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Juiz de Direito em Curitiba/PR, Especialista em Direito Processual, Direito Processual Civil e Direito Civil pelo IBEJ Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos, Mestrando em Direito pela UFPR. entre outros recortes e apontamentos relacionados à atividade judicante, compilados no curso do tempo por alguma peculiaridade especial, eis que se encontrou um artigo de ALE- XANDRE GARCIA, publicado na Gazeta do Povo de 25.11.1998, 1 com o título Segurança e Justiça. Ao se visualizar o citado título, e porque falhava a memória em recompor o seu conteúdo, de pronto se imaginou que o renomado articulista estaria se referindo, naquela crônica, à instigante e clássica questão que costuma se apresentar aos lidadores do Direito: segurança jurídica e justiça, tema que particularmente interessava na ocasião. Relendo, pois, o artigo, constatou-se que ALEXANDRE GARCIA fizera uma outra abordagem: tratara ele, com a usual maestria, do problema da segurança pública e das conhecidas dificuldades operacionais do Poder Judiciário de nosso país, o que fizera a partir de comparações com a qualidade dos serviços públicos prestados nos Estados Unidos da América do Norte. Em síntese, o cronista destacou as graves deficiências dos setores da segurança pública e da Justiça brasileiras, o que apontou como contingência típica de um país integrado ao bloco do terceiro mundo. Em contrapartida, vertendo admirável sentimento cívico, ALEXANDRE GARCIA concitou o leitor às necessárias e urgentes mudanças, cabendo ser reproduzidas, por oportuno, as seguintes passagens de seu texto: Nosso Código de Trânsito está virando letra morta por falta de fiscalização. Motoristas continuam trafegando pelo acostamento, em alta velocidade, furando sinal vermelho e agredindo pedestres sobre a faixa de segurança. Brasileiro aluga carro nos Estados Unidos e não faz nada disso. Morre de medo da punição. Aqui, sabe que a fiscalização só existe por acaso. São poucos os efetivos, 1 2º caderno, p. 33. 279

280 mal treinados, cheios de boa vontade e com baixos salários. Tão baixos quanto os salários dos juízes, que estão na ponta decisiva do processo de nossa segurança. Eles representam o fim da impunidade. Mas são insuficientes e mal remunerados. Sendo insuficientes, vivem sobrecarregados. E assim vai-se deteriorando a base da cidadania, que são as garantias dos direitos à vida, à propriedade e a serviços da Justiça, quando necessários. Parte dos políticos ainda pensa que Segurança e Justiça existem para servir ao Estado. Errado. Existem para servir os brasileiros. A elite política quer que confiemos. De que jeito? Só brasileiro pobre vai para a cadeia! Com canadense rico, embora seqüestrador condenado por crime hediondo, arranjam um acordo e legalizam a concessão acovardada. E, enquanto juízes heróicos trabalham sábado e domingo pelo interiorzão do país, tentando fazer Justiça, as pedras das ruas sabem que também se faz justiça enchendo os bolsos venais dos que não valem uma cusparada do mais humilde e honesto dos brasileiros. A mensagem foi revigorada, e a releitura da crônica, por sua abrangência, não deixou de instigar reflexões sobre o tema segurança jurídica e justiça que adiante atreve-se a abordar em despretensiosas considerações. Pode-se afirmar que, idealmente, a justiça deve ser feita mediante a aplicação da lei ao caso concreto, partindo-se da premissa de que a norma expressa o justo, posto que concebida através do processo democrático, sendo, pois, expressão da vontade popular, da expectativa social. Esse, o enunciado fundamental do pensamento dogmático. Segundo aquela linha de raciocínio, a sociedade necessita ver aplicados os exatos contornos das leis ou das normas de conduta que elegeu, caso contrário, não teria segurança quanto à seqüência dos fatos e de seu próprio projeto evolutivo, posto que estaria submetida ao arbítrio dos investidos na função de decidir ou de interferir no processo decisório quando instaurado este. Noutras palavras, definidas as regras de convivência social, devem elas ser observadas sob pena do estabelecimento de uma crise, revelável sob a forma de episódica instabilidade decorrente da insegurança nas relações jurídicas e suas inimagináveis conseqüências, hipótese em que o caos pode ser o limite. Parece, pois, oportuno registrar a mensagem do Desembargador ALTAIR FERDINANDO PATITUCCI 2 no sentido de que Um dos escopos da jurisdição, que não se presta, ressalte-se, tão-somente para dirimir conflito, é a educação. A sociedade, a seu turno, para ser educada, necessita de segurança jurídica, forjada na interpretação da lei, preferencialmente uniforme, de seus magistrados. Sabe-se porém que, em muitas das vezes, dependendo das contingências do caso, a legislação de pertinência está defasada, eis que não mais projeta a equação ideal, ou seja, a solução justa para aquela 2 Lei de Responsabilidade Fiscal engessa Administração Pública. Curitiba, Novos Rumos, nº 63, abril/2001, p. 5.

