(Re)significando o locus da formação inicial: a pesquisa do si mesmo



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Transcrição:

(Re)significando o locus da formação inicial: a pesquisa do si mesmo Diva Spezia Ranghetti (PUC/SP, UNERJ/SC) diva.ranghetti@uol.com.br É propósito deste texto refletir a relevância da pesquisa do Si Mesmo na formação inicial. As reflexões que apresento foram extraídas da pesquisa de doutorado, na qual analiso, em um de seus capítulos, a pesquisa do Si Mesmo, desenvolvida com alunos (as) do curso de Pedagogia do Centro Universitário de Jaraguá do Sul UNERJ/SC. Essa pesquisa oportuniza ao próprio ser tomar sua vida nas mãos a partir do movimento provocado pelas relações temporais e pelas trocas incessantes entre a interioridade e a exterioridade do ser. O olhar para dentro de si é imprescindível para compreender o profissional que se quer ser e a percepção de que a construção de si é conseqüência da própria formação. Palavras-chave: Interdisciplinaridade, Formação, Professores, História de Vida, Pergunta. A pesquisa do Si Mesmo propicia o encontro com a própria marca registrada, relevante para que o ser humano se encontre e encontre o seu caminho. O movimento de ir e vir, energizado pelo exercício de reflexão, pelas interferências feitas a partir das perguntas e indicações registradas no texto é desestabilizador. O(a) aluno(a) é impulsionado a sair da curiosidade ingênua e a experimentar o sabor da curiosidade epistemológica, tão enfatizada por Freire (1995, 1997). Sendo assim, utilizar o espaço de formação para compreender o profissional que se quer ser e a percepção de que a construção de si é conseqüência da própria formação é uma questão de atitude. Atitude de abertura, de encontro, de autoconhecimento, de busca e construção de sentido do ser que se é e que se deseja ser. Este texto objetiva discutir a relevância da pesquisa do Si Mesmo na formação inicial. As reflexões que apresento foram extraídas da pesquisa de doutorado: Uma lógica curricular para a formação de professores: a estampa de um design, na qual analiso, em um de seus capítulos, a pesquisa do Si Mesmo desenvolvida com alunos(as) do curso de Pedagogia do Centro Universitário de Jaraguá do Sul UNERJ/SC. A tese foi sendo tecida com fios da matriz metodológica e epistemológica da interdisciplinaridade, teoria que abriga aspectos da razão tanto quanto do coração. Gaston Pineau (2003), no III Simpósio Internacional sobre Interdisciplinaridade - PUC/SP, em fala entremeada de emoção, expressa: A descoberta, para mim, da história de vida foi permitir articular duas vidas de mim mesmo que estavam separadas: a vida intelectual e a vida pessoal. [...] A melhor maneira de mudar o mundo é mudar a si mesmo na medida em que quisermos que o mundo seja mudado. Na vida nós nos autorizamos sermos nós mesmos e isso transforma relações de poder. Essas reflexões revelam o quanto é significativo ter consciência da própria formação, para assumir com autoridade o caminho que se quer percorrer, dando sentido particular aos desvios que serão necessários na travessia do percurso escolhido. Suas palavras conduziram-me a refletir, sobre as imagens que se vêem ao observar um caleidoscópio. São imagens que só ao observador pertencem. É isso que a pesquisa autobiográfica possibilita: uma interpretação pessoal do percurso vivido. O saber da formação provém da própria reflexão daqueles que se formam (DOMINICÉ apud NÓVOA, 1995, p. 24).

