Entre O Amadorismo E O Profissional: O Processo De Formação Do Skatista Profissional Claudiovan Ferreira da Silva 1 Resumo



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Entre O Amadorismo E O Profissional: O Processo De Formação Do Skatista Profissional Claudiovan Ferreira da Silva 1 Resumo Os esportes podem serem abordados por diversas perspectivas distintas e/ou complementares. Há produções acadêmicas variadas sobre relações de sociabilidade nos esportes, sobre usos dos espaços urbanos pelos praticantes dos esportes radicais como skate, bike e le parkour, sobre interações e conflitos entre torcidas organizadas de clubes de futebol etc. Neste trabalho especificamente temos como principal reflexão a busca por uma compreensão e análise das estruturas e instrumentos que permeiam o processo de profissionalização de um atleta praticante de skate, ou, em outras palavras, nossa principal inquietação é buscar responder a seguinte questão: como um skatista amador se torna profissional no Brasil? Quais estruturas (físicas e simbólicas) e instituições (com suas regras) organizam este processo de profissionalização de um esporte que tem em sua base de seu surgimento ser uma prática que visa antes de tudo a liberdade e o transitar pela cidade fazendo usos diversos dos equipamentos encontrados nos ambientes citadinos, como praças, avenidas, calçadas, escadarias etc? Não basta apenas que o skatista amador possua uma habilidade e domínio corporal que o diferencie dos demais skatistas para que aquele possa vir a tornar-se um atleta profissional. Há, toda uma estrutura moral e ética de comportamentos e posturas sociais que é cobrada daquele atleta profissional (ou que almeja vir a ser) por parte do próprio grupo de skatistas e de suas instituições, como as associações de skatistas que existem no país e a Confederação Brasileira de Skate (CBSK), entidade que possui exclusivamente o poder de regulamentar a profissionalização de skatistas no Brasil. Buscamos acompanhar o cotidiano de alguns atletas que visam tornar-se profissionais para com isso observarmos e compreendermos o que tais atletas pensam sobre a profissionalização no seu esporte e também de que maneira isso afeta em sua relação com o esporte e de certa maneira determina seu projeto de vida passando a tornar-se algo central a busca pela profissionalização. Palavras-chave: Skate, regulamentação, profissionalização. 1 Aluno de Ciências Sociais (Licenciatura) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Membro do Grupo de Pesquisa em Etnografias Urbanas GUETU. E-mail: claudiovan1@hotmail.com

A Esportivização do Skate Este texto é fruto de reflexões e pesquisa que realizei para a construção de minha monografia de conclusão do curso de Ciências Sociais na UFPB (Universidade Federal da Paraíba). A escolha do tema a ser pesquisado surgiu, num primeiro momento, por influência direta da minha própria vivência relacionada a prática do skate. O que provocou a curiosidade e a proposta de transformar algo que já fazia parte do meu cotidiano em objeto de pesquisa foi o fato de ver, aos poucos, o universo do skate ser cada vez mais expandido e traçando um caminho na perspectiva da esportivização. Mas, como sabemos tudo possui seu bônus e seu ônus, e com a escolha de um objeto de pesquisa não é diferente. Então, se pelo fato de eu ter uma vivência mais próxima com meu objeto de pesquisa possibilita uma relação de maior proximidade, o que em alguns momentos favorece ao desenvolvimento da pesquisa, em outros momentos esta mesma proximidade pode tornar-se negativa, ás vezes tendendo até a interferir no desenvolvimento da pesquisa, impedindo percepções que um olhar estrangeiro identificaria com maior acuidade, ou não. Entretanto, busquei encarar isto como fazendo parte dos desafios da minha pesquisa, pois todas as pesquisas possuem seus desafios, seus obstáculos a serem superados. O objeto central de nossa investigação é o processo de esportivização do skate (Elias, 1992). Este processo direciona a profissionalização do esporte, a definição de locais específicos para a prática - locais denominados de skate parks -, a criação de associações, estas geralmente tem como limites o território de um município específico, as federações, que atuam em âmbito estadual, e a Confederação Brasileira de Skate, CBSK, que atua em âmbito nacional. Também pela adoção de normas que nomeiam e definem as manobras e práticas como corretas e incorretas, assim como condutas morais e éticas aceitáveis ou não para um atleta profissional de skate. Partimos da hipótese central de que a esportivização do skate (através da criação de associações de skatistas, construção de Skate Parks, profissionalização deste esporte etc.) é uma maneira de disciplinar o skate, sua prática. Pois, os skatistas praticavam seu esporte, na modalidade street, exclusivamente nas ruas das cidades utilizando-se dos equipamentos urbanos, bancos de praças públicas, em escadarias, corrimãos etc. Faz-se um uso da cidade que não é o uso que as pessoas estão acostumadas, pois os skatistas fazem um uso diferente, criam maneiras diversas de se utilizar a cidade e seus equipamentos. Também desenvolvem laços de sociabilidade, construindo culturas e

