UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CLAUDIA PAIVA CARNEIRO DA SILVA
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- Gilberto Philippi Sanches
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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CLAUDIA PAIVA CARNEIRO DA SILVA O AMICUS CURIAE NA SUPREMA CORTE AMERICANA E NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO: um estudo de direito comparado RIO DE JANEIRO 2011
2 Cláudia Paiva Carneiro da Silva O AMICUS CURIAE NA SUPREMA CORTE AMERICANA E NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO: um estudo de direito comparado Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito Orientadora: Margarida Maria Lacombe Camargo Rio de Janeiro 2011
3 FICHA CATALOGRÁFICA S586 Silva, Claudia Paiva Carneiro da. O Amicus Curiae na Suprema Corte Americana e no Supremo Tribunal Federal Brasileiro: um estudo de direito comparado / Cláudia Paiva Carneiro da Silva f. Dissertação (Mestrado em Direito) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade Nacional de Direito, Rio de Janeiro, Orientadora: Margarida Maria Lacombe Camargo 1. Controle da constitucionalidade. 2. Amici curiae - Direito comparado. 3. Direito - Teses. I. Camargo, Margarida Maria Lacombe (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade Nacional de Direito. III. Título. CDD
4 Cláudia Paiva Carneiro da Silva O AMICUS CURIAE NA SUPREMA CORTE AMERICANA E NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO: um estudo de direito comparado Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito Aprovada em Margarida Maria Lacombe Camargo Orientadora Faculdade Nacional de Direito - UFRJ José Ribas Vieira Faculdade Nacional de Direito - UFRJ Ana Lúcia de Lyra Tavares Departamento de Direito PUC-Rio
5 DEDICATÓRIA Ao meu pai
6 AGRADECIMENTOS À professora Margarida Maria Lacombe Camargo pelo tema e pela imprescindível orientação, sempre atenta e precisa. À professora Ana Lúcia de Lyra Tavares pelo decisivo e fascinante aprendizado do direito comparado. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro pelo aprendizado, especialmente ao professor José Ribas Vieira pelo exemplo de dedicação à pesquisa. Aos colegas do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialmente Flávia e Bernardo pelo companheirismo. Ao Procurador-Chefe da Procuradoria Regional do Trabalho da 1ª Região, Dr. José Antonio Vieira de Freitas Filho, pelo inestimável apoio. À Procuradora do Trabalho, Doutora Daniela Ribeiro Mendes, pelo incentivo fundamental. Aos meus irmãos Valéria e Carlos pela colaboração. Ao meu marido Marcelo e aos meus filhos Guido e Ivan por tudo.
7 RESUMO SILVA, Cláudia Paiva Carneiro da. O Amicus Curiae na Suprema Corte Americana e no Supremo Tribunal Federal Brasileiro: um estudo de direito comparado. Rio de Janeiro, Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, O objetivo desta pesquisa é ampliar o olhar crítico sobre o amicus curiae na jurisdição constitucional brasileira através da comparação com o mesmo instituto na jurisdição constitucional americana. A pesquisa inova pela análise empírica realizada, fundamental para as conclusões de pesquisa sobre um instituto que está sendo construído na prática do Supremo Tribunal Federal (STF). Em ambas as dimensões comparadas teórica e prática, encontramos semelhanças e diferenças significativas. Uma das diferenças consiste na relevância da participação de amici curiae na fase de certiorari da Suprema Corte americana comparada à total ausência deles na análise de repercussão geral pelo STF. Quanto ao interesse, na Suprema Corte, os amici partidários são aceitos e esperados, enquanto no STF, há ainda indefinição quanto ao interesse esperado, se neutro ou partidário. Em relação aos procedimentos, uma diferença a favor do instituto brasileiro foi constatada: a sustentação oral é mais restrita nos Estados Unidos que no Brasil. Quanto à função exercida na jurisdição constitucional, no Brasil, a verdadeira função do amicus curiae parece ser dar legitimidade às decisões do Supremo Tribunal Federal. Os casosreferência reforçam as conclusões quanto à ausência de função democrática e predominância de função legitimadora do amicus curiae brasileiro. A pesquisa conclui que os amici curiae são efetivamente importantes no processo decisório da Suprema Corte americana, mas ainda não o são no Supremo Tribunal Federal. Palavras-chave: Amicus curiae. Hermenêutica Constitucional. Direito Constitucional Comparado.