Para Pinar (1995), o método autobiográfico possibilita investigar como nossa objetividade e subjetividade são formadas, [...] permite focalizar o concreto, o singular, o situacional, o histórico na nossa vida. [...] tem objetivo libertador, emancipador [...] contribui para a transformação do próprio eu. (apud SILVA, 1999, p.44). Nesse sentido, Maturana e Varela (1995, p.26) revelam que [...] a libertação do ser humano está no encontro profundo de sua natureza consciente consigo mesma [...]. Portanto, a formação inicial do professor não deve prescindir de uma atitude investigativa, na qual se des-vela e revela a formação da trama pessoal e profissional. Foi com essa investigação que se deu o encontro com o meu eu o sagrado que habitava em mim. Segundo Nóvoa (1995b, p.20-22) é possível caracterizar nove tipos de estudos sobre a pesquisa História de vida, conforme seus objetivos e dimensões. A pesquisa do Si Mesmo, relaciona-se ao grupo 7. Tem objectivos essencialmente emancipatórios, relacionados com a investigação-formação versus pessoa (do professor). Nesse tipo de estudo, há um conjunto de iniciativas em que os profissionais são chamados a desempenhar, simultaneamente, o papel de objectos e de sujeitos da investigação. As correntes das biografias educativas terão sido, porventura, as que levaram mais longe esta lógica de co-produção (Dominicé, 1990; Josso, 1991). Gaston Pineau (1983, 1987) e Jennifer Nias (1989) são autores de referencia nesse domínio. No Centro Universitário de Jaraguá do Sul UNERJ/SC o curso de Pedagogia habilita o pedagogo a atuar nos quatro primeiros anos do Ensino Fundamental e na Educação Infantil. A disciplina de Estágio curricular II e III intenciona organizar, de forma reflexiva, os processos históricos, culturais, econômicos e educacionais presentes nas constituições pessoal e profissional dos sujeitos da pesquisa para que compreendam as interações entre esses dois processos de formação. Utilizo-me de cinco pesquisas (2001, 2002 e 2003) por mim orientadas via e-mail acompanhando os diferentes momentos em que a pergunta se fez necessária para ver além do aparente, dos registros objetivos que exteriorizavam. Uma pesquisa dessa natureza suscita um acompanhamento mais próximo, cuidado, cumplicidade, conhecimento mútuo, empatia. Para tanto, o uso do correio eletrônico para entrega da pesquisa ou trabalhos constituiu-se, como locus, no qual os registros ganham vida, possibilitando acompanhar o movimento do pensar do aluno, a teoria de que está se apropriando e as relações que faz com a prática vivida. Também foi uma maneira de eu refletir, como professora, sobre a qualidade de minhas interferências, a coerência entre o solicitado e o cobrado e o meu processo de ensinante-aprendiz. Nessa pesquisa o problema é delimitado pelas experiências escolares vividas, como alunos, pelos futuros professores. Após a reflexão sobre a própria formação, com as lentes do tempo/espaço presente, como pessoa e profissional, desvelam-se algumas marcas que continuam impregnadas em seu ser, compondo sua identidade pessoal e profissional. Essas marcas se fazem presentes pela repetição ou pela ausência de determinados fatos, relações que foram desencadeadas ao longo da vida do sujeito. Após a história narrada, a espera vigiada deve acompanhar o olhar do sujeito que pesquisa sobre si mesmo, estabelecendo uma escuta e uma fala com a própria história para extrair as marcas que significativamente contribuíram para a sua composição pessoal e profissional, com autoconsciência do seu devir. Assim, reler o vivido, o analisado e o refletido, após um tempo de distanciamento, novas aprendizagens e descobertas se apresentam, visto que re-olhar o já visto é possibilitar novas oportunidades para aprender e apreender o sentido e o significado intrínseco presente no fenômeno que se olha. A elaboração crítica daquilo que somos é, para Gramsci (apud GIROUX, 1997) [...] conscientizar-se, isto é, um conhece-te a ti mesmo como um produto histórico cultural que deixou em ti uma infinidade de traços recebidos em seu benefício no inventário. Parece-me que a partir do momento que se consegue percorrer o nó que envolve o embrulho da vida se consegue perceber o valor que o embrulho esconde. Toma-se consciência que o espaço que se ocupa no mundo é um espaço singular e que cada ser humano pode dar sentido, significado, cheiro, cor e sabor especial aos movimentos que produz com o próprio eu. Diante dessa consciência se consegue ser livre para desenhar os próprios passos em relação à profissão e a vida. Passos projetados com o sabor de liberdade, cheiro da intencionalidade e cor da sabedoria que expressam o sentido do existir. 2