identidades próprias. Porém, com a esportivização esta prática do skate pelas ruas da cidade vai desaparecendo e sendo disciplinada tendo espaços determinados, e delimitados, para seu uso. A partir de um simples olhar para a maneira como os skatistas utilizam a cidade podemos ver que estes fazem uma subversão da utilização dos espaços (MAIOLINO, MANCEBO, 2005). Em outras palavras, é facilmente perceptível á um primeiro olhar a maneira diferente, fora do comum, peculiar, resignificada, como os skatistas utilizam a cidade e seus equipamentos. Podemos dizer que essa subversão da utilização dos espaços parece um sinal de novas possibilidades de uso e captura subjetiva do espaço urbano (MAIOLINO, MANCEBO, 2005, p. 23). Utilizamos a teoria do Processo Civilizador de Elias (1994) como central em nossa análise. O que Elias, em linhas gerais, é que pode-se observar que a partir do século XVI temos uma radical mudança dos padrões de conduta e de sensibilidade dos indivíduos. Este acontecimento é algo que não tem uma data de finalização, como uma idéia de uma etapa, por isso Elias dá o nome de Processo, como a idéia de um fenômeno que está inacabado e provavelmente assim será ao longo da história. Ele considera também que o processo não tem uma finalidade, é tortuoso, e as tendências de desenvolvimento só podem ser identificadas por um olhar retrospectivo. Este Processo Civilizador atinge todas, ou quase todas, as áreas de convivência social e o esporte é algo que não passa a margem do mesmo. Uma pesquisa que durou vários anos [...] demonstra, para o dizer de maneira breve que os modelos sociais de conduta e de sensibilidade, particularmente em alguns círculos das classes sociais altas, começam a transformar-se muito drasticamente, numa direção específica, desde o século XVI em diante... De forma idêntica, a investigação sobre o desenvolvimento do desporto mostrou que existia uma transformação global do código de conduta e de sensibilidade na mesma direção. Se compararmos os jogos populares realizados com bola nos finais da Idade Média, ou até no início dos tempos modernos, com o futebol e o râguebi, os dois ramos do futebol inglês que emergiram no século XIX, pode notar-se que existe um aumento da sensibilidade em relação á violência. (ELIAS E DUNNING, 1992, P. 41-42) O principal esforço do processo civilizador é criar instrumentos que busquem, no mínimo, diminuir o uso da violência no convívio social. Para isso se constituem um conjunto de regras, normas de conduta que possam cada vez mais tornar a violência como algo que deva ser reprimido e mal visto pelo conjunto da sociedade. No esporte