8 ABSTRACT SILVA, Cláudia Paiva Carneiro da. O Amicus Curiae na Suprema Corte Americana e no Supremo Tribunal Federal Brasileiro: um estudo de direito comparado. Rio de Janeiro, Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, This research extends a critical look at the amicus curiae in Brazilian constitutional jurisdiction by comparing it with the same institute in American constitutional jurisdiction. The research breaks new grounds of empirical analysis, critical to the findings of an institute that is being constructed in the practice of the Supremo Tribunal Federal (STF). In both dimensions compared - theory and practice - we find similarities and differences. One difference is the importance of the participation of amici curiae in the certiorari stage of the Supreme Court compared to the total absence of them in the analysis of overall impact by the STF. As for the interest, at the American Supreme Court, the partisan amici are accepted and expected, while at the Brazilian Court there is still uncertainty about the value expected if neutral or partisan. As far as procedures are concerned, a difference in favor of the Brazilian institute was observed: the oral argument is more restricted in the United States than in Brazil. As to the function performed in a constitutional court, in Brazil, the true function of the amicus curiae seems to be to give legitimacy to the decisions of the Brazilian Court. The reference cases reinforce the conclusions about the lack of democratic function and prevalence of the legitimizing function of the amicus curiae in Brazil. This research leads to the conclusion that the amici curiae are indeed important in the decision making of the American Supreme Court, but they are not so, yet, on the Brazilian Supremo Tribunal Federal. Keywords: Amicus curiae. Constitutional Hermeneutics. Comparative Constitutional Law.
9 LISTA DE TABELAS Tabela 1 Memoriais de amici curiae por categoria Suprema Corte 1982 Tabela 2 Memoriais de amici curiae por categoria STF 1999 a 2005
10 LISTA DE ABREVIATURAS ADI ADC ADPF AgR AMC CDC CDH CF CONFENEM CPC CUT DCE DJ DJe EC FENAJUFE MS RE RISTF STF TJ UENF UERJ UFRS UnB Ação Direta de Inconstitucionalidade Ação Declaratória de Constitucionalidade Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental Agravo Regimental Associação dos Magistrados Catarinenses Código de Defesa do Consumidor Conectas Direitos Humanos Constituição Federal Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino Código de Processo Civil Central Única dos Trabalhadores Diretório Central dos Estudantes Diário de Justiça Diário de Justiça Eletrônico Emenda Constitucional Federação Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores do Judiciário Federal Mandado de Segurança Recurso Extraordinário Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal Supremo Tribunal Federal Tribunal de Justiça Universidade Estadual do Norte Fluminense Universidade Estadual do Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio Grande do Sul Universidade de Brasília
11 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...11 PARTE I O AMIGO AMERICANO...16 Capítulo 1 Contextualização A Tradição Jurídica da Common Law O Sistema Judicial Americano A Suprema Corte dos Estados Unidos Breve histórico do instituto americano...24 Capítulo 2 Configuração Jurídica Participantes Os amici individuais Os amici governamentais Os amici grupos de interesse Interesse do Participante Procedimentos As regras da Suprema Corte Contribuições monetárias Sustentação oral Função Função informativa Função estratégica Função lobista...44 Capítulo 3 Caso-referência: Cotas nas universidades americanas Ação afirmativa Grutter v. Bollinger Participação de amici curiae...50 PARTE II O AMIGO BRASILEIRO...54 Capítulo 1 Contextualização A Tradição Jurídica Romano-Germânica O Sistema Judicial brasileiro O Supremo Tribunal Federal Breve histórico do instituto brasileiro...59 Capítulo 2 Configuração jurídica Participantes Os amici individuais Os amici governamentais Os amici grupos de interesse Interesse do Participante Procedimentos Requisitos de admissibilidade Poderes recursais Sustentação oral Audiências públicas Função Função informativa...erro! Indicador não definido.
