FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

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Transcrição:

FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA Breno da Costa Brasil Lucas Ribeiro Mota RESUMO Com este trabalho visamos apresentar a filiação socioafetiva no âmbito jurídico e a sua aplicação, por meio da análise jurisprudencial acerca desta questão, como também demonstrar a importância da sua tutela jurídica para o instituto familiar, visto que o princípio do afeto desponta como um dos mais importantes no estudo e compreensão da família, tendo em vista as várias mudanças sociais que ocorreram com o curso do tempo, sendo que estas mudanças também influenciaram as relações familiares. Dessa forma, o núcleo familiar se apresenta de diversas formas na atualidade e a filiação socioafetiva ganha força neste contexto, devido à demanda de ações referentes a este tema que exigem uma resposta do Poder Judiciário. 1. Introdução O direito de família constitui o ramo do direito civil que disciplina as relações entre pessoas unidas pelo matrimônio, pela união estável ou pelo parentesco, bem como os institutos complementares da tutela e curatela, visto que, embora tais institutos de caráter protetivo ou assistencial não advenham de relações familiares, têm, em razão de sua finalidade, nítida conexão com aquele (GONÇALVES, 2012, p. 19). Por meio dessa definição, percebemos que o direito de família disciplina as relações que se desenvolvem no núcleo familiar, compreendendo as que se passam entre cônjuges, entre pais e filhos, entre tutor e pupilo (GONÇALVES, 2012, p. 19). Seguindo esse raciocínio, a filiação é a relação jurídica que liga o filho a seus pais (GONÇALVES, 2012, p. 318). A filiação é classificada pela doutrina como a relação de parentesco consanguíneo, em primeiro grau e em linha reta, que liga uma pessoa àquelas que a geraram, ou a receberam como se a tivessem gerado (GONÇALVES, 2012, p. 318). Tal classificação está em consonância com o artigo 1.593 do Código Civil, que assim determina: O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.

Logo, a filiação decorre de consanguinidade ou outra origem. No entendimento de Maria Berenice Dias, esta outra origem é a origem socioafetiva. A filiação socioafetiva, como se verá detalhadamente a seguir, corresponde à verdade aparente e decorre do direito à filiação. A necessidade de manter a estabilidade da família, que cumpre a sua função social, faz com que se atribua um papel secundário à verdade biológica (DIAS, 2009, p. 338). A socioafetividade, vale ressaltar, está em consonância com o princípio do afeto. Tal princípio baseia-se na supremacia dos laços afetivos existentes no âmbito familiar, que, em virtude do sentimento solidário e de afeto que garante maior aproximação entre familiares, está cima de qualquer vínculo sanguíneo. Nesse sentido, os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar, não do sangue. Assim a posse de estado de filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico do afeto, com o claro objetivo de garantir a felicidade, como um direito a ser alcançado (DIAS, 2009, p. 70). Antes de nos aprofundarmos neste tema, vejamos os aspectos básicos da filiação no âmbito jurídico e familiar. 2. Família e Filiação O termo família pode ser definido como o núcleo social que abrange todas as pessoas ligadas por vínculo de sangue e que procedem, portanto, de um tronco ancestral comum, bem como as unidas pela afetividade e pela adoção. Compreende os cônjuges e companheiros, os parentes e os afins (GONÇALVES, 2012, p. 17). Considerando a definição acima, é perceptível que atualmente a doutrina entende que os laços familiares não se restringem a consanguinidade, eles ultrapassam esta barreira e acolhem o quesito da afinidade. Dessa forma, é notório que houve uma redefinição jurídica acerca da conceituação de família, bem como das relações familiares. Tal evolução ocorreu em virtude das mudanças ocorridas no âmbito familiar, sendo necessária uma nova abordagem jurídica e social acerca da família, pois é evidente que o núcleo familiar passou por diversas alterações e se apresenta de várias formas na sociedade contemporânea. Logo, é necessária uma nova reestruturação desse conceito, abandonando as conceituações retrógradas.