isso vem a ocorrer por meio da criação de uma série de regras, normas de se praticar, aumento da proteção dos atletas, tudo com o objetivo de tornar o esporte o menos violento possível e mais aceito pelos códigos de conduta e sensibilidade da sociedade moderna. Ou seja a passagem de algo que é visto apenas como lazer a esporte ocorre com o surgimento de regras que definam as ações, as condutas dentro de determinada prática. O que também significa que o processo civilizador ocorre no universo do esporte. Elias segue nos dizendo que a civilização dos jogos de competição é algo extremamente vinculado a questão da restrição, ou minimização, da violência efetuada sobre os outros competidores, isso só é possível por meio de um conjunto de regras sociais que exigem uma certa grandeza de autocontrole por parte dos indivíduos (Elias, 1992). Elias define esporte nos tempos modernos como sendo uma atividade que incluiu sempre confrontos realizados para a satisfação de espectadores. Ou seja o esporte na modernidade é algo que carrega consigo a noção de espetáculo, de algo que deve ser praticado coletivamente e nunca por um único indivíduo. O prazer, algo característico de atividades esportivas, passa a ser diferente também quando se compara práticas esportivas onde não existe um complexo conjunto de regras que o regulamenta e as práticas onde estas regras já estão altamente desenvolvidas. O que também está relacionado com toda a estrutura mais geral da sociedade. A função social dos esportes é fazer com que os indivíduos possam, de alguma maneira, sentir, ou buscar sentir, simular, o prazer que existe reprimido dentro de cada um de nós, a repressão das pulsões, dos instintos, dos impulsos libidinais, afetivos e emocionais. Todos estes sentimentos precisam serem autocontrolados pelo indivíduo (Elias, 1992), o que nos remete diretamente a teoria freudiana da repressão das pulsões na civilização (Freud, 2010). Na idéia de que os esportes funcionem como uma esfera de canalização dos impulsos reprimidos pela convivência social. Com o skate não foi diferente. Ele surge como uma simples atividade de lazer praticada principalmente por jovens. E em pouco tempo passa a adquirir características específicas de esporte, no sentido atribuído por Elias. No seu surgimento e mesmo no seu desenvolvimento o skate mantêm um aspecto que é muito significativo e particular de sua prática, que é o fato de ser visto por muita parte do tempo como uma prática muito ligada a movimentos culturais juvenis, e que por sua vez era praticado

exclusivamente, no início, nas ruas das cidades. Isso faz com que seja visto como algo subversivo no que diz respeito à utilização dos espaços públicos. Com o passar do tempo, com o desenvolvimento do processo de esportivização no universo do skate, a criação de suas regras próprias, mas não totalmente desvinculadas das regras sociais globais, de suas normas de condutas e práticas, e criação de seus órgãos regulamentadores, inclusive a profissionalização, este esporte passa a ser, digamos, mais aceito socialmente. Pois passa a ser praticado e regido por normas também aceitas socialmente, contendo em seu interior toda uma hierarquia entre seus praticantes. Com isso o skate que era praticado principalmente nas ruas passa cada vez mais a se deslocar para os seus locais particulares, as Skate Parks, e as ruas passam a ser neste momento apenas o local para que o skatista, envolvido no processo de esportivização do seu esporte, utilize-a apenas para o momento do espetáculo, como fotografar e fazer vídeos de skate. Mas no cotidiano o skate passa cada dia mais a ser praticado nestas áreas específicas e chega a ser proibido em algumas areas públicas, como ocorreu em na cidade de São Paulo em 1978 e em Blumenau- SC no ano de 1999. Além de algumas revistas de vídeos de skate registrarem o fato de em algumas cidades norte-americanas e européias o skate também ter passado por essa proibição, como na Praça Love, na Filadélfia nos EUA. O que vemos com isso é a maior busca por controle desta prática até então tida como fora dos padrões de autocontrole impostos pela convivência dos indivíduos nas cidades. Ao indagarem o surgimento de tantas modalidades esportivas que são incorporadas à terminologia de esportes radicais, José Roberto Cantorani e Luiz Alberto Pilatti, defenderam a seguinte hipótese Se os esportes são um meio de se escapar da pressão comportamental imposta pela sociedade, os esportes radicais talvez tenham se proliferado por se apresentarem como meio de se escapar da ordem imposta pelo próprio esporte (BRANDÃO, 2006, P. 14) O que vimos durante a pesquisa foi que o skate surgiu como uma prática de rua e durante um período significativo foi visto pela sociedade como algo marginal, que era praticado por vagabundos e maconheiros, como falaram vários dos skatistas quando estávamos durante a pesquisa de campo. Depois com o desenvolvimento o skate passa por algumas etapas do processo de esportivização, entre elas está à criação de um mercado voltado para o skate, com a criação de roupas, peças e acessórios que são utilizados principalmente pelos skatistas. Com a criação deste mercado também temos a

