A INDESEJÁVEL DAS GENTES *



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Transcrição:

1 A INDESEJÁVEL DAS GENTES * Adinélvia Barbosa Mariano 1 Resumo: O presente artigo trata do que o poeta Manuel Bandeira chamou de a indesejável das gentes, ou seja, a morte. Inicialmente aborda as representações da morte da Idade Média até a atualidade, mostrando a familiaridade com que os indivíduos da sociedade lidavam com a morte, as modificações que os rituais e a maneira de vivenciar este momento sofreram até a contemporaneidade. Relata, ainda, a mudança do local de se morrer e as implicações disso para o paciente, a família e a equipe. Além disso, trata da angústia que o cuidado com o outro e, na maioria das vezes, com a dor do outro gera nos profissionais de saúde. E conclui que, apesar das modificações ocorridas e do avanço da ciência, a morte é o tema que não cessa de não se escrever e talvez por isso convoque tantas palavras. Palavras-chave: Morte, Real, Simbólico, Dor e Profissionais de saúde. 1 Aluna do Curso de Especialização em Psicologia Hospitalar do Centro Universitário Newton Paiva; Psicóloga do Serviço de Atendimento Especializado da Unimed-GV. *Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como pré-requisito para obtenção de Título de Especialista em Psicologia Hospitalar do curso de Pós-Graduação Lato Sensu do Centro Universitário Newton Paiva, sob a orientação da professora Cláudia Amarante.

2 Consoada Quando a indesejável das gentes chegar (Não sei se dura ou caroável) Talvez eu tenha medo. Talvez sorria, ou diga: Alô, iniludível! O meu dia foi bom, pode a noite descer. (A noite com os seus sortilégios) Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, A mesa posta, Com cada coisa em seu lugar. (Manuel Bandeira) O desejo de escrever sobre a morte surgiu a partir de algumas experiências vivenciadas na minha prática em instituições hospitalares, onde percebi o quanto a possibilidade da morte e a própria indesejável das gentes angustiava o paciente, a família e a equipe. Em seu livro Sobre a História da Morte no Ocidente desde a Idade Média, Ariès (1989) analisa as representações acerca da morte desde a Idade Média até a atualidade. Inicia seu trabalho observando como morriam os cavaleiros nos antigos romances medievais, ponto de partida utilizado para abordar as representações da morte existentes no século XII. Nesse período, as pessoas sabiam que iriam morrer, havia sinais claros no corpo daquele que estava doente, chamado pelo autor de moribundo ; pode-se citar, como exemplo, o período da peste. Segundo o autor, essa sensação vinha de sinais naturais ou por uma convicção íntima e não por premonição sobrenatural ou mágica.

3 A morte era uma cerimônia pública, organizada pelo próprio doente e autorizada pela sociedade. A câmara do moribundo se convertia em lugar público. A entrada era livre. (ARIÈS, 1989, p. 24) Era importante que os parentes, amigos e vizinhos estivessem presentes, pois as pessoas tinham receio de morrer só, e as crianças participavam desse momento juntamente com os adultos, eram incluídas no ritual, ao contrário do que acontece na contemporaneidade. Os ritos da morte eram aceitos e cumpridos de maneira cerimonial, mas sem um caráter dramático e sem emoção excessiva. Os indivíduos se mostravam muito familiarizados com os mortos e com sua própria morte. (ARIÈS, 1989) Segundo Ariès (1989), durante a segunda Idade Média, do século XII ao XV, as representações acerca da morte foram parcialmente alteradas. No século XIII, prevaleceu a ideia do Juízo Final, um tribunal de justiça representado por Cristo. No Juízo, a vida dos homens é julgada pelo balanço de suas boas e más ações. Acreditavase num além da morte que não ia necessariamente até a eternidade, mas existia um período entre a morte e o final dos tempos. O autor associou a ideia do Juízo Final à da biografia individual, que só se acaba no fim dos tempos e não na hora da morte. O Juízo, apesar de ter um lugar na coletividade, na crença social, no final dos tempos era particular, ninguém conhecia a sorte de cada indivíduo antes da decisão do Juiz. A partir desse período histórico, passou a existir uma relação estreita entre a morte e a história de vida de cada indivíduo. Desde então, acredita-se que cada homem revê toda a sua vida no instante de morrer, o que ocasionou o surgimento do caráter dramático e da carga emocional diante da morte que anteriormente não existia. Outro fenômeno que o autor se propõe a analisar é o aparecimento do cadáver na arte e na literatura. Os historiadores ficaram admirados com o aparecimento