Nesse contexto a filiação ganha destaque, visto que este tema sofre grandes e constantes transformações no cenário contemporâneo, ressaltando que a ciência proporciona novos métodos de reprodução, bem como ganha força a questão da socioafetividade. Dessa forma, devemos estar sempre atentos às inovações que surgem, para que possamos lidar com essas novas situações que se apresentam em nosso cotidiano da forma mais justa e humana possível. A observação acima é de suma importância, visto que o Código Civil de 1916 possuía um conteúdo preconceituoso e retrógrado com relação à filiação, mas estes aspectos foram se afastando da prática jurídica com o advento da Constituição Federal de 1988, que estabeleceu, no artigo 227, 6º, a igualdade entre filhos, descartando a ultrapassada distinção entre filiação legítima e ilegítima, e do novo Código Civil, que procurou adaptar-se à evolução social e aos bons costumes, incorporando também as mudanças legislativas sobrevindas nas últimas décadas do século passado (GONÇALVES, 2012, p. 21). O Código Civil de 1916 distinguia a filiação entre legítima e ilegítima, dependendo se os genitores fossem casados ou não, e adotiva. Tal classificação proporcionava diversos desdobramentos, sendo sempre necessário provar e estabelecer a legitimidade. Os filhos legítimos eram aqueles concebidos dentro do matrimônio dos pais, sendo considerados ilegítimos os havidos fora do casamento. Ainda havia uma classificação dos filhos ilegítimos, eles poderiam ser naturais, quando os pais não possuíam qualquer impedimento para casar-se, ou espúrios, quando a legislação proibia o casamento dos genitores. Os espúrios, por sua vez, eram divididos em adulterinos, quando o impedimento resultava do fato de um ou os dois genitores serem casados, e incestuosos, se fossem gerados por pessoas de parentesco próximo, como pais e filhos ou irmão e irmã, por exemplo. Estas classificações se devem ao fato da grande influência que a tradição católica exerce no Brasil, desde a época da colonização, pois era propagada a ideia de que o casamento deveria ser prestigiado como única forma válida, reconhecida por essa religião, de legítima união entre os sexos (BOSCARO, 2002, p. 60). Dessa forma, a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos se apresentava de forma muito marcante no âmbito social. Outro exemplo deste aspecto retrógrado, e também machista, da antiga codificação são os artigos 344 e 178, 3º, os quais determinavam que a legitimidade dos filhos somente poderia ser

contestada pelo marido, anulando o direito de manifestação da mulher e evidenciando a presença de um machismo vigente nas relações sociais e jurídicas, que deixava a mulher em segundo plano. Diante disso, nota-se que tais normas refletiam o sentimento dominante na sociedade de então, no sentido de preservar a família fundada no matrimônio e de resguardar esse instituto contra ameaças externas, cuja expressão máxima seria o reconhecimento de um filho gerado por um dos cônjuges, com terceira pessoa (BOSCARO, 2002, p. 65). Assim sendo, buscava-se a proteção e manutenção da paz familiar, a qual poderia ser comprometida com o reconhecimento público da existência de filhos concebidos fora do âmbito matrimonial. Situação que seria extremamente constrangedora a uma família, principalmente quando esta se encontrava em uma sociedade conservadora. Como conseqüência, a prole considerada ilegítima não possuía qualquer espécie de direitos, como a pensão alimentícia, e era deixada à execração pública, em virtude do comportamento altamente reprovável, praticado por seus pais e que se convencionou manter em sigilo (BOSCARO, 2002, p. 65). Vale lembrar que Clóvis Beviláqua se opunha a esta discriminação entre os filhos, pois tinha uma visão mais justa e humana acerca da disposição das relações familiares no âmbito jurídico, visto que ele defendia a ideia de que fosse reconhecida a plena igualdade entre os filhos, independentemente da origem matrimonial ou não da filiação, aduzindo que a culpa (ou o crime) dos pais não deveria ser punida na pessoa dos filhos, embora entendesse, também, que o resguardo dessa situação de igualdade não deveria prejudicar a honorabilidade das relações de família (BOSCARO, 2002, p. 63). À luz do novo Código Civil, estas distinções preconceituosas foram totalmente afastadas do ordenamento jurídico, sendo todos considerados apenas filhos na atualidade, sem qualquer espécie de distinção. Predominando, dessa forma, o princípio da igualdade, que é enfatizado no artigo 1.596 do Código Civil. Assim preceitua este artigo: Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Dessa forma, a filiação é prevista de forma mais humana e se desvincula de qualquer conceituação conservadora. Portanto, o Código Civil de 2002, além de conceber a família e seus institutos de maneira mais justa e considerando as diferentes manifestações familiares existentes,

também encara a família e suas relações em consonância com os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. No entanto, há de se observar que ainda resta uma diferenciação, ela diz respeito à origem da filiação. Para os filhos havidos no casamento há presunção de paternidade e a forma de sua impugnação, já para aqueles havidos fora do vínculo matrimonial, existe a necessidade de reconhecimento, que pode ocorrer por meio judicial ou voluntário, e para os adotados, há requisitos para se proceder à sua efetivação. 3. Filiação Socioafetiva Não obstante as inovações trazidas pelo novo Código Civil no direito brasileiro, as normas referentes ao estado de filiação tratam somente do vínculo biológico, isto ocorre devido à formação de nosso direito de família, enraizado na relação sanguínea decorrente do matrimônio. Ocorre que a sociedade evoluiu, bem como os conceitos de família e matrimônio, de modo que a doutrina e a jurisprudência se depararam com a necessidade de se reconhecer outro vínculo de filiação que não seja o biológico, pautado exclusivamente na espontaneidade e afetividade. Encontramos elementos socioafetivos dentro das relações humanas, tal como o amor e o carinho, os quais fazem com que a relação se aproxime com o estado de filiação, mesmo não existindo vínculo sanguíneo entre as partes. Neste sentido, Luiz Edson Fachin, defende que se o liame biológico que liga um pai a um filho é um dado, a paternidade pode exigir mais do que apenas laços de sangue. Afirma-se aí a paternidade socioafetiva que se capta juridicamente na expressão de posse de estado de filho" (1996, p. 36-37). Nestas relações em que o comportamento das partes faz com que se conclua que exista um vínculo de filiação, mesmo que não biológico, através da socioafetividade, estamos diante de uma verdadeira posse de estado de filiação, decorrente do tratamento e também do reconhecimento, por parte da sociedade, do vínculo de filiação entre as partes. Deste modo, apesar da legislação silenciar sobre tal fato, deve o Direito respaldar e proteger o comportamento afetivo. Assim posiciona-se, Maria Cristina de Almeida ao afirmar que o novo posicionamento acerca da verdadeira paternidade não despreza o liame biológico da

relação paterno-filial, mas dá notícia do incremento da paternidade socioafetiva, da qual surge um novo personagem a desempenhar o importante papel de pai: o pai social, que é o pai de afeto, aquele que constrói uma relação com o filho, seja biológica ou não, moldada pelo amor, dedicação e carinho constantes (2001, p. 159-160). Uma análise do art. 1.593 do Código Civil de 2002 revela que o legislador brasileiro, apesar de não tratar da filiação socioafetiva, considerou a possibilidade de se obter o estado de filiação com base diversa do critério biológico. Assim, vale ressaltar novamente a determinação do referido dispositivo legal: o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem. A possibilidade de existência do vínculo afetivo não é negada pelo nosso ordenamento, visto que é prevista a possibilidade de existir outra origem na formação da relação de parentesco. Além do instituto da adoção, que encontra regulamentação legal em nosso ordenamento, o Código Civil admite a existência de outras origens para a relação de filiação. E é essa possibilidade decorrente da interpretação da legislação vigente é que vem direcionando nossos juízes e tribunais a aplicarem a legislação destinada à filiação biológica analogicamente para proteger o estado de filiação decorrente do vínculo socioafetivo. Diante tais informações, encontramos uma evolução na aplicação do direito de família brasileiro, que naturalmente vai levar à existência de conflitos entre interesses patrimoniais decorrente diretamente do conhecimento do vínculo de filiação. Caberá aos Tribunais decidir sobre a participação patrimonial, vez que com a efetivação da filiação socioafetiva gerará alterações no registro civil de pessoas, o que acarretará na admissão ou exclusão do direito de herança no momento da partilha. O afeto, portanto, está apto a dar origem a uma relação familiar que deve ser protegida pelo direito, mostrando uma evolução do conceito de família, que gradualmente vemos em nosso ordenamento jurídico com as recentes decisões dos Tribunais Superiores. 4. Aplicação da Filiação Socioafetiva na Prática Jurisprudencial Após o estudo sobre a evolução que o conceito de família e filiação vem sofrendo com o passar dos anos, bem como após estudar a natureza jurídica da filiação socioafetiva, é importante uma análise de como tal instituto vem sendo aplicado pelos juízes e tribunais pátrios.

A primeira jurisprudência é um julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em que era pleiteada a alteração do registro civil após a constatação do vínculo biológico para ingressar como herdeiro: apelação cível. investigação de paternidade. configuração do vínculo biológico. alteração do registro civil. impossibilidade. filiação socioafetiva configurada pela adoção promovida pelos pais registrais há mais de 30 anos. Irrevogabilidade.AC 70045659554 RS Neste caso concreto, decidiu-se pela manutenção do registro civil com fundamento na filiação socioafetiva decorrente de adoção, por um período de 30 anos. Ressaltam os Desembargadores de que a filiação socioafetiva é um óbice para a repercussão patrimonial decorrente do reconhecimento da paternidade, protegendo assim os outros herdeiros da participação do apelado na partilha dos bens do de cujus. É claro, neste caso, que o instituto da socioafetividade é o fundamento para evitar que aquele que nunca teve contato com os pais biológicos e possui uma família adotiva, possa ser considerado herdeiro e participar da partilhar, de forma a se dar o enriquecimento sem causa, uma vez que este já seria beneficiado com a herança de seu pai adotivo. No próximo julgado, decorrente do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, não se discute o registro civil com base no vínculo biológico e sim o contrário, ou seja, a desconstituição da filiação pela ausência de vínculo biológico: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. JUSTIÇA GRATUITA DEFERIDA. DESCONSTITUIÇÃO DA FILIAÇÃO PELA NULIDADE DO ASSENTO DE NASCIMENTO. RECONHECIMENTO ESPONTÂNEO E CONSCIENTE DA PATERNIDADE. VÍCIO DE CONSENTIMENTO INEXISTENTE. REALIZAÇÃO DE TESTE DE PATERNIDADE POR ANÁLISE DE DNA. EXCLUSÃO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA. IRRELEVÂNCIA. EXISTÊNCIA DE SÓLIDO VÍNCULO AFETIVO POR MAIS DE 23 ANOS. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA DEMONSTRADA. DESCONSTITUIÇÃO DA PATERNIDADE VEDADA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.AC 50504 SC 2011.005050-4 No caso concreto acima, os Desembargadores optaram pela não desconstituição no vínculo de filiação, mesmo após resultado negativo no exame de DNA sobre a paternidade.