Este movimento circular, próprio da pesquisa interdisciplinar, provocado pelas relações temporais e pelas trocas incessantes entre a interioridade e a exterioridade do ser, possibilita a transcendência da consciência inicial, ou seja, a percepção de que a construção de si é conseqüência da própria formação. De acordo com Pineau (1983) (apud MOITA, 1995, p.114), [...] à unidade do ser é atravessada pela pluralidade sincrônica e diacrônica. A pluralidade sincrônica é realizada por trocas entre o interior e o exterior do ser e a diacrônica entre os diferentes momentos ao longo das fases de transformação do ser. Nesse movimento, os sujeitos da pesquisa e a orientadora inseriram-se num movimento de compreensão, por meio do qual desvelam diferentes formas de afetar e ser afetado e observam a partir do próprio interior e do interior do universo a ser pesquisado, o movimento das ações exercidas. A formação do ser humano deve ter como sustentáculo fios que resistem ao autoritarismo, à repressão, à resistência para conjugar a autoridade, a flexibilidade, a liberdade, o que requer que o pensamento seja exercitado. Nesse sentido, é imprescindível utilizar-se do espaço de formação para compreender o profissional que se quer ser. Por isso, [...] ser o profissional no qual se torna é uma alternativa, uma saída que o sujeito constrói, a fim de realizar um projeto emergente em sua subjetividade. [...], pensar a formação profissional requer pensar a formação de si. (PEREIRA, 2000, p.95). Essa reflexão permite ao futuro professor, conhecer as marcas que influenciaram para que escolhesse a profissão professor. Nessa perspectiva, a formação inicial é um dos locus de reflexão, análise e compreensão do ser humano como sujeito que afeta e é afetado pelas circunstancias do contexto em que vive. A teoria da Interdisciplinaridade constitui a matriz geradora da pesquisa que utiliza procedimentos e recursos, como a autobiográfica, a investigação hermenêutica, a história de vida, a ego-história, a narrativa, a memória, os símbolos, as metáforas e a pergunta. Esses procedimentos e recursos auxiliam na análise, compreensão e interpretação do percurso que se propõe investigar. Para Heidegger, Gadamer e Taylor, a atividade de interpretação não é apenas uma opção metodológica, mas [...] a própria condição da investigação humana. [...]. Assim sendo, [...] centram-se nos processos pelos quais os significados são criados, negociados, mantidos e modificados dentro de um contexto especifico da ação humana. (SCHWANDT, 2000 (1994), p.6). Desse modo, o olhar da interdisciplinaridade assemelha-se ao olhar do artista, [...] olha não o visível, mas através do invisível o que ele, e nele, se esconde. Olhar penetrante que é capaz de transformar a opacidade do mundo material em um mundo de transparente luminosidade. (RODRIGUES, 1999, p.43). A intencionalidade deste olhar está na materialização de uma relação entre orientador e orientando pautada na [...] cumplicidade, confiabilidade e desvelamento [...] (FAZENDA, 2001, p. 226), durante a pesquisa. A relevância de um olhar e uma escuta sensível (BARBIER, 1993; FREIRE, 1997; FAZENDA, 2001), para perceber na singularidade a diversidade, na coletividade a individualidade. No início do registro da história, alguns sujeitos questionavam o porquê de remexer com o passado. Em que isso auxiliaria na formação profissional? Alguns diziam: O que passou, passou, quero viver o presente, minha infância foi maravilhosa, não tenho nada para refletir, não consigo lembrar dos anos inicias da escolarização. Fazer a história de vida (referindo-se a disciplina de Estágio Curricular) não deveria ser obrigatório. Tais comentários são representativos da resistência frente ao autoconhecimento. Tais expressões representam o quanto, o aluno adulto não é atingido facilmente pelas necessidades vindas de fora, porque possui vontade, desejos, idéias, cultura própria. Contudo, essa resistência inicial não deve ser considerada como algo defensivo. Para Jung, o adulto tem responsabilidades pela própria educação e esta, conforme Freire (1998-1992 ), implica reconhecer-se como ser sendo na história. Processos educativos com este caráter possibilitam ao ser humano, em formação, desnudarse diante de si, percebendo-se como ser de possibilidades. Ser o investigador e o investigado é saber-se ser de coragem e de ousadia para o enfrentamento de fortes emoções. Estes se mesclavam com a alegria e a tristeza que a memória adormecida traz para o tempo atual. Entretanto, recuperar a memória por meio da língua, da fala e da escrita é contar uma história que se constitui 3

