O desenvolvimento histórico da "música instrumental", o jazz brasileiro



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Transcrição:

O desenvolvimento histórico da "música instrumental", o jazz brasileiro Marina Beraldo Bastos Iniciação Científica / PROBIC UDESC e-mail: marinaberaldo@gmail.com web: www.ceart.udesc.br Acácio Tadeu de Camargo Piedade Orientador UDESC e-mail: acaciopiedade@gmail.com web: www.ceart.udesc.br Sumário: Este texto trata da chamada música instrumental, que é conhecida internacionalmente como jazz brasileiro. Inicialmente, o objetivo é discutir esta designação ambígua, música instrumental. Trataremos, então, das oposições cantor/instrumentista e letra/música neste gênero musical. Procuraremos mostrar as relações entre a música instrumental, a música popular brasileira (MPB) e o jazz norte-americano. Este artigo procura traçar um esboço do desenvolvimento histórico da música instrumental a partir de suas fronteiras com outros gêneros, para então localizar no período da bossa nova a gênese deste gênero musical. Palavras-Chave: música instrumental; jazz brasileiro; música popular; choro. Introdução Este artigo é sobre a chamada música instrumental, ou seja, a música popular instrumental brasileira. Chamada de instrumental brasileiro ou música instrumental pelos músicos e apreciadores, este gênero da música popular brasileira, além de ser instrumental, tem como característica fundamental uma tensão com o jazz norte-americano e uma tensão com a MPB, conforme os estudos de Piedade (1997, 1999, 2003, 2005). A música instrumental é também conhecida como jazz brasileiro, principalmente no cenário internacional, e doravante será referida pela sigla MI. Neste artigo, inicialmente comentaremos a tensão entre MI e MPB, que envolve a dicotomia música/letra, elementos importantes na compreensão da MI. Em seguida, este artigo traça um esboço do desenvolvimento histórico da MI. A voz, a canção e a música instrumental: MI vs. MPB O termo música instrumental aponta para uma música tocada exclusivamente por instrumentos, ou seja, sem texto ou letra. Esta parece ser uma identidade básica da MI, porém há comentários a se fazer. Primeiramente, o fato desta música ser instrumental não exclui o uso do canto, mas apenas da letra. A voz não está fora da MI justamente porque ela é ali utilizada como um instrumento: no circuito da música instrumental há diversos trabalhos com voz, como no disco Mundo Verde Esperança, de Hermeto Pascoal (Pascoal, 2002) e Meu Brasil, de Teco Cardoso (Cardoso, 1997). A voz na MI exerce um papel diferente do que na MPB, onde existe uma distinção clara entre o cantor e os instrumentistas. Isto envolve uma questão de hierarquia que denuncia um aspecto da tensão entre a MI e a MPB: a posição superior em que se encontra o cantor em relação aos instrumentistas que o acompanham. Esta proeminência do cantor parece incomodar os instrumentistas, na medida em que é ele que ganha mais visibilidade e popularidade. Haveria, na MI, uma tentativa de diluir esta hierarquia? Ou ela migra, ali, para a dicotomia instrumentos melódicos/instrumentos harmônicos, ou instrumentistas solistas/instrumentistas de base? Isto - 931 -

seria mais plausível, pois não é possível um igualitarismo completo em música, onde é constante o jogo entre frente e fundo, significado literal e profundo. O esforço de retirar o peso da hierarquia cantor/instrumentista está muito presente na consagração do termo música instrumental, que aponta inicialmente para a exclusão do canto. Porém, como vimos, na MI a voz aparece como um outro instrumento, dobrando a melodia ou fazendo contracantos, o que parece deixar o canto no mesmo patamar hierárquico que os outros instrumentos. Aparentemente, a diferença marcante entre a MPB e a MI está na ausência de letra, ou seja, na exclusão da canção. Paradoxalmente, há cantores e cantoras que são tidos como artistas da MI, como Joyce e Dori Caymmi. Apesar de comporem e cantarem canções, estes artistas vivem imersos muito mais no universo da MI do que no da MPB. No caso de grande parte das composições e interpretações de Toninho Horta, por exemplo, podemos dizer que a voz está bastante presente. Estes artistas transitam no mundo da canção, mas mantêm um lastro indelével de pertencimento à MI: dentre tais marcas, podemos ressaltar o destaque dos