Os homens representados na crônica o sino de ouro de Rubem Braga
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- Orlando Castro Castilhos
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1 Os homens representados na crônica o sino de ouro de Rubem Braga Autor: Eduardo de Souza Fagundes Titulação: Licenciado em Letras (atualmente, mestrando) Instituição de origem: UFRGS Endereço eletrônico: eduoder@hotmail.com Resumo: Rubem Braga é autor de uma coletânea de crônicas intitulada A borboleta amarela. Nessa obra, há uma crônica intitulada o sino de ouro, que narra uma situação ocorrida no interior de uma comunidade do sertão de Goiás. Nessa comunidade há, em uma igreja, um sino de ouro. Ao final da tarde, o som do sino de ouro espalha-se pela comunidade e, em virtude disso, os habitantes alegram-se, pois sabem que o som está a procura de Deus, e sabem que Deus, ao ouvir aquele som, alegrar-se-á. Seja qual for a situação, é como se cada um deles tivesse dentro de si um sino de ouro, isto é, como se cada indivíduo fosse capaz de vincular-se à transcendência do divino. Em oposição àquele homem, há outro, o forasteiro, que invade seu espaço, ao qual o sino de ouro nada vale em termos espirituais: ele propõe negócios apenas. A profunda relação estabelecida pelos habitantes daquela comunidade com a divindade suprema cristã, Deus, é fruto da concepção de sagrado e de profano que estrutura seu regime ontológico. Segundo o historiador das Religiões Mircea Eliade, há dois tipos de homem: o homem religioso e o homem não religioso. O primeiro, vive segundo o regime ontológico fundamentado no mito. O segundo, vive segundo o regime ontológico fundamentado na história. Na crônica referida, há a representação desses dois tipos de homem. O segundo adentra o espaço do primeiro, o contato ocorre, e aqueles homens não se reconhecem, pois, ainda que compartilhem o espaço e o tempo, não compartilham a cosmovisão. Os regimes ontológicos em que vivem encontram-se em polos opostos: o reconhecimento entre eles é impossível. Este artigo, portanto, versará sobre a representação desses homens, pautado pelos conceitos de sagrado e de profano referidos e examinará o significado da ação daqueles sujeitos. Palavras-chave: Arcaico; Moderno; Sagrado; Profano Introdução A crônica O sino de ouro, de Rubem Braga, escritor brasileiro, nascido no Rio de Janeiro em 1913, faz parte de sua obra A Borboleta Amarela, publicada em Esta crônica caracteriza-se pelo estrutural caráter mítico da composição.
2 Esse artigo debruçar-se-á sobre o exame desse caráter mítico no seguinte aspecto: o homem, isto é, o habitante do Cosmos representado no texto e o(s) estranho(s) que neste penetram e testam momentaneamente a consistência de seu equilíbrio. A fim de levar a cabo tal propósito, utilizar-se-ão alguns conceitos elaborados pelo estudioso dos mitos e historiador das religiões, Mircea Eliade, publicados em sua obra O sagrado e o profano. Nesta, Mircea Eliade debruçou-se sobre a manifestação e a consequente significação das noções de sagrado e de profano relacionadas, especialmente, às dimensões do tempo e do espaço, às quais está o homem sujeito, a fim de compreender dois tipos de homem diferentes: o homem arcaico 1, ou religioso e o homem moderno, ou não religioso. No que concerne ao primeiro, a consciência acerca do sagrado e do profano estrutura e confere significado ao mundo em que habita. Aquele homem tem os olhos e o espírito voltados para o céu, isto é, almeja o transcendente. Para ele, as dimensões do tempo e do espaço estão sujeitas à cisão: o sagrado cinde-as e, ao cindi-las, constitui o mundo, isto é, o torna real. Este homem, portanto, pensa miticamente; vive sob um sistema de ideias cujo paradigma é o mito. O homem arcaico ou religioso existe em virtude de sua vinculação espiritual fundamentada no mito; vive, portanto, sob um regime ontológico. No que concerne ao segundo, o homem moderno ou não religioso, o mundo constituise a partir da destituição daquele caráter sagrado: seu mundo é o profano, isto é, o mundo no qual o sagrado não se manifesta. Para este homem, nem o tempo nem o espaço oferecem qualquer condição para a manifestação do sagrado. Este homem constitui-se na negação da transcendência. O homem moderno ou não religioso está sujeito ao domínio da história e não ao da ontologia, tal qual está o homem arcaico. O homem não religioso, portanto, pensa historicamente e vive sob um conjunto de ideias pautado pelo processo histórico, no interior do qual o sagrado não existe. 1 Arcaico não em sentido pejorativo, como sinônimo de atrasado, ou retrógrado, conforme poder-se-ia depreender. O adjetivo arcaico, neste caso, caracteriza o conjunto de ideias cujo paradigma é o mito.