4 do cadáver e da múmia na iconografia. Ariès (1989) interpreta que, neste horror da morte, existe um sinal do amor à vida. O homem do final da Idade Média tinha a consciência muito aguda de que era um morto adiado, de que o adiamento era curto, de que a morte, sempre presente no interior de si mesmo, destruía as suas ambições, envenenava os seus prazeres. E esse homem tinha uma paixão pela vida, que nós, hoje, mal compreendemos, talvez porque a nossa vida se tornou mais longa... (ARIÈS, 1989, p. 38) O autor relata que, durante a segunda metade da Idade Média, os indivíduos fizeram uma aproximação entre sua história de vida e o apego apaixonado à vida. Nesse momento, a morte transformou-se no lugar onde o homem tomou melhor consciência de si mesmo, de que, apesar de viver em sociedade, existe algo que é só seu. O fenômeno da sepultura nesse período histórico confirma o fenômeno da tomada de consciência de si, ou seja, de sua individualidade. As placas nas sepulturas, com o nome do defunto, se tornaram cada vez mais frequentes, mostrando a importância do registro da identidade do morto. O estudo dos túmulos também confirma a relação, que anteriormente não existia, entre a morte de cada um e a consciência que possuía de sua individualidade. No espelho de sua própria morte, cada homem redescobria o segredo de sua individualidade. (ARIÈS, 1989, p. 41) A partir do século XVIII, o homem da sociedade ocidental tende a dar à morte um novo sentido. Exalta-a, dramatiza-a e se preocupa mais com a morte do outro do que com a sua própria. Assim como o ato sexual, a morte é cada vez mais considerada uma transgressão que arranca o homem da sua vida cotidiana. A morte passa a ser vista como uma ruptura. Esta noção de ruptura nasceu e se desenvolveu no mundo dos fantasmas eróticos e vai passar para o mundo dos fatos reais e concretos. Vai perder as características eróticas e ser sublimada e convertida em Beleza. (ARIÈS, 1989)

5 A familiaridade com a morte e com os mortos não foi afetada; a morte continuava domesticada. O cerimonial da morte no leito, dirigida pelo próprio sujeito rodeado de pessoas, continuava a ser o cenário de representação. Contudo, há uma mudança. No século XIX, a emoção entra em cena e as pessoas passam a se emocionar no instante da cerimônia. Surge uma expressão de dor do familiar ou amigo que sobrevive, e esta é devida a uma nova intolerância em relação à separação. A ideia da morte passa a ser emocionante. A primeira modificação que surge no final do século XVIII e que se converte num dos traços do romantismo é essa complacência com a ideia da morte, citada anteriormente. A segunda grande mudança refere-se à relação do moribundo e sua família. Nesse período, ocorre uma alteração muito importante no testamento: o que antes era designado às cláusulas piedosas, às designações de sepulturas, entre outras, fica reduzido ao que é atualmente um ato legal de distribuição de fortunas. Em suma, o que mais se modificou nesse período, de acordo com o autor, foi a atitude dos sobreviventes; já não eram mais os passivos de antes. Essa mudança revela uma grande dificuldade dos sobreviventes em aceitar a morte do próximo. Nesse momento, a morte temida não é a morte de si mesmo, mas a morte do outro. Áries (1989) ressalta que, durante o longo período percorrido anteriormente, a atitude perante a morte mudou tão lentamente que os contemporâneos nem perceberam. No entanto, há cerca de 30 anos tem ocorrido uma revolução das ideias e dos sentimentos tradicionais. A morte, que era tão presente e familiar, vai desvanecer-se e desaparecer, tornando-se vergonhosa e objeto de interdito. A família passa a poupar o doente, escondendo a gravidade de seu estado. Nada muda nos ritos da morte no que tange à aparência, mas começou-se a esvaziá-los de sua carga dramática e iniciou-se o processo de escamoteamento.