da seleção do vivido que mais marcou, o que foi mais significativo, tornando-se inesquecível e inesgotável (FAZENDA, 1995a, p.83). Nesse sentido, orientar o olhar pelas trilhas da pesquisa autobiográfica suscita em quem olha um olhar interdisciplinar, perquiridor, atento, que vasculha, penetra entre as frestas, vê o que nunca foi percebido. É preciso adequar o zoom do olhar para distanciar-se e aproximar-se, familiarizar-se, estranhando o fenômeno que se pesquisa para conhecê-lo em totalidade. É um olhar carregado de luz que possibilita ver, perceber e intuir o que ainda permanecia revestido por finos véus. Sendo assim, olhar para dentro de si, com o intuito de construir-se a partir do diálogo entre a micro (auto) e a macro-história (co-eco-hetero) (PINEAU) apresenta-se como locus de construção de sentido, de aproximação da essência do sentido da vida porque se toma consciência de que o espaço que se ocupa no mundo é um espaço singular. Acompanhar o processo de metamorfose pelo qual os (as) alunos(as) passam é uma experiência singular. O brilho no olhar tem outra luz, a vida encontra sentido e o sentido do sentido do existir se revela. Descobre-se o sentido da teoria que abriga a experiência, a vida, os sonhos. Eis o profissional professor! Um ser se fazendo na história com a história e afetando e sendo afetado pela mesma. Perceber-se a si próprio é uma possibilidade para olhar, conhecer e agir em outras perspectivas. Este não é um dos papéis que exerce o orientador: auxiliar na reconstituição com olhar atual e marcado pelas vicissitudes históricas?. Na interdisciplinaridade, conhecer-se a si mesmo 4 [...] requer profundo exercício da humildade (fundamento maior e primeiro da interdisciplinaridade). Da dúvida interior à dúvida exterior, do conhecimento de mim mesmo à procura do outro, do mundo. Da dúvida geradora de dúvidas, a primeira grande contradição e nela a possibilidade do conhecimento [...] Do conhecimento de mim mesmo ao conhecimento da totalidade. (FAZENDA, 1995a, p.15). Nesse sentido, faz-se necessário, muitas vezes, direcionar a pergunta. Para Gadamer (2002 (1997), p. 534), É essencial a toda pergunta que tenha um sentido [...] de orientação. [...] para perguntar temos que querer saber, isto é, saber que não se sabe [...] para todo o conhecimento e discurso, em que se queira conhecer o conteúdo das coisas, a pergunta toma a dianteira.(grifos do autor). O autor continua: A colocação de uma pergunta pressupõe abertura, mas também uma limitação. Implica uma fixação expressa dos pressupostos que estão de pé, a partir dos quais mostra-se o questionável, aquilo que permanece ainda aberto. (2002, 1997, p. 536). O registro, a análise e a reflexão do percurso vivido possibilitam ao ser que pesquisa apropriar-se do movimento da própria constituição, trazendo luz aos momentos vividos naquele contexto histórico-social-cultural e educacional, representativos dos sucessos e insucessos, das angústias, dos medos que, muitas vezes, permaneceram e/ou permanecem aninhados no interior do ser. Essa pesquisa é imprescindível à compreensão do si mesmo, sobretudo porque não é inventariar todo o percurso vivido, mas [...] parar de fugir de si mesmo e escolher-se o profissional que se torna. (PEREIRA, 2000, p.94). Desse modo, percebo que a pergunta amplia o próprio olhar sobre o que se investiga na tentativa de conhecer em totalidade. É neste momento que a observação tem sua relevância. Saber observar e saber esperar são habilidades a serem desenvolvidas por todos os profissionais. Observar fios e nós que constituíram o tecido de formação de nossa identidade como pessoas e profissionais [...] é uma arte reinventada que supõe sensibilidade, intuição, escuta, sintonia com a vida, com o humano. (ARROYO, 2001, p.47). A arte da reflexão 1 exige a [...] imersão consciente do homem no mundo da sua experiência, um mundo carregado de conotações, valores, intercâmbios simbólicos, interesses sociais e cenários políticos. (PÉREZ-GÓMES,1997, 1 Conforme Garcia (1997b, p. 60), a reflexão como categoria primordial para a formação de professores tem origem, em 1933, com Dewey, o qual defendia que o ensino reflexivo levava a cabo o exame ativo, persistente e cuidadoso de todas as crenças ou supostas formas de conhecimento, à luz dos fundamentos que as sustentam e das conclusões para que tendem. In: NÓVOA, A. (coord.) Os professores e a sua formação. 3. ed. Lisboa, Portugal: Dom Quixote, 1997.