12 Função democrática Função legitimadora...86 Capítulo 3 Caso-referência: Cotas nas universidades brasileiras Ação afirmativa no Brasil ADPF 186 e Recurso Extraordinário /RS Participação de amici curiae...93 CONCLUSÃO...95 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANEXOS...109
13 11 INTRODUÇÃO Nos últimos anos, vários artigos e livros dedicados à figura do amicus curiae foram publicados no Brasil. A maioria deles aborda os aspectos processuais do instituto, buscando estabelecer seus contornos, devido à pouca normatização existente em nosso ordenamento jurídico (AGUIAR, 2005; BUENO, 2008). Alguns estudiosos também abordam a função exercida pelo amicus curiae, ressaltando seu papel democrático e pluralizador do debate constitucional (DEL PRÁ, 2008; PRADO, 2010). Há ainda quem procure abordar a eficácia do ingresso do amicus curiae no controle de constitucionalidade brasileiro, buscando verificar a sua influência no processo de tomada de decisão no Supremo Tribunal Federal (MEDINA, 2010). Entretanto, esse tipo de abordagem, tão comum nos Estados Unidos 1, onde o instituto é largamente utilizado desde os anos quarenta, acaba sendo prejudicado no Brasil devido à participação de amici curiae em somente 13,4% das ações do controle concentrado de constitucionalidade no período compreendido entre 1999 e No presente trabalho, pretendo colaborar para a construção do conhecimento sobre a controvertida figura processual através do enfoque do direito constitucional comparado. Apesar de este não ser o primeiro estudo comparado sobre o amicus curiae no Brasil (BISCH, 2010), pretende ser inovador pela utilização da metodologia comparada de forma sistemática e, principalmente, pela análise empírica realizada, fundamental para as conclusões de pesquisa sobre um instituto que está sendo construído na prática do Supremo Tribunal Federal. 1 Paul Collins (2003, p.1) cita 40 estudos que analisam a influência de amici curiae no decision making da Suprema Corte americana. São eles: Acker (1990), Barker (1967), Behuniak-Long (1991), Day (2001), Ennis (1984), Epstein (1985, 1993), Harper and Etherington (1953), Hassler and O Connor (1986), Heberlig and Spill (2000), Hedman (1991), Ivers and O Connor (1987), Kearney and Merrill (2000), Kobylka (1987), Kolbert (1989), Krislov (1963), Lawrence (1989), Manz (2002), McGuire (1990, 1995), Moorman and Masteralexis (2001), Morris (1987), O Connor (1980), O Connor and Epstein (1982b, 1983), O Neill (1985), Parker (1999), Puro (1971), Roesch, Golding, Hans and Reppucci (1991), Ross and Catalano (1988), Rushin and O Connor (1987), Samuels (1995), Songer and Sheehan (1993), Spriggs and Wahlbeck (1997), Sungaila (1999), Tai (2000), Vose (1955, 1959), Wasby (1995), and Wohl (1996). 2 Segundo Almeida, foram identificadas 242 ações com manifestações de amicus curiae de um total de 1800 ações no Supremo Tribunal Federal no período compreendido entre 1999 e (2006, p.66).
14 12 A pesquisa está delimitada à utilização do amicus curiae no âmbito do Supremo Tribunal Federal e da Suprema Corte americana. Não há como comparar em outras instâncias judiciais pela diferença na abrangência do instituto nos dois países. Nos Estados Unidos o amicus curiae é utilizado de forma ampla em todos os graus de jurisdição, o que não ocorre no Brasil, onde sua utilização é praticamente restrita ao controle de constitucionalidade. 3 Este quadro pode mudar se o anteprojeto do novo Código de Processo Civil for aprovado com a previsão de amicus curiae em todos os graus de jurisdição. 4 O amicus curiae americano foi escolhido como contraponto pelo fato de ser paradigmático, 5 servindo de modelo para o mundo, tal como a própria corte constitucional americana (BARBOSA MOREIRA, 2003). Além disso, a literatura nacional e estrangeira sobre o assunto é extensa, permitindo o acesso a pesquisas abordando o instituto sob os mais diversos ângulos. 