6 A atitude antiga, em que a morte é simultaneamente familiar, próxima e atenuada, indiferente, opõe-se muito à nossa, em que a morte provoca medo, a ponto de nem ousarmos dizer-lhe o nome. (Áries, 1989, p.25) A partir do momento em que a morte passa a ser vista como um interdito e não pode ser dita, falada, não há elaboração do luto e surge então a angústia, difusa e anônima, ou seja, sem localização e sem nome. É preciso que essa angústia se manifeste no discurso para ser localizada e ter a possibilidade de ser elaborada. Retornando à linha histórica da representação da morte no Ocidente, observa-se que, depois da 1ª Guerra Mundial, a morte se deslocará da casa do moribundo para o hospital. Cada vez mais não se morre em casa, mas sozinho ou entre desconhecidos no leito de um hospital. (Correia, 2008) Essa mudança de lugar traz implicações para o paciente e também para a equipe que cuida. No que concerne ao paciente, o moribundo está numa instituição, um lugar onde perde suas referências e, muitas vezes, sua identificação. Não está em casa, com a família e os amigos, aguardando a morte chegar, morte esta que era tão familiar e esperada como na Idade Média. Está ligado a um aparato tecnológico de primeiro mundo, contudo, sozinho e, na maioria das vezes, com medo da indesejável das gentes. Durante alguns atendimentos realizados em uma clínica cirúrgica de uma instituição hospitalar pude observar que, por trás da ansiedade e da preocupação que alguns pacientes se queixavam, o que existia era o medo da morte, a dificuldade de lidar com essa possibilidade e, em algumas situações, o medo que ela acontecesse no hospital. Caso 1: Durante o atendimento realizado com uma paciente que iria se submeter a uma cirurgia de retirada do rim esquerdo, ela disse-me que estava com medo

7 da cirurgia. Ao investigar sobre qual medo ela estava falando, ela respondeu: de ir e não voltar mais.... Caso 2: Iniciei um atendimento a pedido do médico que estava acompanhando uma paciente. Na sala onde é realizado o registro nos prontuários, o médico se aproximou, perguntou-me se eu era da psicologia e pediu-me que atendesse uma paciente que estava muito ansiosa. Relatou-me o caso brevemente e disse que, apesar de não ter o diagnóstico do quadro, se tratava de um câncer. A paciente estava muito triste, preocupada e ansiosa para ir para casa, e disse-me que, se precisasse passar por uma cirurgia, não iria realizá-la. Seria muito sofrimento. Se para fazer o procedimento para o qual foi internada já teve tantas complicações, imagine uma cirurgia. No decorrer do atendimento, outras questões surgiram, entre elas, o medo de morrer na mesa de cirurgia era o que estava por trás da recusa inicial. Não quero morrer na mesa de cirurgia de um hospital; se for para morrer, quero que seja como minha tia, em casa, o que mais temo é pelo meu filho mais novo, nem tanto por mim, mas como ele vai ficar. Esses relatos evidenciam o medo diante da possibilidade da morte. A mudança do lugar de se morrer também trouxe algumas questões para a equipe cuidadora. Quando o hospital passa a ser a instituição por excelência dos cuidados, e quando esta possui tanta tecnologia a ponto de ir até as últimas tentativas para salvar o doente, os médicos, enfermeiros, técnicos e toda a equipe passam mais tempo com esse paciente do que acontecia em outros momentos da história, propiciando a criação de certo vínculo. Isso pode ser observado no CTI, em clínicas oncológicas e outras, onde o paciente permanece durante um espaço de tempo maior. Em entrevista realizada com uma profissional da enfermagem de uma clínica oncológica, ela relatou que se cria um elo de confiança entre o paciente e os

