OS CONTRANSGIMENTOS DO SISTEMA JUDICIAL NA QUESTÃO DA VIOLÊNCIA DE GÉNERO Yolanda Rodríguez Castro, F.C.E._Universidade de Vigo Maria José Magalhães, F.P.C.E._ Universidade de Porto Ana Isabel Forte, F.P.C.E._ Universidade de Porto
*Introdução *Em Portugal, as respostas às mulheres vítimas de violência doméstica emergem num contexto político e social de um movimento feminista frágil e fragmentado (Tavares, 2010; Magalhães, 2002) e, na sequência de um conjunto de directivas internacionais, nomeadamente, da União Europeia. *Estas recomendações, seguindo uma lógica top-down providenciam bases para alterações legislativas de protecção e seguranças às vítimas e fazem-se acompanhar de políticas sociais determinadas governamentalmente. *Estas políticas e legislação confrontam-se no terreno com um contexto ideológico e político onde a mulher ainda é menorizada, onde o sexismo e o sistema patriarcal ainda impera fortemente e onde não existe consciência acerca das desigualdades de género na sociedade portuguesa (Rodríguez, Magalhaes, et al., em prensa).
*Legislação contra a violência de género *Portugal situou-se entre os países europeus pioneiros na luta contra a violência sexista contra as mulheres. *O Código Penal de 1982 previu e puniu, pela primeira vez, o crime de maus-tratos entre cônjuges. Este crime tinha a natureza pública *Quase dez anos depois, em 1991, a Lei n º 61/91, de 13 de agosto, garante uma protecção adequada as vítimas de violência e prevê a criação de um sistema de garantias adequadas, para interromper a situação da violência doméstica e reparar os danos ocorridos, atendendo as vítimas de violência por pessoal especializado (nas forças policiais e nos hospitais) para facilitar a colocação da denúncia.
*Legislação contra a violência de género * Uma medida importante prevista nesta Lei n º 61/91, era a ordem de afastamento do agressor da moradia conjugal. * No entanto, esta iniciativa assim como outras previstas nesta lei não chegaram nunca a ser aplicadas já que o Governo português não as regulamentou. Outras medidas referidas foram a criação de um gabinete SOS para atendimento telefônico das mulheres vítimas de violência e a criação junto dos órgãos de polícia criminal secções de atendimento às mulheres vítimas de crimes de violência.
*Legislação contra a violência de género *Posteriormente, no ano de 1995, com a revisão do Código Penal, e com o Decreto Lei n º 48/95 de 15 de março, dá-se um retrocesso na luta contra os maustratos, já que apesar de aumentar o tempo de prisão para o tempo de um a cinco anos e de contemplar pela primeira vez os maus-tratos psicológicos como uma conduta punível, a natureza do crime passa a ser particular, o que significa que deve ser feito previamente uma denúncia do procedimento criminal, e que a continuação do processo depende da vítima.
*Legislação contra a violência de género * Três anos depois, a Lei n º 65/98, de dois de setembro, faz uma nova alteração em relação a natureza do crime, pois passa a ser semi-público. *Isso significa que o Ministério Público tem "relativa" legitimidade para iniciar o processo de acusação, mas tendo em conta certas condições, como p. ex. que a vítima não se negue a continuar com o procedimento e que o acusado não manifeste o seu desacordo face à queixa.
*Legislação contra a violência de género *Por fim, no ano de 2000 com a Lei n º 7 / 00, de 27 de maio, o crime de maus tratos constitui~se novamente de natureza pública, como já quase vinte anos atrás. *A partir desta data, o Ministério Público tem "completa" legitimidade para iniciar o processo de acusação, apesar de contar com a oposição do acusado. Fica salvaguardada a vontade da vítima, através da figura de suspensão provisória do processo.
*Legislação contra a violência de género *Um passo mais na defesa das mulheres vítimas de violência de gênero se deu com a reforma do Sistema Penal, em setembro de 2007: contemplou-se a criação de um novo tipo legal de crime de "violência doméstica", que inclui medidas de proteção e punição para a casais ou ex-casais com quem já não se convive, ou seja, pela primeira vez em Portugal, se proteja as mulheres que têm uma relação e não vivam no mesmo domicílio. *No entanto, nesta lei, existe uma importante limitação, isto é, o flagrante delito (actuar só quando apanham o agressor no mesmo momento).