6 Assim, a profundidade do debate americano e a maturidade alcançada pelo instrumento processual nos Estados Unidos permitem olhar o amicus curiae brasileiro de forma diferenciada. A pesquisa se fixa na prática jurídica atual, levando em conta a diferença temporal entre os institutos, pois, se considerarmos apenas o tempo de regramento formal, o amigo americano tem mais de 70 anos, enquanto o amigo brasileiro tem apenas 10 anos de vida. Contudo, um breve histórico dos institutos é necessário 3 Alguns autores entendem que as intervenções da Comissão de Valores Mobiliários (Lei nº 6.385/76), do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Lei nº 8.884/94), do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96), da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/94) e das pessoas jurídicas de direito público (Lei nº 9.469/97) são hipóteses anteriores e em outros graus de jurisdição de atuação do amicus curiae, o que não iremos abordar por não fazer parte do objetivo do presente trabalho. 4 Na exposição de motivos do novo CPC consta que: criou-se regra no sentido de que a intervenção pode ser pleiteada pelo amicus curiae ou solicitada de ofício, como decorrência das peculiaridades da causa, em todos os graus de jurisdição. Entendeu-se que os requisitos que impõem a manifestação do amicus curiae no processo, se existem, estarão presentes desde o primeiro grau de jurisdição, não se justificando que a possibilidade de sua intervenção ocorra só nos Tribunais Superiores. Evidentemente, todas as decisões devem ter a qualidade que possa proporcionar a presença do amicus curiae, não só a última delas. (p.23) 5 Daniela Medeiros corrobora afirmando que o amicus curiae no ordenamento pátrio desenvolve-se inspirado no direito norte-americano, de onde importamos o instituto fazendo as devidas burilações à nossa realidade jurídica. É notável o patamar de apuração do amicus curiae nas cortes dos Estados Unidos, sendo o país referência quando se investiga a aplicação desse curioso amigo da corte (2008, p.20-21). 6 Existe, por exemplo, uma pesquisa qualitativa em que foram entrevistados os assistentes dos Justices para verificar se todos os memoriais de amici curiae são realmente lidos e se a decisão acerca da leitura do memorial depende da importância ou notoriedade do signatário (LYNCH, 2003).
15 13 para diferenciar o percurso de construção do amicus curiae em ambos os ordenamentos jurídicos e auxiliar na compreensão de suas configurações atuais. O objetivo da pesquisa é ampliar o olhar crítico sobre o amicus curiae na jurisdição constitucional brasileira através da comparação com o mesmo instituto na jurisdição constitucional americana. Nessa avaliação comparativa, não se pretende exaltar um modelo em detrimento do outro, mas justamente o contrário: verificar se, na doutrina e na prática judicial, não está havendo a exaltação de um modelo que pode não ser aplicável à realidade brasileira. A relevância desta pesquisa reside no fato de que o amicus curiae é um dos temas centrais do debate acadêmico atual e que ganhou destaque em projetos desenvolvidos no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro 7, contribuindo para uma perspectiva reflexiva e crítica sobre o Poder Judiciário brasileiro. A pesquisa se divide em duas partes: na primeira, o amicus curiae nos Estados Unidos é analisado; na segunda, o amicus curiae no Brasil, utilizando as mesmas variáveis de comparação, assinalando as semelhanças e, principalmente, as diferenças em suas configurações atuais. Em ambas as partes, utilizamos casos-referência de matéria correlata para verificar, na prática, a participação de amici curiae nas cortes supremas dos dois países. Na parte americana, analisamos o caso Grutter v. Bollinger (539 U.S. 306) que, em 2003, retomou na Suprema Corte americana a questão da utilização do critério de raça para ingresso no ensino público superior, decidida em 1978 no caso Regents of University of California v. Bakke (438 U.S. 265); na parte brasileira, as ações judiciais que tratam da constitucionalidade das políticas de ação afirmativa de reserva de vagas no ensino superior, que foram objeto de audiência pública realizada no Supremo Tribunal Federal em março de Desta forma, iremos fazer o contraste entre as realidades comparadas para verificar se os amici curiae, aparente ou nominalmente, se assemelham, pois não é 7 Especialmente nos projetos desenvolvidos pela minha orientadora, Margarida Maria Lacombe Camargo, tanto individuais ( As audiências públicas nas decisões do Supremo Tribunal Federal brasileiro: repercussão e alcance ) quanto coletivos ( Representação Argumentativa e Desenhos Institucionais: um estudo sobre o Supremo Tribunal Federal Brasileiro ). 8 São elas a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186 e o Recurso Extraordinário (RE) /RS.
