«Prever tudo é uma finalidade que é impossível de alcançar; um grande número de coisas fica necessariamente atribuído à arbitragem dos juízes».
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- Maria Barros de Santarém
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1 1. Agradeço a todas e a todos a presença no II Colóquio sobre o Código Civil, integrado no programa aberto da Comissão Comemorativa do Cinquentenário. O II Colóquio, em conjunto com a Sessão Solene de 10 de Maio de 2016 e o I Colóquio, de 27 de Outubro de 2016, ficam como colaboração do STJ nas Comemorações. Por este modo, o STJ cumpre um dever institucional de participação empenhada no estudo e reflexão em partilha, que completa e acrescenta valor às competências de exercício na construção da jurisprudência. Por dever de gratidão, manifesto o reconhecimento sentido a todos quantos, especialmente os juízes da 1ª e da 6ª secção, pensaram e organizaram este II Colóquio. 2. «As leis civis regulam as coisas e os homens, com a sabedoria que dirige as criações duradouras, e de acordo com os princípios de uma equidade natural de que os legisladores humanos não devem ser senão intérpretes respeitosos». «As boas leis civis são o maior bem que os homens poderão dar e receber; são a fonte dos costumes; a salvaguarda da propriedade e a garantia da paz pública e privada; moderam o poder e contribuem para o fazer respeitar, como se fosse a própria justiça». «Dirigem-se a cada indivíduo, misturam-se com os principais actos da sua vida; seguem-no por toda a parte; são muitas vezes a única referência moral e fazem sempre parte da sua liberdade». «Suavizam os sacrifícios que no interesse público (pour la cité), são exigidos a cada cidadão, ou protegem, sempre que necessário, a sua pessoa e os seus bens, como se cada um fosse, em si mesmo, a comunidade (cité) inteira». 1
2 «As leis são actos de sabedoria, prudência e ponderação (a intraduzível sagesse), de justiça e de razão; são feitas para os homens e não os homens para as leis». «As necessidades das sociedades são de tal modo variadas, a comunicação dos homens tão intensa, os seus interesses múltiplos e as relações tão vastas, que é impossível ao legislador tudo prever». «Prever tudo é uma finalidade que é impossível de alcançar; um grande número de coisas fica necessariamente atribuído à arbitragem dos juízes». «Não hesitaremos aceitá-lo, se reflectirmos sobre os inúmeros laços que ligam os cidadãos, sobre o desenvolvimento e a progressão sucessiva das questões de que o juiz se há-de ocupar, sobre o curso dos acontecimentos e das circunstâncias que alteram de tantas maneiras as relações sociais, ou, por fim, sobre a acção e reacção contínuas de todas as paixões e dos interesses mais diversos». Estas palavras, com actualidade que fascina pois quase todas poderiam ser ditas hoje, têm 216 anos e são do Discurso Preliminar de Jean-Étienne Portalis, que apresentou o código civil francês em 21 de Janeiro de E disse também que «os códigos dos povos fazem-se com o tempo; ou mais rigorosamente, não os fazemos». 3. Mas, com era intuição há 200 anos, para fazer os códigos com o tempo, perceber os sinais da mudança das realidades sociais tem sido função relevante da jurisprudência, amparada pela doutrina e motivada pelo impulso da advocacia. Os códigos fazem-se com o tempo quando a continuidade que revela a verdadeira natureza do Código Civil que é ou deve ser uma constituição 2
3 social, que deve acolher os fundamentos comunitariamente aceites da personalidade de cada um e das relações entre sujeitos de direitos e deveres, livres e iguais, e condensa as formulações aptas a acolher o sentido jurídico das relações intersubjectivas em igualdade. Devemos reconhecer que a jurisprudência tem feito viver o Código Civil, lendo-o nas circunstâncias ambientais, culturais e sociológicas da sua aplicação. No essencial, sem rupturas, na continuidade dos textos, entendidos na singularidade dos contextos ou tocados pela riqueza material acrescentada das valorações constitucionais. Dizer assim, de forma tão singela, é a viva homenagem que fazermos aos juízes, e particularmente ao STJ. O Código Civil de 1966 foi pensado para marcar as relações jurídicoprivadas do indivíduo em comunidade em era de progresso e de paz. É, por tudo, uma construção do espírito, e um monumento dos que permanecem e fazem a história de um povo. Mas a perfeição e a intemporalidade não podem significar imutabilidade. A aceleração social e outros modos de sedimentações culturais impõem novas sintonias entre as normas e a vida; mas não constituem, necessariamente, revoluções discursivas ou reformulações radicais de culturas. Não parece hoje particularmente viva a discussão codificaçãodescodificação, e a discussão que seja necessária não deverá desconsiderar a natureza do Código Civil. Não obstante os movimentos de afastamento e de acolhimento formal de certas matérias nos códigos civis com a emergência de novas realidades, ou a 3