situação, isto é, já não revela o direito efetivamente vivenciado pela sociedade. Nessa hipótese, a pura e simples aplicação da lei em vigor pode não fazer justiça. É, pois, quando se estabelece o dilema para o intérprete: aplicar o dogma, em homenagem à segurança jurídica, ou fazer justiça, desprestigiando, porém, a norma. Esse embate apresenta-se com constância cada vez maior com o fluxo do tempo, com o crescimento demográfico, com os avanços que diariamente se anunciam na área tecnológica, com as disputas de mercado ou de poder, dentre outros tantos fatores. Ou seja, em decorrência da intensificação das interações sociais, corolário do efervescente e inexorável processo de globalização, projetam-se relações jurídicas acentuadamente mais complexas, o que implica permanente estado de reflexão por parte do intérprete do Direito. Em adição, os valores transmigram. O que era ilícito torna-se lícito; o que era apenas tolerado passa a ser exaltado pelos meios de comunicação; o sagrado torna-se jocoso e, paradoxalmente, a recíproca é verdadeira. Noutras palavras, The things change, como diz o título original da bela peça cinematográfica dirigida por DAVID MAMET. 3 Assim é que, em meio a esse frenético e intermitente processo de mutações, as leis ou comandos virtuais reclamam, por óbvio, constantes adaptações, sendo certo 281 que nem sempre essas alterações chegam no tempo real. De outro lado, não são poucas as situações em que aquelas adaptações legislativas precipitam transformações sociais, ou seja, as normas eventualmente são projetadas antes do clamor social, algumas vezes até revelando natureza despótica, cujo fenômeno foi assim retratado pelo Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal, MARCO AURÉLIO DE MELLO: 4 Parece razoável, portanto, concluir que, diante da estabilidade da moeda, domado o monstrengo inflacionário e com o Plano Real vigente já por algum tempo, a tendência seria a diminuição do número de processos. Não obstante a instabilidade monetária foi substituída por outra mais perniciosa: a normativa. E com um agravante: a proliferação de diplomas legais decorre do uso abusivo de instrumental que tem força de lei, a medida provisória. Abusivo até porque à margem do texto da Carta Federal, ainda que tenha sido das mais claras a linguagem usada pelo constituinte. Ora, se diante de ordenamento jurídico estável pairam dúvidas na interpretação de preceitos sempre um ato de vontade, pode-se imaginar o que advém da edição sem limites de medidas provisórias, de modo a transformar o excepcional em corriqueiro, desatendendo, até mesmo, a delimitação constitucional relativa à área de atuação de cada Poder. Eis o contexto em que atua o operador do Direito. Lá está ele, com seus con- 3 Que mostra um velho e servil engraxate (o ator DON AMECHE), então apenas esperando o fim de sua solitária e insípida vida e que, graças a um repentino golpe do destino o reencontro com um velho amigo que se convertera em um influente mafioso e que acaba necessitando de seus préstimos torna-se poderoso e considerado (1988, EUA). 4 Menos leis, mais compostura. São Paulo, Folha de São Paulo, 01.06.2001, p. A3.

282 ceitos e preconceitos, com sua inafastável ideologia subjacente e iniludível ausência de neutralidade: ora postulando; ora rebatendo o libelo; ora dissertando e ensinando; ora julgando a questão que se lhe apresenta, o que faz via de regra tendo ao menos em perspectiva um caso concreto, a legislação de pertinência e os recursos de hermenêutica. O Superior Tribunal de Justiça, em acórdão relatado pelo Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, criteriosamente assentou que A interpretação das leis é obra de raciocínio, mas também de sabedoria e bom senso, não podendo o julgador ater-se exclusivamente aos vocábulos mas, sim, aplicar os princípios que informam as normas positivas. 5 Daí porque, noutra ocasião, o Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO também advertiu que os princípios são mais importantes que as normas. 6 Cabe lembrar que, dentre os instrumentos disponibilizados ao operador do Direito afigura-se a poderosíssima retórica, definida por AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA 7 como Eloqüência... Adornos empolados ou pomposos de um discurso... Discurso de forma primorosa, porém vazio de conteúdo. Sabese, como demonstram algumas das mais dramáticas páginas de nossa história, que, mediante eficazes recursos retóricos, o gesto ignóbil pode ser justificado. É, pois, momento de ser lembrada a grave advertência de LUIS RECASÉNS SICHES 8 no sentido de que Certeza na segurança na injustiça, no mal, na falta de solidariedade, na servidão, viriam fazer essas calamidades mais dolorosas do que seriam se apresentassem somente como irrupções eventuais. Com semelhante sentido ao que fora ressaltado por RECASÉNS SICHES no trecho transcrito, reporta-se à seguinte e aguçada observação de DAVID SÁNCHES RUBIO: 9 No campo do direito, quando o fenômeno jurídico se concebe como mera forma ou procedimento, sucede que se absolutiza tanto esta dimensão, que se transforma na única realidade possível, ocultando outros elementos importantes, entre eles, os processos sociais e seus atores (...) Priorizar e absolutizar a forma na ciência jurídica por cima de seu conteúdo, implica uma atitude ideológica e 5 RSTJ 19/461. 