músicos acompanhantes e suas improvisações, a concepção harmônico-melódica das canções, os arranjos que empregam técnicas e formas jazzísticas, etc. Portanto, mesmo na instrumentalidade da MI é possível o uso da voz, ainda que quase sempre como uma parte instrumental, mas também ocorrendo que uma canção (com letra, evidentemente) seja entendida como uma peça musical na concepção da MI. Apesar destas exceções, o que parece estar em jogo aqui é que a presença de letra dá à música uma condição de significação muito mais direta do que no caso da MI: o significado (imediato assinalado na letra) é um privilégio da MPB que a MI parece procurar afastar, como se constituísse uma ameaça à sua pureza instrumental, cujo processo de significação seria necessariamente autônomo em relação ao verbal. Ou talvez porque, havendo letra, instaura-se uma gestalt hierárquica que coloca os instrumentistas em segundo plano, na condição de acompanhantes, na qual se sentem inferiorizados. Por outro lado, é comum que músicos instrumentistas nem considerem alguns cantores como músicos, isto por não dominarem a linguagem musical formal, as partes da música, a harmonia, as convenções, etc. Estes são alguns aspectos da relação MI/MPB, sendo que há muitos outros que não serão desenvolvidos aqui. Note-se que muito do que foi dito pode valer para outros repertórios instrumentais, o que valeria ser investigado. Passaremos agora para uma outra forma de compreender a MI, que é um esboço de sua formação histórica e sua relação especial com o mundo do choro. O desenvolvimento histórico da música instrumental Vamos tratar de alguns aspectos do início da música popular brasileira (sécs. XVIII e XIX). Em especial, vamos salientar alguns pontos sobre os repertórios instrumentais. Segundo Kiefer (1986), é ponto pacífico entre os musicólogos que a modinha e o lundu são as raízes principais da música popular brasileira. Seguindo este pensamento, apresentaremos algumas considerações sobre estes dois gêneros musicais. Segundo Mozart de Araújo (1963, apud Kiefer, 1986) a modinha brasileira teria uma característica rítmica acentuada que lhe é vital, característica compartilhada pela maior parte da música popular urbana do Brasil. É claro que a modinha não é música instrumental, porém seu lirismo melancólico constitui uma importante faceta da musicalidade brasileira que se faz presente no choro e na MI, aparecendo ali claramente em temas e improvisos. Para Oneyda Alvarenga (1950), o lundu deu à música brasileira características musicológicas importantes, como a sistematização da síncope e o emprego da sétima abaixada, ou seja, acordes de sétima menor. O lundu-dança foi desembocar, juntamente com elementos de outras danças, no maxixe, gênero que foi expoente máximo da dança urbana brasileira. Vindo das gafieiras, o maxixe era uma dança marcada pela corporalidade africana. O ápice do maxixe se deu na segunda década do século XIX, continuando depois com menos peso até ficar praticamente desaparecido a partir da chegada do fox-trot no Brasil e, depois, com o surgimento do - 932 -

samba. O conceito de maxixe chegou a se confundir com o de samba, aparecendo em composições como Pelo telefone (Moura 1983), de Donga e Mauro de Almeida. Passaremos agora para o choro, que constitui um gênero instrumental da música brasileira que se prolonga até o presente momento. Segundo Oliveira, a origem do choro está na nova classe formada no Rio de Janeiro a partir da segunda metade do século XIX, que ele chama de pequenos burgueses. Nesta época eram comuns, principalmente na capital do império, os chamados grupos de pau e corda, constituídos por violão, cavaquinho e flauta. No final do século XIX, o trio mais conhecido era O Choro Carioca, do qual Antônio da Silva Callado fazia parte. Callado foi um dos muitos flautistas virtuoses da sua época (Diniz, 2002) e contribuiu com o seu grupo no abrasileiramento da polca e na afirmação do choro como gênero musical (Oliveira, 2000). Em termos formais, o choro tem normalmente três partes e se caracteriza por ser necessariamente modulante. Um tipo de forma rondó, sendo característica a competição e a improvisação. Um aspecto comum entre o jazz e o choro é, sem dúvida, a improvisação generalizada e o caráter de interação entre os músicos na performance. Na música instrumental, a forma do improviso está