3 Os homens: homem arcaico e homem moderno em o sino de ouro Em O sino de ouro, o leitor está diante da representação de dois tipos distintos de homem, regidos por sistemas diferentes: o homem arcaico ou religioso, vinculado ao espiritual, conectado ao transcendente e nutrido espiritualmente em virtude desta conexão, e o homem moderno ou não religioso, desconectado do transcendente, desvinculado da dimensão espiritual, cuja consciência é histórica, portanto sujeitada ao tempo cronológico. Conforme Mircea Eliade, [...] o homo religiosus 2 acredita sempre que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, que aqui se manifesta, santificando-o e tornando-o real. Crê, além disso, que a vida tem uma origem sagrada e que a existência humana atualiza todas as suas potencialidades na medida em que é religiosa, ou seja, participa da realidade (ELIADE, 1995, p. 164). Posteriormente, acrescentou: O homem moderno 3, a-religioso assume uma nova situação existencial: reconhece-se como o único sujeito e agente da História, e rejeita todo apelo à transcendência. [...] O homem faz-se a si próprio, e só consegue fazer isso completamente na medida em que se dessacraliza e dessacraliza o mundo. O sagrado é o obstáculo por excelência à sua liberdade (ibid, p. 164). Em O sino de ouro, o leitor depara-se com uma comunidade constituída por homens arcaicos ou religiosos. Nesta crônica não se está diante, note-se, de um indivíduo ou homem arcaico, mas de um grupo, ou coletividade, regida por aquela mentalidade. A construção do texto visa apresentar ao leitor os elementos constituintes daquela mentalidade. Notem-se suas palavras, ao primeiro e ao terceiro parágrafos da crônica respectivamente: 2 Ou homem religioso, também denominado homem arcaico. 3 O grifo é meu.
4 [...] mas me contaram em Goiás, nessa povoação de poucas almas, as casas são pobres, e os homens pobres, e muitos são parados e doentes e indolentes, e mesmo a igreja é pequena, me contaram que ali tem coisa bela e espantosa um grande sino de ouro (BRAGA, 1979, p.50). E a cada um daqueles homens pobres ele 4 dá cada dia sua ração de alegria. Eles sabem que de todos os ruídos e sons que fogem do mundo em procura de Deus [...] eles sabem que Deus, com especial delícia e alegria ouve o som alegre do sino de ouro perdido no sertão. E então é como se cada homem, o mais pobre, o mais doente e humilde, o mais mesquinho e triste, tivesse dentro da alma um pequeno sino de ouro (ibid, p.51). O conteúdo mítico utilizado pelo autor nestes fragmentos, perceba-se, é o cristão católico. Faz-se referência à pequena igreja, onde se encontra o sino de ouro. Esta igreja situa-se junto a um povoado no interior de Goiás, sendo ele pequeno em número e pobre em recursos econômicos. O sino de ouro, ou melhor, o som por ele emitido, confere a cada um daqueles habitantes uma ração diária de alegria, pois acreditam que todo e qualquer som emitido em virtude da busca por Deus alegram-no e deliciam-no. Aquela comunidade é composta por homens arcaicos ou religiosos, nos termos propostos por Mircea Eliade, isto é, ela está convencida da existência de Deus, segundo os paradigmas da mitologia cristã, e da possibilidade de participar da essência divina, por meio da contemplação do som emitido pelo sino de ouro e pela compreensão do seu significado transcendental. Aqueles indivíduos têm seus olhos e espíritos voltados para o sagrado. Creem que uma cisão espaço-temporal acontece ao emitir-se o som do sino de ouro: no momento em que ele soa, o tempo e o espaço são inundados pela essência divina; o espaço e o tempo profanos são abolidos, e todos participam da forte influência da essência sobrenatural do divino. Por isto, manifestou-se o narrador desse modo: é como se cada homem tivesse dentro da alma um pequeno sino de ouro. Possuir na alma um pequeno sino de ouro significa estar o homem conectado ao Criador, ou Divina Essência. Para este 4 Isto é, o sino de ouro.