6 Prazos e nulidades em processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 48/49. 7 Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2. ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 1.501. 8 Tradução pelo autor a partir do original: Certeza y seguridad en la injusticia, en el mal, en la insolidaridad, en la servidumbre, vendrían a hacer esas calamidades más dolorosas de lo que serían si se presentasem solamente como irrupciones casuales. (Nueva filosofia de la interpretación del Derecho. 3. ed., México: Editora Porrúa, 1980, p. 307). 9 Tradução pelo autor a partir do original: En el campo del derecho, cuando el fenómeno jurídico se concibe como mera forma o procedimiento, sucede que se absolutiza tanto esta dimensión, que se transforma en la única realidad posible, ocultando otros elementos importantes, entre ellos, los procesos sociales y sus actores. (...) Priorizar y absolutizar la forma en la ciencia jurídica por encima de su contenido, implica una actidud ideológica e interesada de determinados sujetos, hasta tal punto que incluso el problema de la vida humana pierde importancia. (Filosofia, derecho y liberación em América Latina. Bilbao: Editorial Desclée de Brower, 1999, p. 245)

283 interessada de determinados sujeitos, até tal ponto que inclusive o problema da vida humana perde importância. 10 Particularmente quanto ao panorama do Poder Judiciário brasileiro fotografado por ALEXANDRE GARCIA na passagem preambularmente referida, cumpre-se remeter às seguintes declarações de IVES GANDRA MARTINS e ARNOLD WALD, 11 que estão entre os mais notáveis juristas de nosso tempo: A globalização e a revolução tecnológica estão dando um papel mais importante para o Poder Judiciário, como garantidor dos direitos individuais e da moralidade pública. Ao confronto que existia, no século passado, entre o Estado e o mercado, substituiu um novo equilíbrio no qual a ação do poder público, tradicionalmente representado pelo Executivo, é complementada pelo controle do Judiciário e pela opinião pública. O capitalismo, que deu novas dimensões às empresas, também ampliou a esfera de funcionamento da Justiça, como contrapoder e fiscal da economia, submetendo-se às regras éticas. Já se afirmou, aliás, que o mercado sem o direito é uma verdadeira selva, e o direito sem o mercado leva ao imobilismo. Enquanto, no passado, julgavam um número reduzido de conflitos de interesses, os tribunais hoje conhecem praticamente de toda a vida econômica, exigindo, por parte do legislador, dos magistrados e dos advogados, a criação de um direito mais flexível e sofisticado que, todavia, não pode ser alternativo, pois a sociedade necessita de segurança jurídica. À evidência, o conteúdo ético das decisões ocupa espaço de particular relevância nessa flexibilização. Quanto às citações por último transcritas, não parece demasiado ressaltar o testemunho do Ministro MARCO AURÉLIO DE MELLO 12 no sentido de que Os juízes estão no limiar de seus esforços, procurando dar o melhor de si como servidores da sociedade; desdobram-se na tentativa de bem aproveitar todo o tempo disponível, vivendo um constante conflito no desmedido empenho de conciliar celeridade, eficiência e consistência jurídica nas decisões que proferem. 13 10 Não é demais também registrar, nesta passagem, as tocantes conclusões de INGO WOLFGANG SARLET no sentido de que (...) a qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a certeza de que o art. 1º, inciso III, de nossa Lei Fundamental, não contém apenas uma declaração de conteúdo ético e moral (que ela, em última análise, não deixa de ter), mas que constitui norma jurídico-positiva com status constitucional e, como tal, dotada de eficácia, transformando-se de tal sorte, para além da dimensão ética já apontada, em valor jurídico fundamental da comunidade. Importa considerar, neste contexto, que, na condição de princípio fundamental, a dignidade da pessoa humana constitui valor guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda a ordem constitucional, razão pela qual se justifica plenamente sua caracterização como princípio constitucional de maior hierarquia axiológico-valorativa. (A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 109). 11 O Supremo e a inadiável reforma judiciária. São Paulo, Folha de São Paulo, 31.05.2001, p. A3. 12 Folha de São Paulo, artigo citado. 13 Rio tem até 22,8 mil processos por juiz. Esta a manchete da Folha de São Paulo de 06.06.2001 (p. C3) em alusão ao trabalho nas Varas de Execuções Penais do Rio de Janeiro/RJ, cujo texto registra, dentre outros depoimentos, os seguintes: Se levarmos em conta que na Alemanha um juiz tem 300 processos por ano, e aqui são 86 mil (na realidade, 91.277) cada um tem 20 mil processos, o ideal seria o (sistema) alemão. Mas, para isso, precisaria ter uns 500 juízes (César Augusto Costa, juiz titular da VEP); A gente trabalha no limite, perto do insuportável. A carga de trabalho é tão absurda que a gente acaba se acostumando. Levar processo para casa no fim de semana é supernormal, enquanto está todo mundo se divertindo. Trabalhar aqui é enxugar gelo... (Juíza auxiliar da VEP, Adriana Melo).

