Liberdade Liberdade (1965): uma cena do teatro de resistência

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1 Liberdade Liberdade (1965): uma cena do teatro de resistência MARIANA RODRIGUES ROSELL A peça Liberdade Liberdade 1, de Flávio Rangel e Millôr Fernandes, integra um conjunto de obras de um tipo de teatro característico do período do regime militar brasileiro (configurando uma resposta à situação, pelo menos em parte, criada por ele) que passou à História como de protesto ou de resistência. Ao lado de outras peças, ela integrou um momento único da cultura brasileira, em que a vertente dos artistas tida como engajada buscava, entre outros, resolver o problema da elitização da cultura. Produzida por dois dos grupos teatrais mais importantes do Brasil e mais representativos à época, Opinião 2 e Teatro de Arena de São Paulo 3, Liberdade Liberdade tem seu texto composto por uma colagem de excertos extraídos de textos ao longo de toda a História. Como Opinião 4 (produzido anteriormente pelo mesmo grupo), este espetáculo também articula ao texto canções, inserindo-se então numa subcategoria da vertente engajada do teatro brasileiro, a dos musicais, que têm espaço destacado nesse momento. Em 1965, quando foi encenada a primeira montagem de Liberdade Liberdade, o Brasil, já sob o regime militar, assistia a um paulatino cerceamento da liberdade. Ainda 1 Estreou em 21/04/1965, no Teatro Opinião, Rio de Janeiro. Ficou em cartaz por dois anos, durante os quais excursionou pelo país, mantendo Paulo Autran do elenco original. Após a saída de cartaz da primeira montagem, o texto foi remontado mais de uma vez tanto no Brasil como no exterior. 2 O Grupo Opinião surgiu em 1964, impulsionado pelo fechamento do CPC da UNE pelos militares, com a montagem do show Opinião, dirigida por Augusto Boal (membro do Teatro de Arena de São Paulo), vindo daí o nome do grupo. Ferreira Gullar, Paulo Pontes e Oduvaldo Vianna Filho são nomes que se destacam na constituição desse grupo, que, depois de quase duas décadas como um dos principais centros de resistência ao regime militar, chegou ao fim em O Teatro de Arena de São Paulo foi fundado em 1953 por alunos recém-formados na Escola de Arte Dramática e seu espetáculo de estreia foi Esta noite é nossa. Entre os nomes que se destacam na trajetória do grupo temos José Renato, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal e Oduvaldo Vianna Filho (que se desligaria do grupo para ser um dos fundadores do CPC e, posteriormente, do Opinião). Após sua associação com Teatro Paulista do Estudante, organizou e promoveu o Seminário de Dramaturgia do qual resultou, por exemplo, a peça Chapetuba Futebol Clube (1959), de Oduvaldo Vianna Filho. Foi aqui que surgiu o chamado Sistema Coringa, elaborado por Boal, visando baratear o custo da produção através de vários elementos como a supressão quase total de figurinos específicos e a interpretação de vários personagens pelo mesmo ator, de modo que se pudesse reduzir o elenco. A primeira peça que utilizou esse sistema foi um grande sucesso do grupo, Arena conta Zumbi. Em 1972, com muitas dívidas, o teatro é fechado. 4 Estreou em 11/12/1964, no Teatro Opinião, Rio de Janeiro. Obteve sucesso imediato e ficou conhecido como a primeira manifestação artística de resistência ao golpe militar e ao regime que se instaurara com ele. Teve em seu elenco Nara Leão (posteriormente substituída por Maria Bethânia), Zé Kéti e João do Vale e trabalhava com a questão da integração/relação entre as diferentes naturezas do povo: retirante nordestino e homem do morro (representando as classes populares) e morador na zona sul carioca (representando a burguesia do Rio de Janeiro).