p.103). Para tanto, faz-se necessário vasculhar o passado no intuito de entender o presente para compreender além do alcance do olhar. Por isso, é o diálogo o movimento que dá sustentação aos entre-laços que compõem o existir. Observar é interpretar, integrando uma certa visão na representação teórica que fazemos da realidade, [...] favorece novas formas de aproximação da realidade social e nova leitura das dimensões socioculturais das comunidades humanas (FAZENDA 2000, p.11). Assim sendo, [...] a observação é uma interpretação teórica não contestada (grifos do autor), porém, ao colocar em dúvida o próprio conceito em relação ao fenômeno observado não se estará apenas observando, mas teorizando. (FOUREZ, 1995 (1991), p. 40). O ser humano,com a reflexão que faz sobre o relato da própria vida passa a conhecer-se, a refletir, analisar e apropriar-se da história e observa como algumas marcas legitimam um tipo particular de vida. Esse processo é denominado por Giroux (1997) de libertação da memória, que se dá pelo des-garramento do passado, limpando o presente do sofrimento que talvez exista. Essa libertação da memória representa possibilidade, esperança, sonho utópico de ser mais, ser diferente, ser inteiro, mudar o curso dos fatos e da história, pois o homem é ser de possibilidades e por isso, pode lutar, resistir e fazer opções. Alguns pressupostos se revelaram nos diálogos estabelecidos com os acadêmicos na produção dos registros da pesquisa do SI MESMO: apresentar-se, desestabilizar as certezas, perguntas que colocam em dúvida, respeito à cultura do sujeito, argumentos pautados na compreensão do sentido e significado das palavras, perguntas diretas, só pergunta quem já sabe a resposta, primeira pergunta é para o sujeito que pergunta, coerência entre o pensar e o agir; sentirse enamorado, a ausência conduz a busca, respostas com palavras que contem o sentido e significado, falar com o coração. O olho no olho, a confiança, a cumplicidade são pressupostos para que haja abertura, desvelamento e coragem para se ver e se perceber como ser humano que tem, muitas vezes, mais limites que possibilidades. Esse (re)ver-se deve ser uma atitude tanto da orientadora quanto dos orientandos. Os autores mostram que, quando se pesquisa sobre a própria vida, os sujeitos passam a ocupar o papel de espectador. Distanciam-se do que se mostra, estranham-se e, com o estranhamento, passam a compreender o processo vivido, (re)significando os movimentos e as afecções sofridas. Assim, percebem que o desejo de liberdade pode ser reconquistado, a partir da autoconsciência. Sentem-se mais responsáveis pela própria formação profissional, concebendo-a como uma formação contínua, que se desenha junto à história individual e social de cada um, ao longo da profissão. Como no caleidoscópio, as imagens só ao observador pertencem. Nesse sentido, o quadro da profissão permanece um eterno esboço, no qual novas tintas, outros pincéis, outros traços são acrescidos à profissão pessoal e profissional do ser professor. Essa atitude requer humildade para perceber os próprios limites e coragem para enfrentar os desafios e, muitas vezes, a (in) diferença dos pares e dos próprios sujeitos da pesquisa. Exige entrega e envolvimento no ato de conhecer, pois, na dimensão interdisciplinar, conhecer é abrir-se para o outro, querer, habitar