diretamente ligada à do jazz. O improviso no choro deve ser entendido como uma variação da melodia do tema principal. No jazz, o improviso é muito mais a criação de novas melodias em cima de uma harmonia fixa (cf. Oliveira, 2000). De fato, no choro o solista improvisador toca a melodia com liberdade para interpretá-la, floreá-la, variá-la, mantendo seus traços temáticos sempre claros. Podese dizer que o solista, assim como o acompanhamento de base, especialmente as linhas de baixo, estão improvisando (variando) durante a música inteira. Atualmente, temos notado choros com improvisos em seções do tipo chorus, ou seja, o foco no improviso de um músico solista sobre a base harmônico-polifônica do tema. Este tipo de improviso com chorus é provavelmente uma influência do jazz no choro. Um exemplo de grande improvisador de choro é Pixinguinha, que ainda adolescente era conhecido como grande improvisador. Pixinguinha foi um grande instrumentista, arranjador e compositor. Segundo Cabral (1978), houve um momento em que Pixinguinha trocou a flauta pelo sax: foi aí que, tocando com o flautista Benedito Lacerda e desprovido da condição de solista, passou a compor e improvisar contracantos. Falar de Pixinguinha é falar dos chamados Oito Batutas. Surgido em 1919, este grupo possuía em seu repertório músicas instrumentais e cantadas. Em 1922, são convidados para ir a Paris, ali ficando em torno de seis meses, em contato com o jazz do cenário francês dos anos 20. Quando voltaram foram acusados de terem sofrido influência das jazz bands. De fato, o saxofone entrou para o mundo do choro com a volta de Pixinguinha, que trouxe um sax de Paris e neste mundo ele foi incorporado de modo impressionante. Os Batutas voltaram ao Brasil com algumas novidades: uma delas, bem marcante, é que, ao invés de percussão, os Oito Batutas agora tinham também uma bateria. O grupo passou, então, a se chamar Bi-orquestra Os Batutas, com bateria e trombone. Seria ao mesmo tempo um grupo de choro e uma jazz band. De fato, a idéia de jazz band, ao menos para o jazz francês do início do século XX, estava ligada à formação instrumental de banda de sopros com piano e bateria. As jazz bands brasileiras tocavam marchas, emboladas, maxixes, choros e músicas latino e norte-americanas com uma linguagem de orquestração de jazz. Por volta de 1933, foi criada a Orquestra Tabajara, que em 1936 passa a contar com a regência de Severino Araújo. Severino escrevia arranjos de peças do repertório de música popular brasileira conforme a linguagem americana de orquestração de jazz. A tradição de orquestras do tipo jazz band não foi abandonada, continuando viva no âmbito da música instrumental brasileira. Um exemplo é a Banda Savana, liderada pelo maestro Laércio de Freitas. Outro exemplo é a Banda Mantiqueira, banda que atua ainda hoje, liderada pelo compositor, arranjador e instrumentista Nailor Azevedo, apelidado Proveta. Nota-se que Proveta é um ótimo - 933 -

arranjador e improvisador, e seu nome circula no âmbito da música instrumental como um de seus mais importantes expoentes, apesar de pouca projeção internacional, se comparada com a de Hermeto Pascoal ou Egberto Gismonti. Segundo Nelson Ayres (1996), referindo-se à banda Mantiqueira, os arranjos e a interpretação usam todas as técnicas da história das big bands, mas tem os pés firmemente fincados nos coretos do interior onde muitos dos músicos tocaram em público pela primeira vez. E cada solista abandona o caminho fácil de ser apenas mais um imitador dos grandes jazzistas para procurar sua própria verdade. Este testemunho é bastante significativo para a compreensão da música instrumental enquanto gênero musical pleno, independente do jazz (ver Piedade, 2003). Além da concepção de arranjo na música destas orquestras, músicos importantes como Radamés Gnatalli, Garoto, Laurindo Almeida e Paulo Moura também se influenciaram pelo jazz. Neste período das grandes orquestras instrumentais, entre as décadas de 50 e 70, ocorreu um momento de obscurecimento do choro: foi uma época em que praticamente não havia jovens tocando este gênero. O sucesso das bandas de dança e o surgimento e esplendor da bossa nova marcaram o período. Muitos chorões migraram do choro para as jazz bands e para grupos de bossa nova. O choro, entretanto, nunca deixou de existir: com o sucesso do grupo Novos