2 que somente em 1968 as artes fossem fortemente atingidas pela Censura e o AI-5 trouxesse o fim das liberdades individuais, a discussão sobre o conceito, a verdadeira conquista ou não e a realidade da liberdade no cotidiano brasileiro já estava dada. Assim, esse momento único do qual Liberdade Liberdade faz parte dá sentido a discussão proposta pelos autores e introduzida pelos atores que, do palco, pretendiam levar o tema a grupos mais diversos de modo a difundir o debate. A seleção de textos provenientes de um longo período, entre os séculos VI a.c. e XX d.c, mostra como a luta pela liberdade se dá nos mais diferentes contextos históricos, independente do regime de governo que se viva, do espaço onde esteja ou o grupo social do qual faça parte. A escolha específica dessa peça se deu devido ao ineditismo de uma pesquisa aprofundada sobre ela, sobretudo do ponto de vista histórico. Ademais, tanto autores, como atores e produtores de Liberdade Liberdade, têm papel de destaque no teatro brasileiro do período; logo, está-se lidando não com exceções, mas com regras na luta pela liberdade de expressão e pela liberdade para as artes. Por se tratar de uma pesquisa inédita, as possibilidades de pesquisa eram inúmeras. Assim, optei por dividir a pesquisa em dois momentos: um primeiro de vasta recolha de fontes e breve análise destas e, um segundo, de análise mais aprofundada da parte das fontes que mais se adequaram ao objetivo central do estudo, qual seja, compreender a relação entre política, arte e cultura durante o regime militar, além da íntima relação entre teatro e canção popular nesse contexto. Importante elemento na peça, o uso da canção popular é foco de controvérsia historiográfica, sobretudo entre Roberto Schwarz e Edélcio Mostaço. Além de analisar a peça, objetivei observar sua relação e possível inserção no contexto aliancista entre liberais e Partido Comunista para o enfrentamento ao regime; seu papel e lugar enquanto meio de resistência, portanto. Depois de reunir as mais diversas fontes e sobre elas fazer uma incursão superficial cheguei a uma linha de pesquisa mais específica que se desdobrou nos seguintes pontos: 1. Trabalhar diretamente com a fonte principal da pesquisa, o seu texto, e, por meio dele, compreender a estrutura da peça, a forma como seus autores se apropriaram de discursos, textos e canções dos mais diversos espaços e tempos para aplicá-los de maneira coerente à discussão acerca da liberdade naquele momento da história do Brasil;

3 2. Analisar o repertório da primeira montagem e articulá-lo ao texto apresentado no sentido também de dialogar com as posições divergentes de Roberto Schwarz e Edélcio Mostaço acerca da relação teatro-canção ; 3. Pensar o papel da canção num espetáculo concebido sob a proposta de resistência e num projeto de ampliar o acesso a cultura; 4. Compreender se e como essa peça se encaixa no contexto de aliança que se deu entre a ala liberal e membros do Partido Comunista em nome da resistência e da luta pela derrocada do regime militar. A metodologia da minha pesquisa partiu do princípio de que quando se trabalha com teatro, é impossível reconstituir como um todo o objeto de análise. Isso porque uma encenação nunca será a mesma, nunca se repete; Miriam Hermeto diz: o espetáculo teatral é, por natureza, único e efêmero. Como bem definiu Dias Gomes (1968), o teatro é a arte que acontece diante do público, é a arte do instante. Um espetáculo teatral nunca é igual a outro ainda que o texto, os atores, os diretores, o edifício, o cenário e todos os demais sujeitos e elementos que os constituem sejam rigorosamente os mesmos. 5 Assim, por mais que se reúnam os mais diversos tipos de fontes primárias, a análise do espetáculo teatral será sempre a partir de um objeto incompleto. O que não é em si um problema, desde que haja essa consciência, tanto por parte do pesquisador como por parte daqueles que se deparam com os resultados da pesquisa. Consciente da efemeridade e, portanto, da unicidade do meu objeto central, tive como referência a análise feita por Miriam Hermeto em sua tese de doutorado 6 e a tipologia documental também usada por ela proposta por Tânia Brandão no livro em que trata da Companhia Maria Della Costa 7. Assim, as fontes foram divididas em vestígios materiais primários e vestígios materiais secundários, sendo os primeiros fotografias e demais fontes visuais, áudio parcial da encenação e textos, entrevistas e etc. dos autores e atores relacionados à primeira montagem, ale do próprio texto da peça; e os segundos, textos de críticos teatrais e de divulgação publicados em jornais. 5 HERMETO, Miriam. Olha a Gota que falta Um evento no campo artístico-intelectual brasileiro ( ). Tese de Doutorado, UFMG, Belo Horizonte: 2010, p Idem. 7 BRANDÃO, Tânia. Uma empresa e seus segredos: Companhia Maria Della Costa. São Paulo: Perspectiva; Rio de Janeiro: Petrobrás, 2009.