*Legislação contra a violência de género *Em 2009, foi aprovada a última lei nº 112/2009 (de 16 de Setembro) para a prevenção da violência doméstica, a protecção e assistência às mulheres vítimas. Esta lei estabelece um conjunto de medidas: A) Consagrar os direitos das vítimas, garantindo a sua proteção rápida e eficaz. É criado o Estatuto da Vítima. Para a mulher atingir este estatuto de vítima é imprescindível que denuncie o crime de violência doméstica. Direitos : *Direito à informação (do processo que está a seguir judicialmente, dos serviços e organizações a quem se pode dirigir para obter apoio, etc.) *Direito de proteção desde que as autoridades competentes considerarem que existe risco na vida da mulher *Direito à assistência específica (veja jurídica e apoio judiciário quando este seja pela via penal) *Direito a indemnização e a restituição dos bens.
*Legislação contra a violência de género *Esta lei lei nº 112/2009 estabelece mais medidas: B) Implementar uma rede nacional de serviços de apoio as mulheres vítimas de violência doméstica (Casas de Abrigo, Centros de Atendimento, Centros Especializados). Nesta lei são definidas as condições e regulamentos destas respostas sociais. C) Desenvolver políticas de sensibilização nas áreas da educação, da informação, da saúde e do apoio social.
*Objetivo *Avaliar os contragimentos jurídicos como que se deparam os/as profissionais de uma Casa de Abrigo portuguesa. *Metodologia: Qualitativa *Este estudo centra-se na análise de entrevistas qualitativas realizadas a profissionais de uma casa de abrigo de uma organização de solidariedade social que partilha de algumas concepções feministas (CA7). *Esta casa de abrigo CA7 surgiu em 2005, é composta por uma equipa técnica de 3 profissionais e apresenta capacidade para acolher 25 mulheres e crianças.
*Metodologia: Qualitativa Análise de Conteúdo: (regras) ENTREVISTAS SEMI- ESTRUCTURAIS (1 hora) - 1) Exaustividade (Bardin, 1986): categoriza-se todo o conteúdo das entrevistas; 2) Exclusividade: centra-se a mesma ideia numa mesma categoria, sem misturar. 3) Semi-indução: leva-se a cabo a pré-categorização segundo as frases ou os próprios termos usadas pelas pessoas; 4) Pertinência da categoria. 5) Para cumprir a regra da objetividade (Triangulação de investigadoras)
*Resultados *Relativamente aos constrangimentos do sistema judicial, as profissionais entrevistadas identificam: 1. Inefectivos acompanhamentos jurídicos à vítima; 2. Falta de formação das instâncias jurídicas nesta matéria 3. Ineficácia das medidas de coacção e afastamento; 4. A lei não protege os direitos das vítimas à sua morada de família, mesmo quando proprietárias, nem aos seus bens; 5. O não cumprimento da lei.
*Resultados 1. Inefectivos acompanhamentos jurídicos à vítima *As profissionais da casa de abrigo fazem referência à importância de um bom acompanhamento jurídico de apoio à vítima de violência doméstica. A necessidade de um/a advogada/o que saiba instruir o processo é crucial, já que a/o magistrado/a só pode decidir com base no que está no processo: * Mas o tribunal, portanto o tribunal não é o juiz. O juiz é a ultima fase e o juiz julga o que lhe levam, se não lhe levam não julga. ( ) * Se não tiver um advogado adequado, que lhe leve o processo devidamente, que faça uma participação criminal como deve ser, acompanha a polícia na prestação de declarações, acompanha o ministério público no inquérito das declarações. Assegure todos os passos do processo. Todos. (CA7-d: p.7)
*Resultados 2. Falta de formação das instâncias jurídicas nesta matéria *No seguimento da reflexão acerca do acompanhamento jurídico, as profissionais referem que os tribunais portugueses não têm formação suficiente para tratar os casos de violência de género: *[ ] no tribunal, o problema de ver que por detrás daquele crime que nós estávamos a julgar, havia um [crime] que ficou por resolver que o tribunal não pode dar resposta, não tem apetência, não sabe funcionar para isso. (CA7-d: p.6)
*Resultados 3. Ineficácia das medidas de coacção e afastamento *Um terceiro constrangimento do sistema judicial faz referência à ineficácia das medidas de coacção e afastamento: *[ ] às vezes, aos funcionários públicos, entre aspas, [ ] é mais fácil prensá-los, fazer alguma conseguir que saiam e conseguir que cumpram aquilo, as ordens que o juiz dá. Para outros, é mais difícil, as pessoas que não têm nada a perder. Aqueles que foram muito violentos, que já foram condenadas que não têm nada a perder, não obedecem a nada nem a ninguém, não é? (CA7-d: p.7)