8 enfermeiros. Os pacientes passam um período de tempo enorme na sala de quimioterapia, condição que propicia o aumento do vínculo. A gente participa não só do câncer, mas da história de vida toda. Relatou ainda que a morte dos pacientes é uma situação muito difícil, mas que é preciso aprender a lidar com ela. Tem um paciente que temo perdê-lo, vou sentir muito. A possibilidade da morte numa instituição hospitalar faz com que não apenas a angústia do paciente e da família possa emergir, mas também a de toda a equipe cuidadora. Os profissionais de saúde relatam sobre o apego aos pacientes que cuidam; em geral dizem que sofrem um baque quando eles falecem. De acordo com Amarante (2005), com frequência se vê a dificuldade em lidar com a angústia e o mal-estar proveniente também da incompletude e do não saber de tudo. Ainda se ostenta o poder e o saber como totalidade e domínio. Apesar de todo o avanço tecnológico na área da saúde, para a morte não há remédio; ela continua desafiando o saber e o poder médico e do homem de maneira geral. Há como conter e aplacar muitas situações numa instituição hospitalar, mas não a morte. A morte vem mostrar que o saber é não todo e o homem não tem poder sobre tudo; vem desvelar a incompletude e finitude do humano. Existem muitas coisas das quais o homem não tem domínio, mas nenhuma delas é tão real quanto a morte. A morte é o puro Real. O Real é, segundo Jaques Lacan, da ordem do impossível. É aquilo que não cessa de não se inscrever e, por isso mesmo, volta sempre ao mesmo lugar. O real é o traumático, o inusitado. Volta ao mesmo lugar como fantasma para ser exorcizado pela palavra. Nós também voltamos ao mesmo lugar do espanto à procura do elo perdido na história, elo que torne compreensível o que nunca será. (Lacan, apud Leal, 2000, p. 99)

9 O Real é inominável, angustiante e se torna impossível de lidar sem as palavras, ou seja, sem simbolização. Como criar um espaço de elaboração da dor do paciente, da família e da equipe, se a morte é um tabu? Certa vez ouvi de uma técnica em enfermagem de uma clínica oncológica a seguinte expressão: é um complicador, se referindo à morte dos pacientes e aos cuidados com aqueles que estão em um estado terminal. Chamou-me a atenção o significante utilizado por ela. COMPLICA A DOR. De qual dor esta técnica estava falando? Que dor se torna complicada nesse momento? A dor de quem? Do paciente? Do cuidador? E de que forma esses profissionais precisam se implicar diante de tanta dor? Aquele que cuida da dor sente diretamente a complicação da dor, do paciente e da sua, consciente ou inconscientemente, e ainda assim precisa se implicar diante da dor. A primeira implicação que aparece é quanto aos cuidados de ordem técnica, dos quais não se pode fugir. Nesse momento e em tantos outros, a dor do outro o sensibiliza. Convém que nos empenhemos na formação do analista. Diferente de outras especialidades, para se tornar analista é preciso ter passado pelo processo de sua análise. Lacan já dizia que o que se tem no final de uma análise é um analista, ressaltando, assim, a importância da necessidade do cuidado consigo mesmo. É preciso cuidar de sua própria dor, já que o analista é aquele que paga com o próprio corpo. (LACAN, 1958, p. 593) Assim sendo, faz parte da formação do analista o cuidado de si. É quase impossível tratar da dor psíquica do outro sem ter cuidado da sua dor. Contudo, a formação dos médicos, enfermeiros, técnicos, farmacêuticos e outros profissionais da