4 Desde o princípio, me dispus a tentar mostrar que, embora não tenha tido proporcional atenção da historiografia nos mais de 40 anos que seguiram à sua primeira montagem, Liberdade Liberdade causou grande impacto já em 1965, sendo encenada a grandes públicos, sobretudo considerando o público costumeiro do teatro no Brasil daquele período, e sendo bem recebido pela crítica. Por isso, elaborei uma espécie de balanço historiográfico partindo das principais referências bibliográficas do projeto (Schwarz, Napolitano, Mostaço, Giani, Garcia) para ver qual o lugar que coube a essa peça especificamente na historiografia; para, a partir de então, por meio da análise das fontes, averiguar se tal lugar corresponderia ou não ao espaço que Liberdade Liberdade de fato tem na história do teatro brasileiro. O balanço bibliográfico nos permite observar que Liberdade Liberdade ficou, pelo menos na historiografia, em segundo plano, de certa forma, sob a sombra do show Opinião. Nas obras analisadas, a primeira é, na maioria dos casos, apenas referida, tomada superficialmente como exemplo. O confronto com as fontes mostrou, no entanto, corroborando minha hipótese inicial, que além do grande sucesso de público, Liberdade Liberdade é central no entendimento do teatro de resistência, sobretudo por ter sido reencenada muitas vezes ao longo dos 20 anos de regime militar (como comprovado pelas inúmeras solicitações à Divisão de Censura de Diversões Públicas. 8 Yan Michalski, por exemplo, em texto publicado na coluna de teatro do Jornal do Brasil em 27 de abril de 1965, concentra o início de seu texto na crítica aos responsáveis pelo Opinião por estes não terem se preocupado em limitar a entrada do público à lotação máxima da arena, que acabou, no dia da estreia, com uma superlotação prejudicial ao pleno desenvolvimento da apresentação. O texto publicado no The New York Times caminha no mesmo sentido; ele diz que o mais ambicioso dos espetáculos de protesto, transformou-se imediatamente num sucesso de público. 9 Nele se corrobora a informação de superlotação dada por Michalski, A audiência de trezentas pessoas, que tinha pago o equivalente a um dólar e vinte e cinco centavos por pessoa para se sentar amontoada [...] 10 Liberdade Liberdade tinha um potencial muito grande: foi produzida por grupos 8 Como o foco do trabalho acabou por se consolidar diante da aliança entre liberais e comunistas ortodoxos no sentido da resistência ao regime, o trabalho com montagens posteriores à original de 1965 foi deixado de lado para ser retomado num outro momento. Assim, a análise mais aprofundada do processo de censura não foi realizada. 9 ONIS, Juan de. New plays chide brazilian regime; Productions Temper Protest With Humor and Music. The New York Times, Nova Iorque, 25 abril Utilizo a tradução publicada na edição de 1997 do texto da peça, pela L&PM. 10 Idem. Grifo meu.

5 importantes e de grande destaque no período; foi encenada por um elenco já reconhecido no meio do teatro, inclusive do teatro de resistência, e com base teórica sólida; tratava de uma temática muito cara ao momento de sua montagem; trazia o diálogo com a canção popular, que servia como catalisadora da relação artista-público; foi encenada em diversas regiões do país. Daí a importância de um estudo específico sobre ela. Fiz um levantamento de informações sobre a peça a partir da publicação do texto, de onde extraí alguns dados sobre ele e a primeira montagem: ficha técnica, repertório e textos que serviram de base para a elaboração do texto final da peça. Elaborei também, um breve comentário biográfico dos principais artistas envolvidos: autores, atores e músicos; de modo que fosse possível entender e até mesmo justificar sua relação com o teatro, aquele tipo de teatro específico do qual fez parte Liberdade Liberdade. Ademais, pelo processo de censura do texto, é possível notar, pelo menos, de 15 a 18 solicitações de liberação de montagem entre e Ou seja, além da montagem original que passou por diversas cidades do país, ultrapassando os limites do eixo cultural Rio-São Paulo, o texto de Rangel e Fernandes despertou interesse em grupos das mais diferentes cidades, sendo também encenado em outros países. Sendo quase todas as solicitações atendidas pelo Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), ainda que com cortes e restrições etárias, entende-se que, de uma forma ou de outra, a discussão proposta por Liberdade, Liberdade difundiu-se Brasil a fora. Como já foi dito, o processo de censura não se constituiu, pelo menos num primeiro momento, numa fonte essencial da pesquisa, que recaiu sobre a primeira montagem. No entanto, foi possível, por breve análise, extrair algumas informações interessantes para pensar Liberdade Liberdade e seu discurso no contexto do regime militar. Há, num dos laudos censórios, mais uma evidência da grande circulação de Liberdade Liberdade pelo país. O censor diz: A peça já foi anteriormente liberada por este SCDP e interpretada em vários teatros nacionais, com cortes impostos. 11 Tal afirmação se dá nos primeiros dias de 1969, menos de quatro anos antes da estreia da montagem original. Entre 1970 e 1979 não há registros de solicitações de encenação do texto. Não é 11 Laudo censório (03/01/1969) constante do processo de censura de Liberdade, Liberdade. Arquivo Nacional do Distrito Federal.

