há um monstro de Loch Ness, que anda a fazer que aparece, é que se aparece está a fingir que ali nada há. O monstro de Loch Ness é aquele e é esse. É aquele porque é, o que esse tem ao pé e por isso o pescoço que tem é pouco grosso e nada, nada todo nu, sem mostrar o tutu. Isto são brincadeiras que ficaram registadas, algumas até foi um primo meu, muito mais velho e portanto que as registou e depois passou para a minha mão, porque eu naquela altura não escrevia suficientemente bem, nem saberia que ele seria um génio e por isso não guardei nada. Luís Miguel Nogueira Rosa Dias: Na altura, brincava mais com a minha irmã do que comigo. Ela fazia-lhe a barba e não sei quê e então, ele depois colaborava tal e qual com ar muito sério e depois dava-lhe um tostão e ela atravessava a rua e ia à confeitaria da frente comprar um chocolate.

3 Crianças a brincar na rua Manuela Nogueira: Ele adorava crianças, adorava. Então aquela história de ir a Rua Coelho da Rocha, ver-me a mim a janela, e depois fingir que tropeçava num candeeiro, depois pedia desculpa ao candeeiro, tirava o chapéu, depois perdia uma moeda na rua. Naquela altura havia miúdos na rua, os marçanos da mercearias, que hoje em dia não existem, que eram os empregados, novinhos, crianças quase, que trabalhavam nas mercearias, vinham à volta à procura da moeda, estava tudo ali à volta dele e aquilo tudo eu ria, ria na janela lá do primeiro andar, porque achava, já sabia que ele estava a fazer uma fita. [00:03:18.05] Luís Miguel Nogueira Rosa Dias: Depois chegava ó, a um candeeiro eléctrico, da rua e punha-se em posição de Íbis. Manuela Nogueira: Depois quando chegava a casa, fingia que caía pela escada abaixo, subia 3 degraus e fingia, fazia muito barulho com os pés. A minha mãe dizia assim, Ó Fernando hão-de pensar que tu és louco. Ah é isso mesmo que eu quero que julguem. A minha mãe era mais nova, mas fazia um bocadinho papel de mãe dele.

4 Passos em chão de madeira Luís Miguel Nogueira Rosa Dias: A mãe achava que o irmão ficava ali recolhido, com as coisas a escrever, a escrever e era pouco prático. E depois preocupava-se que achava que o irmão comia mal, chegava tarde, não aparecia, muitas vezes não almoçava, bebia só um café, e coisas desse género. Manuela Nogueira: Mas era muito certinho a vir, até vinha almoçar, veja lá, do escritório, e ao jantar dava-me presentes quase todas as semanas, eu tive tantos presentes dele como eu nunca vi, hoje em dia é que percebo o que era... Nós tínhamos guardanapos, não é?, na mesa e eu chegava à casa de jantar e via que o meu guardanapo estava gordo, tinha uma coisa lá de baixo. Eu lembro-me de algumas coisas. Uma coisa que eu adorei era um carrinho de bonecas branco com uma capota encarnada com um bebezinho lá a dormir dentro tapadinho com uma coisa qualquer. Bem, eu era muito assim explosiva ficava doida, ia ao pé dele, abraçava-o, dava-lhe beijinhos, ficava muito contente, porque era um presente. A parte séria do Fernando Pessoa é a parte da escrita, da imaginação. Eu sei que o meu pai tinha uma grande admiração por ele, reconhecia-o como um homem inteligentíssimo, ajudou-o até em certas iniciativas que o Fernando tentou fazer. A minha mãe dizia muitas vezes, Que pena Fernando não seres conhecido, quando ele acabava de ler um poema depois do jantar.

5 Passos em chão de madeira; gaivotas Manuela Nogueira: Nós tínhamos um, agora a casa não é assim, não é?, tínhamos um corredor em L. Entrava-se, virava-se à direita e depois fazia assim um L, e no outro extremo oposto era uma casa de banho, e eu lembro-me de o ver naquele corredor de mãos atrás das costas, que era a posição dele, de camisa branca, sem casaco, com as calças escuras, cinzentas escuras, e a passear naquele corredor indefinidamente, de um lado para o outro, de um lado para o outro, que devia estar pensando, lucubrando. Eu tinha a sensação que não podia interromper, era uma coisa estranha, que fiquei toda a vida com essa sensação. Biblioteca Sofia: Nesta casa estão guardados os livros da biblioteca de Fernando Pessoa. Esta biblioteca mostra um homem interessado pelos temas todos. [00:06:24.19]

6 Antonio Cardiello: Lia tudo. Praticamente de tudo. Isto parece simplificar, mas realmente não é assim. Jerónimo Pizarro: E eu acho que um dos grandes fascínios de Fernando Pessoa é que não apenas foi muitos, mas nitidamente foi o autor português que se interessou por mais temas até agora. Sofia: Temas e autores. Mas onde não há diversidade é em questões de género. A maior parte dos livros que estão na biblioteca foram escritos por homens, o que aliás estava em concordância com a época. José Barreto: Ele achava que a plebe tal como as crianças ou as mulheres - ele punha tudo no mesmo no mesmo, não tinham direito a às liberdades, aos direitos, não tinham direito à liberdade de expressão como deveriam ter, para ele, os intelectuais, masculinos, não é? Porque ele também achava que intelectual só podia ser masculino. Uma mulher intelectual, para ele, era um caso raro, ele concordava que existiam, esses casos, mas que não eram incaracterísticos e, que e em vários escritos defendeu que também que isso era uma espécie de inversão sexual, ou seja, eram mulheres masculinizadas. Sofia: Os livros que estão na biblioteca são apenas uma parte dos livros que Pessoa leu. Estão quase todos em inglês. Pessoa frequentava muito Livraria Ingleza e mandava vir

7 livros pelo correio. E através do que Pessoa escreveu nos livros que lia e dos sublinhados, nós podemos descobrir dados novos sobre a obra dele. [00:08:09.22] Antonio Cardiello: Muitos deles foram lidos várias vezes, temos os sublinhados, temos os traços, temos as notas de leitura, temos marginália. Por exemplo, nós temos na biblioteca há duas edições de selecções de textos em inglês de poemas do Walt Whitman. Uma destas edições, temos uma passagem em que o Walt Whitman está a explicar quem é ele, aquela expressão que ele diz I am large, I contain multitudes, e esta expressão acaba por despertar o interesse de Fernando Pessoa, porque ele escreve uma nota a lápis e escreve em inglês explication for Caeiro. E portanto os próprios livros são pequenas caixas e quando nós estivemos lá a abrir estas caixas descobrimos outras caixas dentro das caixas, portanto é uma espécie, mais uma vez, de jogo pessoano. Nós não sabíamos aquilo que íamos descobrir, descobrimos coisas inesperadas, mais uma vez com a sensação que Fernando Pessoa estava por trás disso tudo. Sofia: Os livros foram digitalizados e podem ser consultados online. Muitos dos livros a biblioteca de Fernando Pessoa são de cariz esotérico. O esoterismo é o tema do episódio seguinte, que pode ouvir no percurso até ao Cemitério dos Prazeres.

8 Créditos: Vozes: Manuela Nogueira, Luís Miguel Nogueira Rosa Dias, Antonio Cardiello, Jerónimo Pizarro, José Barreto e Sofia Saldanha. Bibliografia: Tabacaria, 15-1-1928 Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 252. 1ª publ. in Presença, nº 39. Coimbra: Jul. 1933.