entrada da mídia no universo do skate, inicialmente sendo apenas uma mídia especializada e de pequeno porte de divulgação. Então quando o skate já possuía um mercado funcionando em sua volta, uma mercantilização, e uma certa mídia, sua espetacularização, houve também o reconhecimento da sociedade e do Estado daquela prática como algo não marginal e aceito socialmente. Tudo isso ocorreu aliado a inúmeras manifestações por parte dos skatistas em busca de reconhecimento do skate enquanto esporte. E assim vem ocorrendo, falando em linhas gerais. O Estado, apesar de por diversas vezes reprimir esta prática, passa a construir áreas para a prática do skate, as Skate Parks, assim como também ocorrem construções destas por parte da iniciativa privada. Desta maneira o skate começa a ter mais reconhecimento social e ser visto como algo integrante do universo urbano, principalmente das grandes cidades do país. Entretanto, este reconhecimento do skate por parte do Estado e da sociedade não se dá de maneira fácil e sem conflitos. O universo do skate precisou mudar boa parte de suas práticas. Os skatistas precisaram, digamos, se adequar ás normas sociais estabelecidas pelo conjunto da sociedade, fazendo com que as roupas, o visual, as músicas, e todo o universo dos skatistas passassem a ser algo mais aceitável socialmente. O que dizem os skatistas sobre o processo de esportivização A maioria dos skatistas que andam de skate apenas por lazer praticam seu esporte na maior parte do tempo pelas ruas da cidade. O seu percurso é apresentado (em falas ouvidas durante a pesquisa de campo) como algo extremamente sem prédeterminação. Mas, ao passarmos a observar com mais sistematicidade, com uma maior acuidade, vemos que não é bem assim. Geralmente anda-se de skate pelas ruas das cidades no horário da tarde e os dias onde podíamos ver mais skatistas no centro da cidade são aos domingos e finais de semana. Que são os dias onde o comércio e os serviços que ali funcionam estão fechados e com isso os skatistas passam a utilizar dos bancos de praças, corrimãos de escadarias, andar pelo asfalto, subir e descer calçadas etc. Fazendo um uso significativamente diferenciado da maneira como vemos a cidade em nosso cotidiano. O olhar do skatistas funciona como o olhar de um arquiteto que vê na cidade mais do que apenas prédios, concretos e equipamentos. O skatista tem um olhar

diferente sobre as coisas da cidade, os bancos da praça, as curvas da rua, as paredes inclinadas, escadarias, corrimãos... A arquitetura urbana é aliada do espírito do skate (BRITTO, 2000, P. 77.) Skatista executando manobra no chamado banco da Lagoa. Fonte: Arquivo Pessoal do Skatista Perguntamos sobre quais os motivos que levam estes skatistas a andarem nas ruas e não nas Skate Parks e eles sempre apontavam como a rua sendo o melhor lugar pra se andar de skate, por seu caráter desafiador, que a todo momento pode-se encontrar um local novo para a realização de uma manobra, pelo contato com o a cidade. Durante seu percurso pelas ruas o skatista vai encontrando com outros inúmeros skatistas que também estão a transitar pela cidade praticando seu esporte. Essas sessions de skate pelas ruas da cidade não se fazia se alguns conflitos com os demais usuários do espaço urbano. Algumas vezes chegava até a ter a presença da polícia, de guardas de segurança, para impedir que os skatistas praticassem seu esporte em determinados locais, monumentos, praças etc. Os entrevistados falaram que há muitas diferenças entre os skatistas que praticam mais nas ruas e os que praticam mais nos Skate Parks, dizendo que a Skate Park está mais voltada para o profissionalismo, porém não exclusivamente. Quando