10 área de saúde se dá de outra maneira, na qual estes são preparados para tratar e cuidar de questões biológicas. Não que isso seja ruim; pelo contrário, é isso que é esperado do discurso da ciência: respostas e resolutividade. No entanto, não podemos dissociar das respostas da ciência a dimensão simbólica: esses profissionais também se angustiam diante de tanto sofrimento. No trabalho em hospitais ou em instituições de saúde de modo geral, é nítida a maneira como o sofrimento, a fragilidade e a limitação do outro tocam na equipe. Quando um profissional de enfermagem chega a dizer que às vezes a história dos pacientes toca na história dele, cabe refletir qual assistência poderia ser dispensada a estes profissionais. Que cuidados podem ser dispensados aos profissionais da saúde? Como acolher a dor psíquica do cuidador? Todas essas referências podem contribuir para modificar nossa concepção das relações entre os profissionais da saúde, o saber e sua insuficiência. Em nossos dias ainda nos servimos de um aparelho conceitual separando as pessoas, o impacto da natureza sobre elas e o conhecimento que advém das ciências. Basta dispensarmos um tempo de escuta para os profissionais que assistem à saúde e veremos como essa cisão ocorre. A história do homem é a historia das sociedades e a representação da morte sofreu várias modificações no curso dos tempos. Mudaram os lugares de morrer, mudaram os ritos de passagem, a ciência avançou em muitas áreas e a busca de ideais se propagam. Parece ser o tema da morte aquele que não cessa de não se escrever; talvez por isso mesmo convoque tantas palavras. Palavras que lavram. Palavras que lavam. Palavras que matam.

11 Matam o REAL. Inominável. Angustiante. Impossível Lidar sem as palavras. Simbolização! Simbólico que gera ação. Ação de saída, Ação de virada, Ação de travessia. Mudança de posição: Oposição. Oposição ao Outro. Outro da formação, Outro da constituição, Outro da identificação, Que em algum momento precisa se tornar O Outro da Oposição E não da imposição. Retificação! Implicação. Uma palavra, Um ato. Uma palavra em forma de ATO. Ato analítico. Interrogação.

12 Interpretação. Pontuação. O que estava posto, Pronto, Construído. VACILA. Reconstrução! Sinto mal, diz o sujeito. Quem não se sente mal? Mal, bem. Opostos que só existem na nossa Alienação, que separa. Separação que faz sintoma. Sintoma que nos faz sujeitos. Sujeito de Simbolização, de Palavras. Sujeito de AÇÃO. (Adinélvia Barbosa Mariano, 2010) Nas palavras de Antônio Godino Cabas (1997), o homem é um ser desaparelhado face ao real. O aparelho de que dispõe, a linguagem, é precário. (Cabas, 1997, apud Freire, 1997) Talvez por isso as pessoas ficam tão angustiadas diante da morte. As palavras não bastam, porque elas meio dizem. Surge, assim, a necessidade de se utilizar tantas palavras, na esperança de cobrir o real.

13 BIBLIOGRAFIA AMARANTE, Cláudia. Psicanálise e Ciência, Psicanálise no hospital: ainda uma questão de hospitalidade? IN: MOURA, Marisa Decat de (org.). Psicanálise e Hospital 4. Novas versões do pai: reprodução assistida e UTI. Belo Horizonte: Autêntica/FCH- FUMEC, 2005. ARIÈS, Philippe. Sobre a História da Morte no Ocidente desde a Idade Média. Lisboa: Teorema, 1989. CORRÊA, José de Anchieta. Morte. São Paulo: Globo, 2008. FREIRE, Ana Beatriz. Por que os planetas não falam? Rio de Janeiro: Revinter, 1997. LACAN, Jacques. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. LEAL, Glória. Poesia: o real e o simbólico. Revista Brasileira, de Comunicação, Arte e Educação, v. 2, n 6, p. 99 106, jan./mar., 2000.