6 possível afirmar se, de fato, não houve nenhuma solicitação ou se inexistência é consequência da incompletude da documentação, que é incontestável. Acho importante destacar, no entanto, que o ano de 1979 é um momento de retomada das manifestações artísticas contra o regime, e, portanto, faz sentido que a encenação de um texto tão significativo tenha sido também retomada. Uma informação recorrente nos laudos censórios é a intenção dos censores, ao liberarem a peça, de não ferir a imagem do governo. Para eles, a liberação da peça funcionaria como uma prova de que as liberdades clamadas pela própria peça não estavam ausentes no governo pós-revolucionário do Brasil. Ou seja, a seu ver, a liberação falaria a favor dos próprios censores, impediria uma propaganda negativa do novo governo, que estava tranquilo. Ademais, alguns deles elogiam a peça enquanto arte, pela pesquisa histórica e literária realizada pelos autores; além de reconhecer a qualidade do elenco da montagem do Opinião. Mesmo com todos os elogios, inclusive quanto à impecabilidade do ponto de vista moral, a liberação com restrições é predominante. Num laudo censório de 7 de fevereiro de 1969 é possível notar certa incongruência entre o que diz o laudo e o parecer final, pois, a mesma pessoa que desfila elogios como os supracitados dá um parecer de liberação para maiores de 18 anos e com cortes. Ou seja, a liberdade de expressão, ainda que afirmada como existente no Brasil claramente não é contemplada. É possível perceber que a liberação da peça e todas as afirmações elogiosas do censor partem do princípio de que a encenação será assistida somente por uma plateia adulta e bem formada como a paulista a qual é selecionada pelo próprio ingresso à sala do espetáculo (custo e ambiente), fazendo com que não atinja a massa menos instruída. 12 Tal afirmação vai ao encontro do que dizem tanto Schwarz como Mostaço acerca da não-realização do projeto de importantes grupos teatrais do período, como Arena e Opinião. A estrutura dramática desses dois grupos teatrais não conseguiu resolver o problema da elitização da cultura que tanto preocupou artistas e intelectuais dos anos 1960; mesmo com a integração com a música popular, para o primeiro, e também por causa da integração com a música popular, para o segundo. O ambiente teatral continuava restrito a uma classe média, àqueles que pudessem pagar pelo ingresso e estivessem inteirados a esse ambiente. Ainda que separados por quase Laudo censório (07/02/1969) constante do processo de censura de Liberdade Liberdade. Arquivo Nacional do Distrito Federal.

7 anos e discordantes em determinados pontos, Schwarz e Mostaço têm sua visão em comum acerca do teatro de protesto corroborada pelos laudos censórios. Fazendo um balanço, o discurso da peça é liberal. Isso faz sentido se considerarmos que as vozes da resistência, principalmente artística, são primeiramente dessa ala. O ano de 1965 é um marco na aliança que se deu entre liberais e membros da esquerda na luta contra o regime; no dia 27 de outubro desse ano foi editado o AI-2 que, entre outras mudanças, extinguia a constituição de 1946, a democracia e o pluripartidarismo. Tal fato foi fundamental para que os liberais percebessem que o golpe e, posteriormente, o regime que apoiaram, não eram de caráter temporário e muito menos democrático. Já artistas e intelectuais que até o início desse ano acreditavam que o regime teria curta duração e poder limitado, uma vez que até então as artes pouco tinham sido atingidas, começaram a perceber que talvez suas expectativas estivessem equivocadas. Referências Bibliográficas ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL DE TEATRO. Disponível em Acesso em 23/12/2011 GIANI, Luiz A. A música de protesto: d O subdesenvolvido à canção do bicho e proezas de satanás ( ). Dissertação de Mestrado, IFCH/Unicamp, Campinas: HOLLANDA, Heloísa. Impressões de viagem. CPC, Vanguarda e Desbunde. São Paulo: Brasiliense, MICHALSKI, Yan. O palco amordaçado. Rio de Janeiro: Avenir Editora, O teatro sob pressão: uma frente de resistência. 2ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, MORAES, Denis de. Vianinha, cúmplice da paixão. Rio de Janeiro: Record, MOSTAÇO, Edélcio. Teatro e política: Arena, Oficina, Opinião. Uma interpretação da cultura de esquerda. São Paulo: Proposta Editorial, NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: arte, resistência e lutas culturais durante o regime militar. Tese de Livre Docência em História do Brasil Independente, Universidade de São Paulo, Seguindo a canção : engajamento político e indústria cultural na MPB ( ). São Paulo: Annablume: FAPESP, PATRIOTA, Rosângela. A escrita da história do teatro no Brasil: questões temáticas e

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