perguntamos a D o que ele acha da profissionalização do Skate ele nos diz meu irmão pra mim tem uns caras que são profissionais aí, não precisa ninguém dizer, Geninho, Dionísio, Dudu, esses caras são profissionais, os caras andam pra carai. Mas aqui as marcas não ajuda ninguém, os cara não tem patrocínio nem nada. Apontando o poder da mercantilização, só os que estão competindo são apoiados pelas marcas. Continuamos a conversa e perguntamos o que ele achava da CBSK e o mesmo responde dizendo é bom pros caras lá né, mas pra mim não faz diferença não. Igual esse lance do skate tá aí em todo lugar, eu nem ligo, por que isso só tá sendo bom pros caras que tão ganhando dinheiro com isso, eu não ganho porra nenhuma, continua andando de skate nas ruas mesmo e acabo, por que gosto e pronto. Com outra visão temos os atletas que estão mais próximos do processo de profissionalizar-se e mantêm relações distintas com o skate mantendo uma maior relação com sua regulamentação oficial, que ocorre principalmente pela CBSK. Esta instituição possui desde 2004 comitês de competidores profissionais, composto por alguns skatistas de nomes significativos no skate nacional. A principal função destes comitês é avaliar quais os atletas que anualmente estão aptos a serem reconhecidos legalmente como skatistas profissionais. A avaliação analisa não apenas o nível técnico do atleta, mas também analisam o histórico do candidato, se há patrocinador(es) disposto(s) a pagar salário, arcar com despesas para o pleiteante competir no Circuito Brasileiro Profissional e realizar seu trabalho adequadamente (CBSK, 2010). Estes skatistas que estão em vias de profissionalização praticam seu esporte na maior parte das vezes em pistas de skate. Como nos diz o entrevistado A eu acho que pista é o local que apropriado, é feito pra prática do esporte né, e a rua é tipo um quebra-galho, improviso. O que podemos notar que é muito bastante diferente do que nos dizem os skatistas de rua. Andar de skate na rua, para os skatistas que acompanhamos em vias de profissionalização, é algo que se faz quando se quer obter alguma imagem, fazer foto para anúncios de revista, vídeos de skate, publicidade. A rua torna-se o lugar do espetáculo, mas não o local por excelência da prática cotidiana do skate. O skate passa a fazer parte de um mercado maior, que movimenta milhões de reais e que pra isso precisa do seu meio de divulgação. O skatista é para o mercado o outdoor ambulante, aquele sujeito que vai receber um patrocínio de determinada empresa e em troca é responsável pela publicidade da marca por meio de participar de campeonatos, buscar estar sempre bem colocado nos rankings dos campeonatos, fazer