Deste modo, os julgadores decidiram manter o registro civil com fundamento na filiação socioafetiva, uma vez que a filiação foi reconhecida de forma espontânea pelo apelante, pois no momento do ato sabia da possibilidade de não ser ele o pai biológico. Como não foi demonstrado qualquer vício de vontade, como erro ou coação, não há razão para alteração do estado de filiação, que nasceu de forma espontânea e se consolidou pela afetividade. Por fim, segue um interessante julgado do Superior Tribunal de Justiça, em uma ação de reconhecimento de paternidade e maternidade socioafetiva, que no caso em concreto não logrou êxito: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE E MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. POSSIBILIDADE. DEMONSTRAÇAO. RECURSO ESPECIAL Nº 1.189.663 - RS (2010/0067046-9). Mesmo não logrando êxito o reconhecimento da filiação no caso acima, é de grande importância o posicionamento adotado pelo STJ em relação ao reconhecimento do vínculo socioafetivo. Deste modo, foi considerada possível a aplicação de forma análoga das regras sobre filiação biológicas para a filiação socioafetiva, permitindo assim que o vínculo afetivo seja reconhecido por meio de uma ação de reconhecimento de paternidade ou maternidade, que anteriormente era restrita aos casos de vínculo biológico. A pretensão de reconhecimento de filiação decorrente de vínculo puramente afetivo encontra, com esta decisão, respaldo jurisprudencial, cabendo àquele que o pleiteia, fazer prova da relação socioafetiva. 5. Considerações finais Ante tudo o que foi exposto, verifica-se que com a evolução da sociedade, a família, que é o seu núcleo básico, também se transforma e se configura de formas diferentes, havendo um pluralismo de relações familiares que variam caso a caso. O Direito, que se incumbe de disciplinar as relações entre indivíduos com a finalidade de manter a paz social e promover a justiça, não pode ficar alheio a essas mudanças. Assim sendo, quando a legislação não considera explicitamente as situações fáticas que se desenvolvem pela

evolução dos costumes, cabe à doutrina e, principalmente, à jurisprudência se manifestar acerca da nova questão. Este é o caso da filiação socioafetiva, que ainda não é prevista explicitamente na legislação, embora a filiação tenha passado por diversas transformações no âmbito jurídico, como foi exposto no decorrer deste texto. Desse modo, a doutrina se manifestou e demonstrou a necessidade de sua implementação no âmbito jurídico, tendo em vista as conjunturas sociais contemporâneas, que exigiam um posicionamento dos Tribunais acerca da questão. Conforme a análise dos pretórios discutidos acima, percebe-se que o Judiciário também reconhece a filiação socioafetiva. Tal reconhecimento é de suma importância, pois é notório que as relações familiares devem se pautar pelos laços de afeto, sendo que configuraria um caso absurdo e totalmente em desacordo com a realidade social o reconhecimento da filiação baseada somente na consanguinidade. Portanto, a filiação socioafetiva é reconhecida no âmbito jurídico em virtude da sua incidência no caso concreto, sendo que também se mostra como uma modalidade de filiação que merece maior destaque, visto que há um viés ético na consagração da paternidade socioafetiva. Constituído o vínculo da parentalidade, mesmo quando desligado da verdade biológica, prestigiase a situação que preserva o elo da afetividade (DIAS, 2009, p. 338). Assim sendo, a socioafetividade se reveste de um preceito ético e moral que prestigia a existência dos sentimentos ligados ao afeto humano. Sentimentos estes que contribuem para existência de uma convivência harmônica e do respeito à dignidade humana, aspectos fundamentais para a existência do núcleo familiar, daí a importância da tutela jurídica da filiação socioafetiva.

REFERÊNCIAS GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 6: direito de família. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5 ed. rev,. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. BOSCARO, Márcio Antônio. Direito de filiação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade; relação biológica e afetiva. Belo Horizonte. Del Rey, 1996. ALMEIDA, Maria Cristina de. Investigação de Paternidade e DNA: Aspectos Polêmicos. 2001.