16 14 suficiente levar em conta somente o nome do instituto. Para tanto, é indispensável considerar o que ele significa na lógica de cada sistema jurídico e na forma como o instituto é atualizado na prática jurídica local. A análise da dimensão prática do objeto de comparação é essencial na metodologia do direito comparado, pois a dimensão teórica pode ser similar à fonte de inspiração. O fenômeno do mimetismo jurídico nos mostra que Estados emergentes, como o nosso, costumam importar soluções de Estados desenvolvidos, como os Estados Unidos, sem necessariamente se refletirem na prática jurisdicional (TAVARES, 1983). Nesse sentido, Barbosa Moreira acrescenta que o funcionamento de certas instituições está longe de deixar-se captar na descrição das normas editadas para discipliná-las. Há um sem número de aspectos e elementos a cujo respeito guardam silêncio os textos, mas que nem por isso deixam de ter relevância às vezes muito considerável (2003, p. 51). É fato que o Brasil, na condição de ordem jurídica secundária, isto é, construída sob a influência de sistemas exportadores de direito, seja por via da colonização portuguesa (de 1500 a 1822), seja através de recepções voluntárias de direito (a partir da Independência), o direito estrangeiro foi amplamente utilizado em todos os ramos do direito, em maior ou menor grau (TAVARES, 1990, p.56). No direito constitucional, fomos profundamente influenciados pelo constitucionalismo americano. Contudo, na pesquisa, consideramos também a possibilidade do recurso às fontes européias, especialmente do direito constitucional alemão, influência marcante em nosso constitucionalismo recente. O amicus curiae é uma figura processual bastante difundida nos últimos séculos tanto em sistemas jurídicos das famílias da common law quanto da civil law, assumindo as mais diferentes feições e funções. Por este motivo, não há definição uniforme ou conceito que consiga abarcar toda a complexidade do multifacetado amicus curiae. Há controvérsia sobre todos os seus elementos e, até mesmo, quanto a sua origem, que muitos autores atribuem ao direito romano clássico. Com esta
17 15 denominação amicus curiae 9, ele surgiu no século XIV na Inglaterra, tendo sido transportado do sistema da common law inglesa, no início do século XVII, para os Estados Unidos 10, onde se tornou mundialmente conhecido. Os elementos que caracterizam o amicus curiae variam de tal forma nos atuais ordenamentos jurídicos que o vínculo com o instituto original do direito anglosaxão, muitas vezes, é apenas na denominação 11, não existindo correspondência de conteúdo. É o caso, por exemplo, do direito indiano atual, onde o amicus curiae também exerce a função de advogado dativo 12. Em outros ordenamentos, não há denominação própria, mas, quando um terceiro apresenta algum aspecto do instituto, a doutrina e a jurisprudência passam a denominá-lo como amicus curiae. Desta forma, o que chamamos de amicus curiae nos dois ordenamentos jurídicos em consideração podem ser institutos diferentes e necessitam ser contextualizados para que se possa proceder à análise das suas configurações atuais e, principalmente, da função que exercem na jurisdição constitucional das duas cortes supremas. 9 Significa amigo da corte em latim. 10 De acordo com Marc Ancel, foi o caso especialmente da Inglaterra, onde um verdadeiro regime de expansão legal foi verificado no início do século XVII. Logo após a expedição do May Flower e a instalação dos primeiros colonos sobre a costa Este da América, considerou-se que eles haviam transportado consigo, enquanto cidadãos britânicos, o sistema da common law, bem como as leis (o Statute book) aplicáveis nessa data. (1980, p. 75) 11 O atual instituto processual britânico mudou sua denominação para Advocate to the Court em 2001 (BISCH, 2010, p. 31). 12 Na Índia, se uma parte não está representada por advogado, a Corte pode indicar um amicus curiae para defendê-la tanto em matéria civil quanto criminal. A Corte também pode indicar um amicus curiae em qualquer matéria de interesse público (SEHGAL, 2008).