284 Em meio à contextura ora retratada revela-se, portanto, a grande expectativa em torno da atuação dos denominados operadores jurídicos esses extraordinários personagens do cotidiano: o juiz, o promotor de justiça, o advogado e os servidores do Judiciário dos quais, malgrado suas nem sempre ideais condições de trabalho, sempre se espera inabalável postura ética e atuação inspirada nos princípios jurídicos fundamentais, cooptando e interagindo, em seus respectivos tempos e modos, em prol da efetiva realização do Direito. DOMENICO CORRADINI BROUSSARD, 14 eminente Professor Catedrático de Filosofia do Direito da Università Degli di Pisa, Itália, em magnífica aula magna que proferiu na Universidade Federal do Paraná em 10 de março de 1997, assim se pronunciou: Jus quia justum... O direito é direito porque é justo. Justitia facit legem eis, o que se poderia dizer referindo-se ao valor. Portanto, eis o fundamento mais profundo, o fundamento do direito, eis o philosophisher ground ou ur-prinzip, o fundamento filosófico, original, a priori, do direito: A ética Santo Agostinho era muito mais inteligente e arguto do que se pode supor. E ele diz: Lex iniusta non est lex (A lei injusta não é lei). A ética. (...) Na relação baseada sobre a paridade ética, cada homem é um Deus para outro homem, homo homini deus est. Cada um de nós é responsável pelo outro. Responsável no sentido etimológico: ele tem de responder ao outro, de responder às perguntas, às dúvidas, às necessidades, aos desejos do outro. O critério segundo o qual se orienta cada homem na relação ética, não é, não pode ser, o domínio do outro, sendo que cada homem realiza um conjunto de valores no qual o maior é a dignidade, um conjunto de valores que talvez se confrontem com aqueles que estão vigentes. Do exposto e em conclusão, ousa-se afirmar que a efetivação do justo demanda o domínio da técnica ou se diria melhor, da arte de operar segurança jurídica com justiça. Por fim, e em específica alusão à judicatura, oportuno lembrar que A vida é o cotidiano e o juiz um homem do seu tempo e do seu lugar, como observou o Desembargador ULYSSES LOPES no XIV Curso de Atualização para Magistrados promovido pela Escola da Magistratura do Paraná, em 13.06.1991, ocasião em que, ilustrando aquela assertiva, invocou a seguinte e memorável constatação de SCHILLER: Cai o que velho está. Muda-se o tempo, e das ruínas floresce vida nova. 14 Os grifos constam do original. ( Os direitos fundamentais e o primeiro dever fundamental. In Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, a. 30, nº 30, 1998, p. 16/18.)

Bibliografia BROUSSARD, Domenico Corradine. Os direitos fundamentais e o primeiro dever fundamental. In Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, a. 30, nº 30, 1998. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2. ed. revista e aumentada, Rio de Janeiro: Nova Fronteira. GARCIA, Alexandre. Segurança e Justiça. Curitiba, Gazeta do Povo, 25.11.1998. MARTINS, Ives Gandra; WALD, Arnold. O Supremo e a inadiável reforma judiciária. São Paulo, Folha de São Paulo, 31.05.2001. MELLO, Marco Aurélio de. Menos leis, mais compostura. São Paulo, Folha de São Paulo, 01.06.2001. 285 PATITUCCI, Altair Ferdinando. Lei de Responsabilidade Fiscal engessa Administração Pública. Curitiba, Novos Rumos, nº 63, abril/2001. RUBIO, David Sánches. Filosofia, derecho y liberación em América Latina. Bilbao: Editorial Desclée de Brower, 1999. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. SICHES, Luis Recaséns. Nueva filosofia de la interpretación del Derecho. 3. ed., México: Editora Porrúa, 1980. TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Revista do Superior Tribunal de Justiça, nº 19.. Prazos e nulidades em Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1987.