DIREITO PENAL DO INIMIGO E A RELATIVIZAÇÃO DE DIREITOS E GARANTIAS



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Transcrição:

DIREITO PENAL DO INIMIGO E A RELATIVIZAÇÃO DE DIREITOS E GARANTIAS MARIOZI, Leonardo Faculdade de Ciências Sociais e Agrárias de Itapeva - FAIT RESUMO Análise crítica da teoria do Direito Penal do Inimigo, desenvolvida pelo filósofo alemão Günther Jakobs a partir da observação do fenômeno da expansão do direito penal na atual sociedade de riscos. Através do delineamento de seus traços característicos, pretende-se demonstrar a incompatibilidade do modelo de política criminal descrito e defendido por Jakobs frente aos princípios constitucionais penais erigidos. Paralelamente, procura-se demonstrar a importância do debate acerca da adoção de uma política criminal coerente, que concilie medidas de redução da criminalidade e o respeito às garantias constitucionais. Palavras-chave: DIREITO PENAL DO INIMIGO CARACTERÍSTICAS DO DIREITO PENAL DO INIMIGO POLÍTICA CRIMINAL. ABSTRACT Critical analysis about the Enemy Criminal Law developed by the German philosophes Günther Jakobs from the visualization of the phenomenon of expansion of criminal law in nowadays risks society. Through the delineation of its characteristically traces, intended to demonstrate the incompatibility of the criminal policy model described and defended by Jakobs against the established criminal constitutional principles. Besides, it seeks to show the importance of the debate about the adoption of a rational criminal policy, that conciliates criminality reduction means and the respect to the constitutional guarantees. Key-words: ENEMY CRIMINAL LAW ENEMY CRIMINAL LAW CHARACTERISTICS CRIMINAL POLICY. 1. INTRODUÇÃO O objeto do presente trabalho é demonstrar a incompatibilidade dogmática entre a teoria de JAKOBS, eminentemente antigarantista, e os princípios e garantias penais do Estado de Direito brasileiro. Muito embora existam legislações penais com fortes traços do modelo de política criminal proposto por JAKOBS inseridas no ordenamento jurídico brasileiro, não houve qualquer reação contrária por parte da opinião pública. Na verdade, ao que parece, o recrudescimento no trato ao criminoso tem sido aplaudido e, de certo modo, exigido pela sociedade civil. Por outro lado, não existem provas de que a mitigação ou supressão de garantias penais e processuais são medidas suficientes para impedir a atual escalada criminosa.

2. O EMBATE ENTRE A TEORIA DE GÛNTHER JAKOBS E OS PRINCÍPIOS E GARANTIAS PENAIS A teoria do Direito Penal do Inimigo, cunhada pelo filósofo alemão Günther Jakobs, remonta do ano de 1985, mas a discussão a respeito de sua legitimação se acalorou após os ataques terroristas sofridos pelos Estados Unidos da América em 11 de setembro de 2001. A necessária legitimação de determinadas medidas antigarantistas adotadas por alguns Estados, no intuito de eliminar riscos, explica o ressurgimento do debate, que há algum tempo encontrava-se à margem das discussões doutrinárias. A pesquisa de JAKOBS identifica características antigarantistas comuns entre as legislações da chamada expansão do direito penal, fenômeno descrito com brilhantismo por Jesús-María Silva Sanches na obra homônima. SANCHÉS também constata a incidência de legislações adeptas ao modelo político-criminal descrito por JAKOBS, no entanto, em sua obra refere-se a ele sob a denominação de Terceira Velocidade do Direito Penal, no qual, em suas palavras, o direito penal da pena de prisão concorre com uma ampla relativização de garantias politico-criminais, regras de imputação e critérios processuais (SANCHÉS, 2002, p. 148). Conferindo legitimidade a tais legislações JAKOBS diz que o Estado tem direito a procurar segurança frente a indivíduos que reincidem persistentemente na comissão de delitos (JAKOBS; MELIÁ, 2009, p. 28). A esses indivíduos JAKOBS confere o rótulo de inimigos. A partir disso, JAKOBS defende a existência de dois modelos de política criminal vigendo simultaneamente, um tutelando bens jurídicos frente à criminalidade comum, até certo ponto tolerável por não representar elevado risco à ordem jurídica e social, e outro buscando a eliminação do risco representado pelo inimigo do Estado. O Direito Penal do cidadão é Direito também no que se refere ao criminoso. Este segue sendo pessoa. Mas o Direito Penal do inimigo é Direito em outro sentido (JAKOBS; MELIÁ, 2009, p. 28). Em outras palavras, JAKOBS constata e legitima a existência de dois direitos penais contemporâneos: o direito penal do cidadão, que visa manter a vigência da norma, e o direito penal do inimigo, que visa combater perigos. O direito penal conhece dois polos ou tendências em suas regulações. Por um lado, o tratamento com o cidadão, esperando-se que exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro lado, o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio, a quem se combate por sua periculosidade (JAKOBS; MELIÁ, 2009, p. 36).

Dentre os pontos característicos do modelo de política criminal exposto, JAKOBS descreve o adiantamento da punibilidade como medida necessária à neutralização de riscos visada pelas legislações contemporâneas. Nas palavras de Paulo Queiroz, por essa razão o direito penal do cidadão deve se ocupar, como regra, de condutas consumadas ou tentadas [direito penal do dano], ao passo que o direito penal do inimigo deve antecipar a tutela penal, para punir atos preparatórios (QUEIROZ, 2008, p. 46). Luis Gracia Martin descreve o paradoxo entre os modelos de direito penal do cidadão e do inimigo da seguinte forma: El Derecho penal de enemigos optimiza la protección de bienes jurídicos, [mientras que] el Derecho penal de ciudadanos optimiza las esferas de libertad (GRACIA MARTÍN, 2005, p. 8). à pena. O modelo político-criminal descrito por JAKOBS obviamente defende fins peculiares QUEIROZ explica que, para o autor alemão, a pena é concebida positivamente, tendo por finalidade a manutenção da norma enquanto modelo de orientação de condutas para os contratos sociais, não lhe competindo a proteção de bens jurídicos, mas a proteção de funções sistêmicas porque o fim do direito penal é a prevenção geral positiva mediante o exercício do reconhecimento da norma (QUEIROZ, 2008, p. 45). Do exposto até aqui, vislumbra-se que o modelo de política criminal discutido possui fortes traços autoritários. O adiantamento da punibilidade e o abandono da prevenção especial positiva, que representa a ideia de ressocialização do delinquente, são apenas duas de suas características que, por si só, seriam suficientes para demonstrar a inadequação da teoria à ordem constitucional brasileira. Tais características, no entanto, se sustentam em outro importante dogma da teoria, que representa afronta ainda maior à dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado brasileiro nos termos do art. 1º, III, da Constituição Federal. JAKOBS baseia-se em algumas circunstâncias de caráter pessoal para diferenciar o criminoso comum daquele denominado inimigo do Estado. A partir de tal distinção as legislações descritas em sua teoria se aplicam e este tipo de delinquente. No entanto, a principal implicação de tal distinção é a negação da condição de pessoa ao rotulado inimigo do Estado. Quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo, como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas (JAKOBS; MELIÁ, 2009, p. 40). Diz-se, assim, que o direito penal do inimigo é um modelo de política criminal pautado na pessoa do delinquente, e não no fato ocorrido, o que a doutrina convencionar chamar de direito penal do autor. Sobre o assunto, Luiz Flávio Gomes afirma que o que Jakobs denomina de Direito penal do inimigo, como bem sublinhou Cancio Meliá, é nada mais que um exemplo de

Direito penal do autor, que pune o sujeito pelo que ele é, e faz oposição do Direito penal do fato, que pune o agente pelo que ele fez (GOMES, 2004). Por outro lado, Eugenio Raúl Zaffaroni leciona que o Direito Penal do autor não proíbe o ato em si, mas o ato como manifestação de uma forma de ser do infrator. O ato teria valor de sintoma de personalidade: o proibido e reprovável ou perigoso seria a personalidade e não, o ato. Dentro desta concepção não se condena tanto o furto como o ser ladrão, não se condena tanto o homicídio como o ser homicida, o estupro como o ser delinquente sexual etc (ZAFFARONI, apud MORAES, 2009, p. 216). Para JAKOBS, inimigo é quem por princípio se conduz de modo desviado e, por não oferecer garantia de um comportamento pessoal, não pode ser tratado como cidadão, mas deve ser combatido (JAKOBS; MELIÁ, 2009, p. 47). Ainda em sua concepção, o inimigo é um indivíduo que, não apenas de maneira incidental, em seu comportamento [criminoso grave] ou em sua ocupação profissional [criminosa e grave] ou, principalmente, por meio de vinculação a uma organização [criminosa], vale dizer, em qualquer caso de forma presumivelmente permanente, abandonou o direito e, por conseguinte, não garante o mínimo de segurança cognitiva do comportamento pessoal e o manifesta por meio de sua conduta (JAKOBS, 2003, p. 57 apud MORAES, 2009, p. 194). Em suma, o inimigo não é assim rotulado em razão do ato cometido, pois este em nada difere de outros cometidos por delinquentes comuns. JAKOBS leva em consideração o aparente abandono permanente da submissão às regras de convivência em sociedade, representado pela forma habitual, profissional, ou por meio da vinculação a uma organização criminosa com que o inimigo o comete. Segundo a teoria, a antecipação da punibilidade se justifica pela necessidade de neutralizar aquele criminoso que representa constante perigo à sociedade o inimigo, bem como garantir ao cidadão suficiente segurança cognitiva de que todos os demais indivíduos irão se comportar de acordo com a norma, sem infringi-la. JAKOBS expõe e legitima ainda a necessidade de imposição de tratamento mais severo aos inimigos, com a aplicação de penas ou medidas de segurança desproporcionalmente elevadas. Tal desproporcionalidade se verifica por dois aspectos, quais sejam, a não redução da pena aplicada pela prática de atos preparatórios, em relação aos delitos consumados, e o agravamento da pena em razão não do fato praticado, mas levando em consideração a pessoa do autor, por ser ele criminoso habitual ou à ligado a organização criminosa. Una segunda característica del Derecho penal del enemigo sería la desproporcionalidad de las penas, la cual tendría una doble manifestación. Por una parte, la punibilidad de actos

preparatorios no iría acompañada de ninguna reducción de la pena con respecto a la fijada para los hechos consumados o intentados en relación con los cuales se valora como peligroso el hecho preparatorio realizado en el ámbito previo. Por otra parte, la circunstancia específica de pertenencia del autor a una organización es tomada en cuenta para establecer agravaciones considerables y, en principio, desproporcionadas, de las penas correspondientes a los hechos delictivos concretos que realicen los individuos en el ejercicio de su actividad habitual o profesional al servicio de la organización (MARTÍN, 2005, p. 10). Segundo JAKOBS, a pena de nada serve ao homem, mas tão somente como modo de estabilizar o sistema em que ele se situa. Paulo Queiroz dá a tal fenômeno a denominação de função simbólica ou retórica da pena, por cujo meio não se pretende a resolução de um dado conflito de interesse propriamente, mas produzir na opinião pública uma impressão tranquilizadora de um legislador atento e decidido (QUEIROZ, 2008, p. 51). Tal pensamento revela-se perigoso na medida em que, ao afastar-se do homem, o Direito Penal do inimigo desconsidera limites e garantias. Assim, a teoria de JAKOBS tende claramente para o totalitarismo, pois em sua rigorosa visão normativista e antinaturalista que desenvolve os conceitos da dogmática penal, perdem-se os referenciais extrajurídicos de delimitação da resposta penal, já que o fundamental não é o homem, mas o sistema (QUEIROZ, 2008, p. 49). Assim, a teoria de JAKOBS legitima o estabelecimento de penas desproporcionalmente altas, mormente considerando a antecipação da punibilidade para alcançar atos preparatórios com o fito de neutralizar perigos, sem a devida previsão de redução da pena em comparação aos delitos consumados, ou seja, cujo perigo já não pode mais ser evitado. Deste modo, flagrante o desrespeito da teoria em relação ao Princípio Constitucional implícito da Proporcionalidade, que significa que as penas devem ser harmônicas com a gravidade da infração pena cometida, não tendo cabimento o exagero, nem tampouco a extrema liberalidade na cominação das penas nos tipos penais incriminadores (NUCCI, 2006 a, p. 72). Outrossim, a desproporcionalidade das penas e medidas de segurança utilizadas pelo Direito Penal do Inimigo no enfrentamento aos delinquentes reflete clara adesão a um sistema punitivo de caráter simbólico. Com efeito, o Direito Penal do inimigo da sociedade, por não considera-lo pessoa, ignora-o completamente no que toca à função da pena. O delinquente não é sujeito de direito, mas tão-somente um objeto do direito. Nas palavras de Muñoz Conde, citado por Alexandre Rocha Almeida de Moraes, tal posicionamento revela uma descrição meramente asséptica e tecnocrata do modo de