18 16 PARTE I O AMIGO AMERICANO Capítulo 1 Contextualização 1.1. A Tradição Jurídica da Common Law Há duas tradições jurídicas altamente influentes no mundo contemporâneo: a common law e a romano-germânica, denominada pelos common lawyers de civil law. Segundo John Henry Merryman, o termo tradição é mais apropriado que sistema, utilizado por outros autores (DAVID, 1996), pois sistema corresponde à idéia de um conjunto de instituições, procedimentos e regras de um determinado país, enquanto tradição jurídica é o conjunto arraigado de atitudes historicamente condicionadas sobre a natureza do direito, sobre o seu papel na sociedade e na política, sobre a organização e o funcionamento adequados do sistema jurídico e sobre a forma como a lei é ou deveria ser aplicada, estudada, aperfeiçoada e ensinada (MERRYMAN, 1985, p.3-4). É, portanto, parte da expressão cultural de uma sociedade ou, mais simplesmente, sua cultura jurídica. 13 As tradições da common law e da civil law não são isoladas e fazem parte da história e cultura ocidentais, tendo se influenciado reciprocamente através dos séculos 14. A tradição da civil law, segundo Merryman, é mais antiga, mais difundida (Europa continental, América Latina e em muitas partes da Ásia e da África) e talvez mais influente que a tradição da common law, que engloba a Grã-Bretanha, Irlanda e os países colonizados durante a expansão do império britânico Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, além de exercer influência em algumas nações da Ásia e da África. A distinção entre as duas tradições é atribuída basicamente às diferentes fontes formais do direito: decisões judiciais precedentes nos sistemas de common law e as leis nos sistemas de civil law. Entretanto, Merryman esclarece que esta é uma simplificação exagerada e pouco representativa da realidade (2009, p.53). 13 Segundo Garapon e Papapoulos, a cultura jurídica não seria senão a versão moderna do que se entendia outrora por tradição jurídica (2008, p.7) 14 Merryman apresenta alguns exemplos e leciona que a Constituição dos Estados Unidos poderia ser parcialmente explicada pela influência do Iluminismo europeu. Mais tarde, o constitucionalismo norte-americano teve uma influência enorme na América Latina e na Europa. O controle de constitucionalidade, por exemplo, está agora firmemente enraizado em ambas as tradições. O instituto jurídico do condominium, uma invenção da civil law, foi entusiasticamente recepcionado nos Estados Unidos, enquanto que muitos sistemas da civil law incorporaram um instituto típico da common law como o truste (2009, p.25).
19 17 Afinal, a produção legislativa também tem força normativa nos sistemas de common law e, da mesma forma, a produção judicial do direito nos sistemas de civil law. A diferença consistiria na ideologia subjacente às concepções do que é a lei ou o precedente em cada tradição. Assim, o código na civil law teria a pretensão de completude justamente para impedir a criação do direito pelo juiz, valorizando o legislador. Na common law, ao contrário, um conhecido brocardo as leis que derroguem a common law devem ser interpretados restritivamente 15 demonstra a valorização da decisão judicial e, consequentemente, dos juízes. De toda forma, a idéia principal da common law pode ser traduzida pela preferência dada ao precedente e não à lei como veículo do direito e, uma vez que uma decisão foi tomada, a mesma deve se repetir em todos os casos similares, garantindo a segurança jurídica. Por este motivo, é utilizada a expressão stare decisis, isto é, ater-se aos (casos) decididos (BARBOSA MOREIRA, 2003, p.43). Entretanto, isto não significa que a tese do precedente seja aplicada de maneira automática 16. É possível não engessar os casos futuros, pois apenas o núcleo central da decisão ratio decidendi tem autoridade e as variações nos casos concretos dão a flexibilidade necessária à permanente construção da jurisprudência, através da denominada técnica do distinguish para distinguir casos semelhantes ou mesmo quando o precedente é overruled, ou seja, quando é substituído por um novo precedente (BARBOSA MOREIRA, 2003, p.43-44). Para a tradição da common law, portanto, maior importância é dada ao caso concreto e ao procedimento judicial e, consequentemente, àquilo que as partes podem trazer de contribuição para o processo, enquanto que para a tradição romano-germânica o destaque maior é do direito substantivo, que constitui um sistema fechado em que toda questão deve encontrar sua solução na codificação. Importante, ainda, salientar que a cultura jurídica da common law sofreu importantes modificações nos Estados Unidos pelos pais fundadores impregnados de Iluminismo que, segundo Garapon e Papadopoulos, efetuaram uma síntese com os ideais franceses da Revolução. Para eles, a genialidade na construção do direito 15 Tradução livre do original: Statutes in derogation of the common law should be strictly construed. 16 Merryman afirma que há um folclore corrente nas duas grandes tradições jurídicas a respeito do processo judicial, pois não é mecânico o processo de encontrar e aplicar o precedente na common law, como também não é o processo de encontrar e aplicar a legislação na civil law (2009, p.73).