viagens com o objetivo de divulgar a empresa, participar de campanhas publicitárias, seu trajeto é modificado e definido a partir do mercado e dos circuitos de campeonatos. Ou seja, o skatista também passa a ser visto como uma mercadoria. Todos os entrevistados que compunham o grupo de skatistas em vias de profissionalização participaram de inúmeros campeonatos, entre 30 e 80 campeonatos. E um desses entrevistados ainda respondeu que não é muito campeonateiro, como ele denominou quem compete muito. No entanto, este mesmo entrevistado disse que já competiu entre 30 e 50 vezes em campeonatos por todo o país. Quando questionados sobre a importância dos campeonatos estes skatistas sempre apontavam direta ou indiretamente como sendo um evento muito importante para o desenvolvimento do skate. Não apenas pela sociabilidade que ocorre nestes eventos, mas também pelo clima de competição que é construído. Considerações Finais O que se notou foi que este processo de esportivização tem feito com que o skate aos poucos venha a se tornar cada vez mais uma prática reconhecida como esporte, no sentido atribuído por Elias. E mesmo com uma história que podemos considerar, relativizando, como sendo de curto período desde seu surgimento até os dias atuais (40 anos) este esporte passou por vários momentos tornando-se cada vez mais reconhecido e aceito socialmente. O skate surgiu como uma prática à margem dos esportes consagrados, configurando-se espontaneamente nos espaços de lazer juvenis, constituindo-se como um tipo de cultura juvenil. Passou a ser alvo de estigmatização por parte da sociedade e aos poucos, a partir de seu disciplinamento e regulamentação, esta prática passou cada vez mais a ser vista e reconhecida como um esporte. Entretanto, este reconhecimento não se fez de maneira simplesmente harmoniosa, foi preciso que o skate mudasse uma série de questões, de posturas, nas suas práticas ao transitar pelas ruas da cidade, juntamente com a criação de órgãos que represente este esporte na ótica do Estado, para que somente assim este reconhecimento fosse alcançado. Esta esportivização acarretou uma série de mudanças no universo do skate. A grande maioria dos skatistas deixou de utilizar as ruas das cidades e seus equipamentos como o principal local para a prática de seu esporte e lugar de construção de sociabilidades e culturas. Os lugares que conquistaram a preferência dos skatistas foram

os skate parks, as pistas de skate construídas por iniciativas públicas e privadas cuja finalidade é simular os equipamentos (bancos de praças, escadarias, rampas etc) encontrados nas ruas das cidades. E a profissionalização do skate passou a ser o objetivo principal a ser alcançado por grande parte dos skatistas. Ocorreu também uma mercantilização do skate enquanto cultura a ser consumida pela sociedade, principalmente os jovens, assim como também tem ocorrido uma espetacularização deste esporte, cada dia mais explorado pela mídia. Os skatistas sujeitos desta pesquisa demonstraram que o lado positivo da esportivização foi que como conseqüência deste processo o skate perdeu a estigmatização que carregava consigo. Porém, muitos depoimentos expressaram o gosto pela rua, pela aventura em busca de novos riscos e incertezas, além do encontro com os amigos e lamentaram os efeitos da esportivização, que alguns só queriam se exibir e tornar-se superiores aos outros REFERÊNCIAL BIBLIOGRÁFICO BITENCOURT, V.; AMORIM, S. SKATE. In, Da Costa, Lamartine P. (Org.) Atlas do Esporte no Brasil. Rio de Janeiro, RJ, Shape, 2005. BRANDÃO, Leonardo. Corpos deslizantes, corpos desviantes: a prática do skate e suas representações no espaço urbano (1972-1989). 2006. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) BRANDÃO, Leonardo. ENTRE A MARGINALIZAÇÃO E A ESPORTIVIZAÇÃO: ELEMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DA JUVENTUDE SKATISTA NO BRASIL. In, Recorde: Revista de História de Esporte. V. 1, número 2, Dezembro de 2008. Disponível In: http://www.sport.ifcs.ufrj.br/recorde/pdf/recordev1n2_2008_15.pdf BRANDÃO, Leonardo. Metralhadoras contra skates. Revista de história da biblioteca nacional, nº 54, março de 2010. BRITTO, Eduardo (Ed.). A onda dura 3 décadas de skate no Brasil. São Paulo: Parada Inglesa. 2000; DAMATTA, Roberto. O Ofício do Etnólogo, ou como ter anthropological blues. In: Edson Nunes (org.) Aventura Sociológica. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. DUNNING, Eric; ELIAS, Norbert. A busca da excitação. Lisboa: Difel. 1992;

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