4 ideia, que não fez caminho, do projecto de um código civil europeu, o Código Civil e os códigos nacionais continuarão a ser, muito provavelmente, o arquétipo das formas de direito constante e força viva da garantia da unidade de sentido, mantendo a sua essência de marcador de referência e verdadeiro pressuposto das normas de direito privado fora da codificação formal. 4. É neste empreendimento que o STJ acolhe o II Colóquio, e propõe a reflexão sobre espaços de vida que revelam manifestações fundamentais do desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo. O programa do Colóquio leva-nos boa parte a participarmos num diálogo da jurisprudência e da doutrina sobre momentos singulares da vida de cada ser humano como ente social, em que o Código Civil intervém no lugar de uma verdadeira constituição da cidadania (cives), delimitando espaços de normatividade nas relações interpessoais e na realização da personalidade de cada um. Os direitos de personalidade constituem o verdadeiramente núcleo da garantia da expressão relacional de cada indivíduo, protegido nos fundamentos, no respeito da singularidade de cada ser, na interacção social e no livre desenvolvimento e expressão da personalidade. A consistência do núcleo irrefragável dos direitos de personalidade tem de superar o confronto, diria a confrontação, com as surpresas de um tempo hiperactivo, que inquieta o sossego de categorias que pensávamos consolidadas definitivamente. A velocidade que tomou conta da existência e parece a medida de todas as coisas, bem como a parafernália de instrumentos, ditos admiráveis, que reduzem a condição do indivíduo, privando-o do espaço de afirmação, exigem-nos a identificação de caminhos e escolhas metodológicas que contenham as ameaças aos direitos de personalidade, mas também para acolher a construção de novos direitos. 4
5 A distância entre a dupla tirania de apagamento e de autodestruição e o conforto de categorias inscritas na pedra, como a dignidade da pessoa, vai ficando cada vez mais estreita. O esmagamento de direitos de personalidade por obra de interesses dominadores da totalidade ou do totalitarismo da informação em rede leva a uma tensão permanente entre a preservação e a erosão sem remédio. O direito á identidade contra manipulações; o respeito da imagem; o bom nome e a reputação contra as sanções sociais; o direito ao sossego no espaço privado da reserva; o «direito ao esquecimento» - construção semântica que vai caminhando nos limites da incerteza e da porosidade dogmática -; e a ambivalência de uma certa concepção individualista dos direitos, constituem desafios actuais para a jurisprudência. O princípio e o fim da concordância das forças em tensão só pode ser o valor supremo da dignidade. Mas em exemplos recentes damos conta que o direito dito pouco pode contra poderes terríveis que passam a dominar, diria mesmo, a tiranizar, o enfraquecimento dos direitos de personalidade. Aqui, a jurisprudência e a doutrina têm o dever de trabalhar conceitos, e de transmitir sinais fortes da razão entre os direitos de personalidade e a dignidade da pessoa humana. Numa outra perspectiva, nas sociedades contemporâneas efervescentes, movimentos de disrupção impõem o reordenamento de categorias e novos desenhos normativos para comportamentos, relações e outros modos de desenvolvimento da personalidade. A noção de vida familiar foi modificada no âmbito, nas formas e na substância, e interpela à criatividade da jurisprudência e impõe a abertura a outros espaços conceptuais e normativos. Os caminhos conjugados da lei e da jurisprudência dão forma e acomodam rupturas nas concepções. 5
6 Por tudo isto, no cruzamento da vida e da norma, os temas do Colóquio contribuem, estou certo, para auxiliar as condições de uma frutuosa reflexão. 5. No exílio em Santa Helena, aproximando-se a morte, Napoleão terá dito a Montholon que a sua «verdadeira glória não foi ter vencido 40 batalhas; Waterloo faz esquecer tantas vitórias; o que nada apagará e que viverá para sempre, é o meu código civil». Nos grandes códigos está a ideia da perfeição e da intemporalidade. Devem ser obras construídas para um tempo longo, certamente muito aquém da eternidade, mas em que o passado, projectado no presente, seja continuado no futuro. Permitam-me que uma vez mais recorde as palavras na abertura das comemorações dos 200 anos do código civil, a 11 de Março de 2004: o presidente da Cour de Cassation disse então que o Código Civil é um «livrosímbolo» - uma «lei simbólica que dirige a imaginação dos indivíduos para além das suas prescrições»; «o livro dos símbolos que nos esclarecem e nos guiam». Podemos também dizer que deve ser e é - símbolo da unidade do direito, da modernidade e do rejuvenescimento; símbolo de sabedoria, da razão e do compromisso; e símbolo de princípios fortes e da qualidade da lei que fala tanto á razão quanto á imaginação. O Colóquio que nos reúne, integrado nas Comemorações do Cinquentenário, quer também celebrar o Código Civil como monumento da História e obra maior de juristas ao serviço do povo. Desejo o maior êxito dos trabalhos Lisboa, 18 de Maio de 2017 (António Henriques Gaspar) 6
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