Vila Nova de Famalicão: Edições Quasi, 2008.

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Transcrição:

Resenha Meirelles, Fernando. Diário de Blindness. Vila Nova de Famalicão: Edições Quasi, 2008. Lemuel da Cruz Gandara Aluno do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília TEL/UnB. Bolsista CAPES. gandara21@hotmail.com Resenha recebida em 28/4/2013 Resenha aprovada em 30/5/2013

O diário é um gênero confessional pelo qual o escritor pode expor reflexões impressionistas de situações vividas e que tiveram poucas intermitências antes de serem transpostas para o texto. Na presente resenha, apresentaremos uma leitura do Diário de Blindness, escrito pelo diretor de cinema Fernando Meirelles enquanto filmava a tradução cinematográfica da obra Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. A princípio, é bom pontuar que Diário de Blindness se trata da edição portuguesa do texto de Fernando Meirelles. No Brasil, o diário surgiu no universo virtual, como texto do Blog de Blindness, no qual o diretor começou a postar suas confissões na manhã de sexta- -feira do dia 24 de agosto de 2007, mais precisamente às 5h55min, segundo informações disponíveis no blog. Para esta resenha, além da edição portuguesa, foram lidos os posts feitos por Meirelles e, a título de comparação, a edição do diário lançado na Espanha, intitulado Diario de rodaje de A ciegas. Mesmo com todas essas leituras, nossa atenção será dada exclusivamente à edição lusitana. O primeiro capítulo do Diário foi escrito em Lisboa, tem por título Sobre Saramago e ansiedade. Nele, Meirelles relata o primeiro encontro com o escritor antes das filmagens. Essa ocasião se mostra como um ponto nevrálgico para o desenvolvimento do projeto fílmico, tendo em vista que, para surpresa e apreensão de Meirelles, o português estava Lemuel da Cruz Gandara MEIRELLES, Fernando / Diário de Blindness 271

bastante interessado (2008, p. 9) na produção. No capítulo 2, As bruxas, o diretor dá atenção ao fato de ter lido o livro de Saramago e, logo após a leitura, tentar um diálogo com a editora acerca da venda dos direitos para uma futura adaptação cinematográfica. Segundo o próprio Meirelles, a resposta, naquele momento, veio rápida e categórica: nenhum interesse (2008, p. 11). No capítulo terceiro, o diretor expõe uma reflexão sobre os atores. Essa discussão ganha maior relevância no capítulo 4, Sobre filmagem Al dente, no qual o diretor faz uma análise metafórica em que compara o momento certo de preparo de uma pasta ao exato instante para a filmagem. Como exemplo, o diretor expõe a gravação da cena em que a Mulher do Médico (Julianne Moore) anda pelo corredor após ver 12 mulheres serem estupradas: enquanto a atriz estava muito carregada pela emoção da personagem, a equipe técnica e o companheiro de atuação, Mark Ruffalo, não estavam no mesmo clima. Esse evento resultou, na montagem final, em planos diferentes dos atores para a mesma sequência e em leves problemas quanto à continuidade. É interessante perceber que o Diário foi escrito em vários países diferentes: Portugal, Canadá, Brasil e Uruguai. Ademais, o diretor escreveu, supomos, ainda com a emoção do momento vivido nas filmagens. Esse caráter ajuda na exposição de decisões que não foram previamente planejadas. Acerca disso, destacamos o capítulo 7, Sobre frio e sistema de irrigação, no qual é relatada a inclusão da cidade de Montevidéu, Uruguai, como um dos cenários do filme. Meirelles e a equipe estavam em São Paulo à procura de locações. Após andarem pela cidade e ficarem frustados com a quantidade de fios, placas e deterioração das ruas e calçadas (2008, p. 35), aceitaram a proposta do fotógrafo Cesar Charlone, e foram filmar na cidade natal deste. O caráter confessional do Diário de Blindness permite compreender como o diretor percebe certos problemas teóricos da arte cinematográfica. Um dos mais importantes para esta resenha e, também, para os estudos literários, é a questão do narrador. Em teoria, o problema do narrador, no cinema, não está tão bem resolvido e teorizado como na literatura. Meirelles vai de encontro a isso, e, no capítulo 10 Sobre cabeça de vento, narradores e homenagens confessa seu ponto de vista enquanto diretor-narrador: no começo de Blindness, quem conta a história é o diretor (eu mesmo), com a ajuda da equipe, é claro (...) quando a ação se desloca da cidade para o asilo, o contador da história deixa de ser o diretor e passa a ser a Mulher do Médico (2008, p. 48). Com essa afirmação, percebemos que o diretor se considera um dos narradores da história, afinal é dele e da equipe, o olhar que capta a ação. No desenvolvimento do Diário, Fernando Meirelles escreve sobre as obras de arte que o influenciaram no processo de filmagem, com especial atenção à pintura. No filme, é perceptível o diálogo com obras de Rembrandt e Malavich; no entanto, as referências mais explícitas dizem respeito ao quadro A parábola dos cegos, de Pieter Bruegel (óleo sobre tela, 1568) e a algumas telas de Lucian Freud. Essas obras, na voz do próprio Meirelles, nem 272 Cerrados Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura

referências são, são reproduções. São homenagens (2008, p. 59). Em relação à obra de Bruegel, ela corroborou o que o diretor chama de imagem-síntese (que expressa o filme como todo), afinal a cena das personagens cegas andando em fila indiana se tornou uma das mais importantes da obra. Por sua vez, as telas de Freud influenciaram na concepção da cegueira branca. Lucian Freud usa muitos tons pastéis e várias perspectivas para o branco em suas pinturas; esse uso das cores pode ser percebido na iluminação que o fotógrafo César Charlone usou no filme. Os capítulos 13, 14 e 15 compreendem o processo de montagem do longa-metragem. Na primeira dessas montagens, ou juntão, como é chamado pelo montador Daniel Rezende, o filme tinha duas horas e quarenta minutos. Após exibições a amigos, Meirelles e Rezende chegaram à metragem de duas horas e vinte minutos. Nas sessões testes realizadas em Toronto e Nova York, os produtores e o diretor chegaram à conclusão de que o filme deveria ser suavizado, principalmente por causa das cenas de estupros. Depois de tantas versões, um total de dez, o longa-metragem ficou pronto para a exibição no Festival de Cannes de 2008. No entanto, antes do lançamento oficial, uma pessoa ainda precisava ser consultada: José Saramago. O momento de exibição da obra para o escritor português está no último capítulo do Diário. Nele, Meirelles escreve suas impressões antes da projeção, o problema com o equipamento de reprodução de filmes (não tinha uma versão digital). No ponto ápice do capítulo, Saramago fala sua impressão sobre a obra: Fernando, eu me sinto tão feliz hoje, ao terminar de ver este filme, como quando eu acabei de escrever o Ensaio sobre a cegueira (2008, p. 80). Dias depois, o filme foi lançado nos cinemas e recebeu críticas mornas. No Brasil, a obra foi mal lançada, na medida em que a distribuidora preferiu deixar o título do livro em vez de traduzir o do longa-metragem. As contribuições de Fernando Meirelles possibilitam compreender o processo de transposição de um romance para o cinema, bem como as angústias de um leitor-diretor que é admirador do texto fonte e está em contato com o escritor da obra. Lemuel da Cruz Gandara MEIRELLES, Fernando / Diário de Blindness 273

Referências Bibliográficas Meirelles, Fernando. Diário de Blindness. Vila Nova de Famalicão: Edições Quasi, 2008. 274 Cerrados Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura