Fimose e circuncisão: um tema em crescente controvérsia Nuno Monteiro Pereira
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- Marcelo Sabrosa Palma
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1 Fimose e circuncisão: um tema em crescente controvérsia Nuno Monteiro Pereira Aderências prepuciais e fimose O prepúcio é uma estrutura que, na altura do nascimento está quase sempre aderente à glande. Gairdner [1] avaliou, num estudo de grande dimensão, que o prepúcio é retráctil em apenas 4% dos rapazes recém-nascidos, em 20% aos 6 meses, em 50% aos 3 anos e em 99% aos 17 anos. O progressivo decréscimo da incidência das aderências prepuciais (figura 1) foi também estudado por Oster [2], confirmando que pelos 17 anos a separação entre o prepúcio e a glande é quase sempre completa. O descolamento ocorre à medida que se dá a queratinização das mucosas prepucial e balânica. A produção de esmegma por essas mucosas tem um papel importante nesse descolamento, pois ajuda a dissecção balano-prepucial e evita a re-aderência. Nos rapazes com prepúcio não retráctil, a tracção gentil do prepúcio permite quase sempre a exposição da glande, pelo menos parcialmente. Nesses caso não podemos falar verdadeiramente em fimose. A fimose pode ser definida como o encerramento congénito ou adquirido do prepúcio, com ou sem aderências balânicas, que impede a exposição da glande peniana. Na verdade, a fimose é uma situação geralmente sobrediagnosticada por um mau entendimento da sua definição. Não deve confundir-se a situação normal de um prepúcio que tapa a glande mas que permite a sua retracção, com a situação de verdadeira fimose, em que o prepúcio tem uma forma cónica e que dificilmente retrai devido à presença de uma banda circular fibrótica que dificulta essa mesma retracção. Percentagem Idade em anos Figura 1 Incidência das adesões prepuciais, segundo Oster et cols.
2 Complicações da fimose Havendo verdadeira fimose, existe acumulação de esmegma e de outras secreções por baixo do prepúcio, o que pode provocar irritação local e infecção. Segundo Rickwood [3,4], cerca de 4% dos rapazes com menos de 17 anos desenvolvem balanopostite aguda, embora só 1% tenham fimose verdadeira. A distribuição é, contudo, bastante diferente consoante a idade, já que existe um verdadeiro aumento da incidência nos primeiros anos de vida, ou seja, quando o prepúcio ainda é pouco retráctil. Depois a inflamação parece autolimitar-se, diminuindo de incidência à medida que a retracção prepucial se torna mais fácil. Contudo, nos casos de balanite associada a fimose, o mesmo autor encontrou quase 40% de casos de crises recorrentes. São essencialmente essas situações de balanite crónica que passam surgir, à medida que as balanites agudas diminuem (figura 2). São as balanites xeróticas obliterans, processos em que o orifício prepucial se estreita progressivamente, com rebordo endurecido e esbranquiçado. A fimose, em certas condições, pode causar obstrução urinária, com balonamento durante a micção. Em situações extremas, a fimose pode provocar aumento da pressão a montante, com dilatação da uretra e da bexiga, hidroureteronefrose e insuficiência renal. O carcinoma do pénis foi também durante muito tempo citado como sendo mais frequente nos homens com fimose. Contudo, estudos recentes (Reddy et al, 1995) que demonstram que um prepúcio não circuncisado e não Percentagem fimótico associado a higiene regular não aumenta o risco de carcinoma. A causa do carcinoma será, então, a falta de higiene e não a própria fimose Idade em anos Figura 2 Distribuição etária de rapazes com balanopostite (n=318, a negro) e com balanite xerótica obliterans (n=111, a vermelho), segundo Rickwood A função do prepúcio O pénis possui ao longo de toda a sua extensão uma bainha de tecido muscular liso, chamado músculo peripeniano [5,6,7], com fibras dispostas longitudinalmente e circularmente. No prepúcio, as fibras musculares estão essencialmente dispostas circularmente, funcionando como um
3 autentico esfíncter [5]. Isso permite que a pele prepucial se mantenha encostada à glande peniana, envolvendo-a e escondendo-a total ou parcialmente. A face exterior do prepúcio é formada por pele, enquanto que a superfície interior é uma membrana mucosa, embora com aparência de pele. Em condições normais a mucosa do prepúcio tem glândulas sebáceas que lubrificam a glande peniana, protegendo-a da fricção, secura e traumatismo. O prepúcio está naturalmente equipado com várias defesas contra a infecção, especialmente o prepúcio infantil. Este geralmente é alongado distalmente, com o esfíncter formado pelas fibras musculares peripenianas contraído, o que mantém o prepúcio fechado, impedindo a entrada de matérias estranhas, mas abrindo para permitir a saída de urina. Este mecanismo é especialmente importante durante os anos em que a criança está incontinente e usa fraldas. No adolescente e no homem adulto o prepúcio está menos fechado, não havendo geralmente dificuldade em o repuxar para trás. Mas mantém sempre uma humidade subprepucial que contém lisosima, uma secreção que tem importantes capacidades antimicrobianas [7]. O prepúcio contém ainda células de Langerhans que podem oferecer resistência à infecção por HIV. As funções imunitárias do prepúcio também têm sido consideradas não desprezíveis para resistir às infecções venéreas. O aporte sanguíneo ao prepúcio é feito através da artéria frenular. É também profusamente inervado, especialmente na sua porção mais distal, exactamente no rebordo mucosocutâneo. A chamada banda de Taylor está aí localizada, na camada interior do prepúcio. É a zona prepucial mais inervada, parecendo ter um importante, mas ainda mal esclarecido, papel na resposta sexual humana. É considerada como a zona mais sensitiva do pénis [8,9,10,11]. Na sua porção posterior o prepúcio está ligado à glande, pelo freio do pénis. O freio geralmente limita o movimento de retracção do prepúcio, mantendo-o encostado à glande e facilitando o seu retorno para a frente. Alguns homens referem que o freio é uma área de intensa sensibilidade peniana, sendo considerado por muitos como o principal ponto sensitivo de erogeneidade masculina. Na realidade, a antes referida banda de Taylor continua-se para o freio do pénis. A circuncisão A circuncisão é provavelmente a mais antiga operação do mundo e a que, seguramente, mais vezes já foi executada. É uma operação que frequentemente é realizada por motivos familiares, culturais e religiosos, na ausência de qualquer problema peniano ou prepucial. De facto, calcula-se que em todo o mundo, 1 em cada 7 homens é circuncisado. No universo islâmico e judaico a circuncisão é ritualmente executada em todos os recém-nascidos masculinos, sendo também utilizada em várias outras culturas.
4 No mundo ocidental, a taxa de homens circuncisados varia muito de país para país. Na Europa a taxa varia entre 4 e 10%. Contudo, na Austrália e Canadá atinge 40% e, nos Estados Unidos da América, 70% dos homens. Essa elevada taxa de circuncisados deve-se a ter sido, nesses países, fortemente advogada a circuncisão para todos os recém-nascidos masculinos, a exemplo do que algumas religiões tradicionais impõem. Hoje em dia defende-se uma posição muito mais conservadora, mesmo nos Estados Unidos, estando a circuncisão sem razões médicas ou religiosas, a ser fortemente desencorajada. De facto, uma melhor higiene peniana oferece todas as vantagens da circuncisão de rotina, sem os inconvenientes funcionais e sexuais inerentes ao procedimento cirúrgico. Na verdade, a maior parte dos rapazes aos quais não é removida a pele prepucial, não irá ter qualquer problema futuro. As razões médicas em que a circuncisão pode ser indicada reduzem-se aquelas situações em que existe fimose verdadeira e balanite recorrente. Podendo a pele prepucial ser a sede de infecções urinárias, a circuncisão também pode ter indicação nos rapazes e homens que tenham refluxo vesico-ureteral e anomalias renais significativas. No adulto e no velho, ainda existe outra indicação, que é a balanite xerótica obliterante. As razões religiosas e culturais podem, naturalmente, ser também uma indicação para a circuncisão. Geralmente ela é solicitada pelos pais ou outros familiares. Embora a circuncisão seja, nesses casos, quase sempre realizada logo depois do nascimento, pode ser adiada ou não realizada por várias razões, nomeadamente por haver qualquer anomalia do pénis, como hipospadia ou corda, em que o prepúcio se deve manter para posterior utilização em cirurgia reconstrutiva. As complicações major da circuncisão incluem 1% de hemorragias significativas e menos de 1% de outras complicações, que incluem complicações anestésicas, lesão peniana por electrocauterização e amputação parcial peniana. As complicações menores podem atingir 5 a 10% dos operados, compreendendo hemorragia ligeira, infecção local, úlcera do meato, remoção excessiva ou inadequada de pele, deiscência de sutura. O pós-operatório é geralmente fácil. Pode utilizar-se um creme ou pomada antibiótica, ou simplesmente vaselina aplicada na glande, após limpeza diária. O doente é geralmente visto pelo cirurgião no dia seguinte e cerca de 2-4 semanas depois. A circuncisão pode deixar sequelas psicológicas? Nos meios médicos a circuncisão neonatal é considerada, há muitos anos, como psicológica e emocionalmente inócua. Os recém-nascidos, tendo o sistema nervoso incompletamente desenvolvido, não sentem dor ou, se o sentem, não vão futuramente lembrar-se disso. É também cor-
5 rente a opinião de que o prepúcio é um bocado de pele inútil, não tendo qualquer função particular, pelo que o doente não pode vir a lamentar a sua perda. Essas ideias tradicionais são hoje contrariadas pelos modernos conhecimentos da fisiologia e de anatomia funcional. Por exemplo, Talbert et al demonstraram em 1976 [12] uma subida do cortisol plasmático nos recém-nascidos submetidos a circuncisão sem anestesia geral. O cortisol é uma hormona que aumenta no sangue durante a dor ou stress e que tem sido aceite como um marcador do estado de dor. Mas o estudo mais importante sobre o assunto foi publicado em 1987 por Anand e Hickey [13], concluindo os autores que no final da gravidez as vias da dor e os centros corticais e subcorticais necessários para a percepção da dor estão já bem desenvolvido no feto humano. Também os sistemas neuroquímicos que se sabe estarem ligados à transmissão da dor estão intactos e funcionais. Do mesmo modo, há a sugestão de que a integração das respostas emocionais e comportamentais à dor ficam retidas na memória tempo suficiente para modificar futuros padrões de comportamento. A comprovarem esses dados, Taddio et al relataram recentemente [14] que bebés com 6 meses de idade circuncisados com uma anestesia inadequada exibem alterações do comportamento. Do mesmo modo, a circuncisão quando praticada na criança e no adolescente, pode ser emocionalmente traumática e pode ser fonte de lesão psicológica a longo termo, envolvendo alterações de imagem corporal e sensação de perda de uma parte do corpo. Sendo imprevisível a resposta à dor, trauma e perda, alguns poderão ficar mais afectados do que outros. Na verdade, existe evidência suficiente, hoje-em-dia, para poder afirmar que a circuncisão pode ser psicologicamente agressiva, mesmo quando praticada em rapazes muito pequenos. Medidas conservadoras As medidas conservadoras para tratamento da fimose estão cada vez mais a ter maior aceitação por parte dos urologistas e dos cirurgiões-pediatras, principalmente devido às criticas crescentes que vêm sendo feitas à circuncisão e aos argumentos funcionais e psicológicos que têm vindo a ser evocados. Nos rapazes e nos adultos jovens, a utilização de cremes esteróides como alternativa à cirurgia tem sido defendida por diversos autores. Wright refere uma taxa de sucesso de 80% (89 em 111 rapazes) usando valerato de betametasona (Betnovate Ò ) a 0.05%, aplicada 3 vezes por dia durante 6 a 8 semanas. Outros autores também referem bons resultados com a utilização de hidrocortisona e propionato de clobetasol. Alguma taxa de insucesso verificada na aplicação tópica de
6 cremes ocorre porque os doentes ou seus pais não perceberam que o creme deve ser aplicado só depois do prepúcio ser desenrolado e expor a zona afilada e apertada. Note-se que a utilização de cremes esteróides nos homens idosos, nomeadamente em situações de balanite xerótica obliterante, não oferece resultados animadores. Nessas circunstâncias, a circuncisão pode ser a única solução. Para além da utilização de cremes, existem outras medidas conservadoras, como as retracções prepuciais forçadas, com ou sem anestesia geral, e as dilatações prepuciais com balões. BIBLIOGRAFIA 1. Douglas Gairdner. The Fate of the Foreskin. British Med J, Volume 2, , Dec Jakob Oster. Further Fate of the Foreskin: Incidence of Preputial Adhesions, Phimosis, and Smegma among Danish Schoolboys. Archives of Disease in Childhood (published by the British Medical Association), April p Rickwood AMK. Medical indications for circuncision. BJU International 1999; 83, Supl. 1, Rickwood AMK. The unkindest cut of all? Journal of the Irish Colleges of Physicians and Surgeons 1992; 21(3) (July) 1992: Jefferson G. The peripenic muscle; Some observations on the anatomy of phimosis. Surgery, Gynecology, and Obstetrics (Chicago), Vol. 23 No. 2 (August 1916): Pages Lakshmanan S, Prakash S. Human prepuce: Some aspects of structure and function. Indian Journal of Surgery 1980 (44): Taylor JR et al. The prepuce: Specialized mucosa of the penis and its loss to circumcision. British Journal of Urology 1996; 77: Halata Z, Munger BL. The neuroanatomic basis for the protopathic sensibility of the human glans. Brain Research 1986; 371: Persad R, Sharma J, McTavish J, et al. Clinical presentation and pathophysiology of meatal stenosis following circumcision. Brit J Urol 1995; 75: Warren JP, Bigelow J. The case against circumcision. British Journal of Sexual Medicine, Sept/Oct Winkelmann RK. The cutaneous innervation of human newborn prepuce. Journal of Investigative Dermatology (1) :
7 12. Talbert LM. Et al. Adrenal cortical response to circumcision in the neonate. Obstet. Gynecol. 48: , Aug Anand KJS, Hickey PR. Pain and its Effects on the Human Neonate and Fetus. New Engl J Med, 1987;317: Taddio A, Koren G et al. Effect of neonatal circumcision on pain response during subsequent routine vaccination. The Lancet, Vol. 349: Pages (March 1, 1997).
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