funcionamento do sistema, mas não uma valoração e muito menos uma crítica ao sistema (MORAES, 2009, p. 170). Paulo Queiroz também critica a ausência de perspectiva instrumental e tecnocrata do Direito Penal do Inimigo, vez que não serve primordialmente ao homem, que se reduz a um sub-sistema [físico-psíquico], mas ao sistema. O autor continua dizendo que o decisivo é o sistema em que ele se situa; é estabilizá-lo, razão pela qual o direito já não presta à solução de conflitos, nem à proteção de bens jurídicos (QUEIROZ, 2008, p. 48). Outra constatação da teoria de JAKOBS é a ocorrência cada vez mais comum da edição de legislação de combate a determinados crimes, ou criminosos, tais como Lei de Combate ao Crime Organizado. Evidente que tais terminologias carregam enorme carga simbólica dirigida ao cidadão, no intuito de incutir-lhe a certeza de que o Estado combate à altura seus inimigos, os delinquentes, dando a impressão tranquilizadora de um legislador atento e decidido (JAKOBS; MELIÁ, 2009, p. 79) representando, também por esse aspecto, adesão ao que se chama de Direito Penal simbólico. Por outro lado, conforme defende Luiz Flávio Gomes, essa criminalidade etiquetada como inimiga não chega a colocar em risco o Estado vigente, nem suas instituições essenciais afetam bens jurídicos relevantes, causar (sic) grande clamor midiático e às vezes popular, mas não chega a colocar em risco a própria existência do Estado (GOMES, 2004, p. 3). que Além disso, Gomes critica o emprego de tais terminologias de combate, aduzindo tratar o criminoso comum como criminoso de guerra é tudo que ele necessita, de outro lado, para questionar a legitimidade do sistema (desproporcionalidade, flexibilização de garantias, processo antidemocrático etc.); temos que afirmar que seu crime é uma manifestação delitiva a mais, não um ato de guerra (GOMES, 2004, p. 3). Importante ressaltar, por fim, que o caráter simbólico não é exclusivo do Direito Penal do Inimigo, por outro lado, tem se mostrado uma resposta padrão, e demagógica, ao incremento do fenômeno criminógeno. Paulo Queiroz cita como exemplo de direito penal simbólico, no ordenamento jurídico brasileiro, a promulgação da lei de crimes hediondos [...] que aumentou sensivelmente as penas nos crimes nela previstos, além de agravar a situação dos que tenham praticado quaisquer daquelas infrações (QUEIROZ, 2008, p. 52).

3. CONCLUSÃO Na atual sociedade de riscos, o sistema penal descrito por JAKOBS pode parecer, à primeira vista, a solução para o problema do avanço da criminalidade. O discurso fácil que prega o recrudescimento indiscriminado como única resposta à evolução criminosa parece ter encontrado um alicerce perfeitamente assentado. Todavia, antes de exaltar o sistema denominado Direito Penal do Inimigo como resposta definitiva aos anseios por mais segurança, cabe aos operadores do direito analisar detidamente seus fundamentos, principalmente no tocante à adequação de tal modelo de política criminal aos princípios erigidos pela Constituição Federal de 1988, assim como fomentar o necessário debate político e técnico a respeito do tema. A prática deste debate político e técnico, sobretudo visando à sistematização de um modelo de política criminal coerente e ajustado à ordem constitucional, é um cuidado imprescindível a ser adotado pelo legislador a fim de evitar a edição assistemática de leis que acabam por suprimir ou relativizar garantias formais e substanciais próprias do Estado Democrático e Constitucional de Direito. Vale lembrar que o Direito Penal brasileiro não é repensado na sua integralidade desde a edição do Código Penal em 1940, ou seja, há 70 anos. De todo modo, tem-se visto que o simples recrudescimento no trato a determinados delinquentes, e mesmo a tipificação de novas condutas não são suficientes para a diminuição dos níveis de criminalidade. Tomando novamente como exemplo a Lei dos Crimes Hediondos, há quem sustente que a principal facção criminosa que atua nos presídios do Estado de São Paulo ganhou força após sua edição, tendo em vista o aumento do tempo de encarceramento dos condenados por crimes reputados como tal e a flagrante deterioração do sistema carcerário. 4. REFERÊNCIAS GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal do Inimigo (ou Inimigos do Direito Penal). Disponível em http://www.lfg.com.br. 2004. Acesso em 25 mar. 2011.. BIANCHINI, Alice. Delitos Sócio-Econômicos. Eficientismo a Todo Custo. 2004, disponível em <http://www.juspodivm.com.br>, acesso em 3 de mar. 2011 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo. Noções e críticas. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.. Dogmática de Derecho Penal y La Configuración Normativa de la Sociedad. 1ª ed. Madrid: Thomson Civitas, 2004. MALAN, Diogo Rudge. Processo Penal do Inimigo. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 14. nº 59. Março/abril de 2006. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

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