Baianos, na década de 70, volta o interesse pelo choro (Cazes, 1998). Foi nesta época que começaram a surgir grupos de choro formados por jovens, sendo o mais importante chorão desta geração de 70 o violonista Rafael Rabello (cf. Cazes, 1998). Atualmente, o choro parece ter duas escolas: uma mais conservadora e outra mais jazzística (Oliveira, 2000). Talvez não sejam propriamente duas escolas, mas duas tendências que dialogam entre si. Na tendência mais conservadora, os improvisos mantêm-se como variações da melodia (para o solista), acontecendo durante a música inteira (para todos os músicos). Na tendência mais jazzística, as harmonias ganham tensões características do jazz e os improvisos muitas vezes nada têm a ver com o tema melódico, mas a harmonia se mantém, como na idéia de chorus. Há muitos músicos, atualmente, que tocam choro mas não são entendidos como chorões. Estes são aqueles mais tradicionais defensores de um afastamento crítico em relação ao jazz. Parece haver, no pensamento dos chorões, o temor da perda da autenticidade do choro, conquistada por décadas de dedicação. Pode-se dizer que a linha que separa o choro e a MI é muito tênue no caso dos grupos de tendência jazzística. Em termos da estrutura formal, a forma de improvisar é um demarcador importante entre choro e MI: enquanto o primeiro é calcado em princípios de variação, o segundo segue o modelo de criação e articulação de frases-padrão em estrutura do tipo chorus. Assim, a MI se mantém como MI, mesmo quando se toca choro. Estas duas tendências do choro atual não são separadas com tanta clareza. Existem intersecções e trocas entre as duas categorias. A bossa nova surgiu nos anos 50, na zona sul do Rio de Janeiro. Ali, cantores, instrumentistas e compositores amantes do jazz americano, da música brasileira e da música erudita se reuniram e criaram este gênero que viria a influenciar a música mundial (Castro, 1990). Esta triangulação está expressa por Scarabelot (2004) na divisão da bossa nova em três pilares: João Gilberto com seus sambas peculiares, Tom Jobim com sua experiência erudita e jazzistas de Copacabana. Nos anos 60, com Laurindo de Almeida, Charlie Byrd e Stan Getz, a bossa nova é apresentada ao público norte americano. Foi nesta época que o jazz começou a incorporar elementos da bossa nova, assim como nos anos 40 incorporou elementos da música cubana. Se o samba e a música de Carmem Miranda representavam para os americanos a criatividade exótica, a bossa nova penetrou intensamente na cultura americana, mas pela inovação na mescla de refinadas harmonias, espírito cool e batida rítmica típica (Scarabelot, 2004). Embora a influência do cool jazz na bossa nova seja reconhecida pelos próprios bossa-novistas, as raízes da bossa nova podem estar muito mais fortemente estabelecidas na própria música brasileira, na dimensão dos arranjos (ver Pinheiro, 1992) e mesmo na melódica das modinhas (Bastos, 1996). Ao mesmo tempo em que a bossa nova se tornava conhecida no mundo, toda uma geração de instrumentistas influenciados pelo jazz se envolvia com este gênero no Brasil. Estes - 934 -

instrumentistas formaram grupos que tocavam um repertório de bossa nova e jazz instrumental, sendo que muitos eram na formação clássica jazzística de trio (piano, contrabaixo e bateria), como o Tamba Trio, Zimbo Trio, Milton Banana Trio, Jongo Trio, Bossa Três, Sambalanço, e outras formações, como o Quarteto Novo (de Hermeto Pascoal), samba-jazz e os Copa 5. Para Piedade (1997, 1999, 2003) é neste universo instrumental da bossa nova que surge a MI. O jazz brasileiro cresce apoiando-se, portanto, menos no choro e mais na bossa nova, aí destacando o encontro entre a bossa e o jazz norte-americano. O encontro real entre Stan Getz e João Gilberto simboliza um diálogo entre as musicalidades da bossa nova e do jazz norte americano que é, para este autor, uma característica fundamental da música instrumental brasileira. Assim, chegamos ao momento no qual o esboço da história da música instrumental brasileira está traçado, da modinha à bossa nova. A partir daí, o gênero se consagrou pouco a pouco. De início, através de músicos brasileiros que moravam nos Estados Unidos, como Airto Moreira, Eumir Deodato, Flora Purim, Oscar Castro Neves, entre outros. Através da atuação destes músicos e dos expoentes da bossa nova, elementos