*Resultados *4) A lei não garante os direitos da vítima à morada de família ou outros bens * Seguidamente, as profissionais constatam que desconhecem vítimas que tenham abandonado o agressor e consigam regressar à morada de família. Isto verifica-se, por um lado, devido à falta de segurança e, por outro, porque o sistema não lhe garante o seu direito à propriedade: * Depois do processo de entrega da casa à família, [ ] aqui, quando as pessoas vêm para uma casa abrigo, não há ninguém que regresse, quase, à casa onde morava com a família, pela saída do agressor. Não temos tido casos. Portanto isso não se tem praticado. (CA7-d: p.7) * A directora da CA7 crescenta que isto é uma perversidade do sistema: * É uma perversidade na utilização do sistema. Mas não há sistemas perfeitos, há diversas tentativas, [ ] o nosso também não está bem. O nosso é exactamente o inverso, quer dizer, nós temos tido aqui casos horríveis, não é? Sai a mãe, sai a sogra, saem os 3 filhos, sai e ele fica ali feito rei e não se pode sequer ir buscar um par de cuecas, porque ele não deixa. É inacreditável não é? Isto para mim é (CA7-d: p.10)
5) Incumprimento da lei *Resultados *Por último, a directora realça ainda o facto de, na prática judicial, não se estar a cumprir a lei porque inúmeras pessoas chegam à casa de abrigo sem serem encaminhadas pelas entidades previstas na lei, mais ou menos forçadas, invertendo os objectivos de uma casa de abrigo: *Mas a nossa lei, [ ] fala precisamente que não podem ser encaminhados para casas de abrigo pelas CPCJ, a entidade CPCJ não consta lá, precisamente por isso, mas, o que é facto é que vemos. (CA7-dt: p.9) *Aliás já tivemos diversos casos em que as pessoas vieram para aqui obrigadas por imposição, entre aspas, pelo comissão de protecção de menores no sentido em que, ou a mãe se dispunha a fugir daquele meio violento e agressivo também para as crianças, ou as crianças teriam que ser retiradas para uma instituição. E não vai haver resultado. (CA7-d: p.9)
*Conclusão *As profissionais entrevistadas salientaram como principais constrangimentos ao nível judicial a falta de formação no acompanhamento jurídico e no processo de decisão judicial. As entrevistadas referem que é muito importante que o acompanhamento jurídico seja realizado por alguém familiarizado [especializado] nas questões de violência doméstica, caso contrário os direitos da mulher serão lesados. *Em consonância com isto, referem que algumas decisões jurídicas são tomadas sem que se dominem os conteúdos mínimos acerca da problemática. *No que concerne às medidas de coacção e afastamento, as profissionais referem que são de difícil execução e que, em grande parte das vezes, beneficiam o agressor.
*Conclusão *De uma maneira geral, a análise do discurso das profissionais parece-nos transmitir uma falta de interiorização do sistema legal acerca da gravidade e consequências da violência de género contra as mulheres. *Algumas práticas judiciais demonstram-se. por um lado, punitivas para a vítima e, por outro, demasiado benévolas com os agressores. *Desta feita, na realidade portuguesa é comum constatar que a vítima de violência doméstica é obrigada a abandonar a sua casa e ao agressor é permitido continuar impune e no exercício de todos os seus direitos.
*Conclusão *Tendo em conta estes fatos, denominados pelas profissionais de perversidades do sistema, as profissionais desta CA7, enfatizam a necessidade de formação de profissionais nesta temática, para que possam alargar a compreensão acerca da gravidade do fenómeno e das suas consequências e, consequentemente, prestar um serviço de qualidade às vítimas e de restituição dos seus direitos. * Portanto, são necessários câmbios e melhoras a nível legislativo (novas leis, a criação de tribunais especializados na violência de género) assim como a formação e articulação «coordenada» entre todos/as profissionais que estão a trabalhar com mulheres víctimas de violência de gênero.
Muito Obrigado, pela atenção OS CONTRANSGIMENTOS DO SISTEMA JUDICIAL NA QUESTÃO DA VIOLÊNCIA DE GÉNERO