5 homem, toda vez que soa o sino de ouro, instaura-se o tempo e o espaço sagrados, que desfazem o efeito desvitalizador do tempo e do espaço profanos sobre o mundo. Para o homem arcaico ou religioso, a sua existência depende desse devir; ele anseia o sagrado e mantém-se espiritualmente aberto à irrupção do sagrado no mundo. Há, contudo, outro homem representado no texto O sino de ouro : o homem moderno ou homem não religioso. Notem-se as palavras do narrador a respeito deste homem: Quando vem o forasteiro de olhar aceso de ambição e propõe negócios, fala em estradas, bancos, dinheiro, obras, progresso, corrução dizem que esses goianos olham o forasteiro com um olhar lento e indefinível sorriso e guardam um modesto silêncio. O forasteiro de voz alta e fácil não compreende; fica diante daquele silêncio, sem saber que o goiano está quieto, ouvindo bater dentro de si, com um som de extrema pureza e alegria, seu particular sino de ouro. (BRAGA, 1979, p.51). [...] Mas quem me contou foi um homem velho que esteve lá; contou dizendo: eles têm um sino de ouro e acham que vivem disso, não se importam com mais nada, nem querem mais trabalhar; fazem apenas o essencial para comer e continuar a viver, pois acham maravilhoso ter um sino de ouro (ibid, p. 52). O homem velho 5 me contou isso com espanto e desprezo [...] (ibid, p.52). O forasteiro, o primeiro representante do homem moderno ou não religioso a ser representado em O sino de ouro, opera segundo um sistema completamente diferente do autóctone examinado anteriormente. O narrador informa que o olhar do homem moderno ou não religioso é aceso de ambição, e o objetivo de sua ida ao povoado é tratar de negócios. Este homem não está vinculado ao sagrado. O sino de ouro, na melhor das hipóteses, poderia interessar-lhe em termos econômicos, pelo valor de seu material, mas nunca em termos espirituais, como signo de um elemento espiritual vinculador do homem ao 5 Nestas citações, os grifos são meus.
6 transcendente. Apenas negócios interessam àquele homem. Ele habita um mundo concreto, material e sujeito ao fluxo unidirecional do tempo cronológico, isto é, vive uma realidade histórica. Em sua representação, não há vínculo algum com a transcendência; ele nem demonstra interesse algum pela igreja, nem pelo sino de ouro. Aquele homem não atribui valor à realidade cindida pelo sagrado. O sistema de ideias paradigmático para o seu agir não é mais a ontologia, mas a história. A presença do forasteiro e a profunda divergência que ele representa não abala, contudo, a postura daqueles homens. Pelo contrário: é ele quem fica sem nada compreender. O autóctone não demonstra nenhum interesse por ele e por suas ideias. O silêncio do homem arcaico diante dele manifesta uma intensa atividade do espírito: ele está ouvindo um som puríssimo e alegre, o som de seu particular sino de ouro. Seu contato com o homem moderno, aqui, o forasteiro, não alterou em grau algum a sua relação com o sagrado. Sua relação com o divino é o que o constitui. Desse modo, o forasteiro vai embora, e aquela comunidade arcaica continua tal qual estava: em completa sintonia com o sagrado. Posteriormente, o narrador informa a origem de seu conhecimento acerca daquela estória: um homem velho havia-lhe contado, porque visitara o povoado; havia sido um daqueles forasteiros referidos. Conhecia a existência do sino de ouro, e sabia que aqueles homens acreditavam viver em virtude dele. Daí não se importarem com nada além de sua subsistência, pois tinham sua existência espiritual, garantida pelo soar do sino. Contudo, o homem velho desprezara tal proceder. O que o homem velho, outrora forasteiro naquele povoado, despreza é a brutal diferença entre as formas de perceber o mundo entabuladas pelo seu contato com indivíduos vinculados ao sagrado. Não compreende nem aceita um pensamento diferente do seu próprio. Não compreende porque aqueles homens não são ambiciosos. Não compreende como alguém pode viver desvinculado quase por completo do material, a única forma do real para ele, portanto. De fato, o homem velho sente-se profundamente incomodado por estar diante do sagrado, manifesto na existência dos autóctones. Como homem moderno ou não religioso, constitui-se enquanto ser profano em um mundo profano.
7 Constitui-se à medida que dessacraliza a si mesmo e dessacraliza o mundo. Daí seu desprezo pelos membros do povoado: na presença deles e diante de seu sistema ontológico, sua identidade já não é. Considerações finais O texto O sino de ouro, de Rubem Braga, orquestra magistralmente a dicotomia homem arcaico vs homem moderno e alguns de seus desdobramentos, conforme buscouse demonstrar. Percebe-se que o foco do narrador incide no abismo entre as duas formas de perceber o mundo: a ontológica e a histórica. Consequentemente, a divergência entre estes sistemas e suas formas de pensamento inerentes, redunda em condutas humanas opostas. Neste sentido, o texto desacomoda o leitor. Leva-o a refletir a respeito da diferença clara entre o sagrado e o profano, o espiritual e o material. De fato, arrasta-o inevitavelmente ao encontro de si mesmo e à autorreflexão. Parece ser este um dos maiores méritos da crônica O sino de ouro. Referências bibliográficas BRAGA, Rubem. O sino de ouro. In: A Borboleta Dourada. Rio de Janeiro: Record, ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. Tradução de... São Paulo: Perspectiva, ELIADE, Mircea. O sagrado e o Profano. Tradução de... São Paulo, Martins Fontes, 1995.
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