da música brasileira foram incorporados à música norteamericana, daí se difundindo para o mundo. E, especialmente no caso do jazz, estas leituras e apropriações acabaram voltando para fertilizar a música instrumental brasileira, no movimento reflexivo entre duas musicalidades globais. A partir dos anos 80, o jazz brasileiro entra no circuito internacional de festivais de jazz (por exemplo, o de Montreux). A partir deste momento, as obras de Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti têm sido muito importantes para a formação da MI como um gênero pleno, com termos temáticos, estruturais e estilísticos relativamente estáveis. Com a maturidade do jazz brasileiro nos anos 80, os anos 90 representaram um período de impressionante crescimento e vigor. Atualmente, a produção da MI gira em torno de gravadoras que são, na maioria das vezes, administradas pelos próprios músicos (por ex. Núcleo Contemporâneo, Maritaca, entre outras). Ou seja, a MI continua inscrita em um circuito alternativo, havendo um mercado restrito para o gênero no Brasil. Comentário final Com os subsídios até aqui obtidos, acreditamos que seria importante investigar mais a fundo a MI, principalmente no que toca à profundidade antropológica de todas estas facetas da música brasileira. Neste artigo, pretendemos focalizar, inicialmente, uma característica da música instrumental brasileira que se relaciona justamente com o fato de ser uma música instrumental e, portanto, que exclui a letra e o cantor, sendo que procuramos destacar as questões da hierarquia e da ambigüidade destes fatores. Em seguida, o artigo apresentou um breve panorama histórico da MI, especialmente em contraste com a história do choro. Ao mesmo tempo, justamente com estes nexos sócio-culturais e históricos em mãos, a análise musical propriamente dita de peças do repertório da MI poderá consolidar uma musicologia deste importante gênero da música brasileira, e revelar toda a sua riqueza e interesse. Referências Bibliográficas Alvarenga, Oneyda (1950). Música Popular Brasileira. Porto Alegre: Ed. Globo. Ayres, Nelson (1996). Texto de encarte de CD. MANTIQUEIRA, Banda. Aldeia. São Paulo: Pau Brasil PB 003. Bastos, Rafael José de Menezes (1996). A origem do samba como invenção do Brasil (Por que as canções têm música?). Revista Brasileira de Ciências Sociais, 31: 156-177. Cabral, Sérgio (1978). Pixinguinha: Vida e obra. Rio de Janeiro: Edição FUNARTE. Castro, Ruy (1990). Chega de Saudade: a história e as histórias da bossa nova. São Paulo: Companhia das Letras. - 935 -

Cazes, Henrique (1998). Choro: do quintal ao municipal. São Paulo: Editora 34. Diniz, André (2002). Joaquim Callado, o Pai dos Chorões. Rio de Janeiro: Arte-Fato Produto Cultural. Kiefer, Bruno (1986). A modinha e o lundu. Porto Alegre: Editora Movimento. Moura, Roberto (1983). Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Funarte. Oliveira, Samuel (2000). Choro: um estudo histórico e musicológico. Trabalho de Conclusão do Curso de Música. Florianópolis: UDESC. Piedade, Acácio Tadeu de Camargo (1997). Música Instrumental Brasileira e Fricção de Musicalidades. Antropologia em Primeira Mão. Número 21. Florianópolis: PPGAS/UFSC.. (1999). Música Instrumental Brasileira e Fricção de Musicalidades. In Rodrigo Torres (ed.) Música Popular en América Latina: Actas del IIo. Congresso Latinoamericano del IASPM. Santiago de Chile: FONDART, pp. 383-398.. (2003). Brazilian Jazz and Friction of Musicalities. In Jazz Planet, E. Taylor Atkins (ed.). Jackson: University Press of Mississipi, p. 41-58.. (2005). Jazz, música brasileira e fricção de musicalidades. Anais do XV Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM). Rio de Janeiro: UFRJ. Pinheiro, Luis Roberto M. (1992). Ruptura e continuidade na MPB: a questão da linha evolutiva. Dissertação de mestrado em Antropologia Social. Florianópolis: PPGAS/UFSC. Scarabelot, André Luis (2004). Música brasileira e jazz o outro lado da história. Entrevistas com músicos jazzistas. Anais do V Congresso da Seção Latino Americana da Associação Internacional para o Estudo da Música Popular- IASPM-LA. Rio de Janeiro. Referências discográficas Cardoso, Teco (1997). Meu Brasil. Núcleo Contemporâneo NC 003. São Paulo, Brasil. Pascoal, Hermeto Pascoal e Grupo (2002). Mundo Verde Esperança. Rob Digital RM014. Rio de Janeiro, Brasil. - 936 -