20 18 americano estaria nessa combinação dos dois grandes modelos ocidentais: civil law e common law (2008, p.30). A Constituição, a Suprema Corte e a idéia de direitos civis constituem, segundo os citados autores comparativistas, as maiores originalidades americanas em relação à common law tradicional, onde a perspectiva de um direito abstrato e geral não cabe na mentalidade daqueles que permanecem com a idéia de direitos apenas subjetivos (GARAPON; PAPADOPOULOS, 2008, p ). Uma característica da relação dos americanos com o direito é que eles consideram o procedimento jurídico a essência do direito. Segundo a antropóloga Carol Greenhouse, os americanos não julgam o direito pela sua substância, mas, sim, por seus elementos processuais (apud GARAPON; PAPADOPOULOS, 2008, p ) O Sistema Judicial Americano O sistema judicial americano é dividido em um sistema de âmbito federal e 50 sistemas estaduais autônomos. A autonomia dos Estados americanos é mais acentuada que no Brasil, repercutindo diretamente nos órgãos judiciais que, apesar de possuírem uma estrutura semelhante, são totalmente independentes, podendo apresentar características e procedimentos distintos (REIS, 1996, p.39). Basicamente os Estados têm, na primeira instância, uma jurisdição que divide os casos de maior ou menor importância. Na segunda instância, nos estados menores eles apenas têm um tribunal de apelação. Nos estados maiores, existem alguns tribunais de apelação. Em todos os estados, existem as cortes supremas estaduais. No sistema federal, a base são as cortes distritais (District courts), de um a quatro por estado americano, que correspondem à primeira instância federal. A segunda instância conta com 12 cortes de apelação (Circuit Courts ou Courts of Appeal) para o total de 50 Estados americanos, sendo que cada uma delas constitui o denominado circuito judiciário, incluindo três estados ou mais. A segunda instância também possui cortes especializadas (Specialized Courts) que são: Tax Court, Court of Federal Claims, Court of Veterans Appeals, Court of lntemational Trade. O sistema legal nos Estados Unidos é baseado em um sistema acusatório (adversary system), como geralmente ocorre nos países de tradição da common law,
21 19 ao contrário dos países de tradição romano-germânica, onde o sistema é, normalmente, inquisitorial. No sistema acusatório, as partes da controvérsia desenvolvem e apresentam seus argumentos, suas evidências e suas testemunhas e, assim, controlam o processo. O juiz ou o júri permanecem neutros e passivos durante todo o procedimento e a participação voluntária de terceiros não é bem vinda pelas partes 17. Entretanto, a estrita observância do sistema acusatório nos Estados Unidos não é possível ou mesmo desejável, segundo Barker (1967, p.1). Afinal, muitas controvérsias levadas ao Judiciário, especialmente em matéria constitucional, afetam mais pessoas do que os adversários imediatos e que, pelo alcance dos precedentes, poderiam ser prejudicadas 18. A participação de terceiros no sistema acusatório americano foi formalmente admitida em 1939 com a adoção do Federal Rules of Civil Procedures, 19 que regulou a intervenção de terceiros de forma obrigatória e de forma facultativa. A facultativa não se confunde com a intervenção do amicus curiae, pois exige uma questão comum de fato ou de direito, sendo semelhante ao instituto do litisconsórcio em nosso direito. Neste caso, o terceiro é admitido como parte por motivo de economia processual, como esclarece Elisabetta Silvestri: A intervenção facultativa, ao contrário, parece não estar relacionada ao papel do amicus, na medida em que ignora totalmente o interesse de terceiros no caso, mas pode ser autorizada pelo juiz apenas quando o pedido apresentado pelo terceiro levanta questões idênticas às descritas pelas partes originárias e por motivo de economia processual, permitindo uma adequada decisão unitária (1997, p , tradução nossa). A admissibilidade na intervenção obrigatória depende do interesse do terceiro na propriedade ou transação objeto da demanda e na sua submissão aos efeitos da decisão, o que também afasta o papel exercido pelo amicus curiae nessa forma de intervenção. Assim, o memorial de amicus curiae não é a única forma pela qual terceiros podem ingressar em um litígio nos Estados Unidos. 17 Segundo Krislov, o princípio fundamental subjacente ao procedimento legal é que as partes na controvérsia devem ter o direito de pleitear livres da interferência de estranhos (1969, p.2, tradução nossa). 18 Munford acrescenta que as decisões, porém, não pertencem apenas às partes. Como a Suprema Corte afirmou [...], as decisões são importantes para a comunidade jurídica como um todo. A comunidade merece uma voz (1998, p.1, tradução nossa). 19 As regras para participação de terceiros no Federal Rules of Civil Procedures podem ser conferidas no Anexo A.
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