algo ainda não conhecido. Por isso, o problema a ser pesquisado emerge da interioridade do ser. E por acreditar na relevância de uma educação que devolva ao ser a possibilidade de viver a liberdade conquistando seu lugar para ir se fazendo junto à história de outros seres humanos, peço licença para apropriar-me das palavras do poeta Carlos Drummond de Andrade e, reafirmar de um novo jeito, que no processo de nossa própria formação o importante é ser. Esse ser constitui-se de uma ciência feita de pequenas e grandes observações do cotidiano dentro e fora da pessoa. Quando não realizamos essas observações, não chegamos a ser; estamos desaparecendo. Destarte, [...] o eu nasce a partir do momento em que tem o poder de se refletir (HOFSTADTE, 1985 apud PINEAU, 2000, p. 41), ou seja, a reflexão sobre si é um dos espaços de formação. 5

6 REFERENCIAS ARROYO, M. G. Um dever-ser? In: Ofício de mestre: imagens e auto-imagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001 (2000). p. 27-49. CENTRO UNIVERSITÁRIO DE JARAGUÁ DO SUL. Coordenação de Estágio Curricular de Pedagogia. Documento norteador do estágio curricular. Jaraguá do Sul: 1995 FAZENDA, I. C. A Interdisciplinaridade: um projeto em parceria. 3. ed. São Paulo: Loyola, 1995b. (Coleção Educar). 119 p.. (org.). Dicionário em construção: interdisciplinaridade São Paulo: Cortez, 2001b. 272 p. FOUREZ, Gerard. A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. 1. reimp. São Paulo: Editora da UNESP, 1995 (1991). 319 p. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997. 165 p. Gadamer, Hans-Georg. Verdade e Método. 4ª. ed. Tradução de Flávio Paulo Meurer, Petrópolis, RJ: Vozes, 2002 (1997). 709 p. GIROUX, H. A. Os professores como intelectuais. Trad. Daniel Bueno. Porto Alegre: Artmed, 1997. 270 p. MOITA, M. da C. Percursos de formação e de trans-formação. In: NÓVOA, António. (org.). Vidas de Professores. 2. ed. Portugal: Porto Editora, 1995. p. 11-32. NÓVOA, Antonio. (org.). (org.). Vidas de Professores. 2. ed. Portugal: Porto Editora, 1995b. 192 p. PEREIRA, M.V. Nos supostos para pensar formação e autoformação: a professoralidade produzida no caminho da subjetivação. In: CANDAU, V. M. Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa. Encontro Nacional de didática e Prática de Ensino (ENDIPE). Rio de Janeiro: DP&A, 2000. p. 23-41. PÉREZ-GÓMEZ, A. La función y formación del profesor/a en la ensenansa para la comprensión: Diferentes perspectivas. In: SACRISTÁN, J.G.; GÓMEZ, P.A. Comprender la ensenansa. Madrid: Morata, 1992. p.398-429. PINEAU, Gastão. (org.). A autoformação no decurso da vida. Disponível em: http://www.cetrans.futuro.esp.br/pineau.htm. Acesso em 22 de mar. 2000 (1999). 6 p.. (org.). O sentido do sentido. In: NICOLESCU, B. et al. Educação e transdisciplinaridade. Traduzido por Vera Duarte, Maria F. de Mello e Américo Sommerman. Brasília: Unesco, 2000. p. 31-56. RANGHETTI, D. S. O conceito de afetividade numa educação interdisciplinar. 1999. 116 f. Dissertação (Mestrado em Educação: Currículo) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1999a. RANGHETTI, D. S. Uma lógica curricular para a formação de professores: a estampa de um design. 2005. 231f. Tese (Doutorado em Educação: Currículo) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005.. A história de vida na formação inicial de professores: espaço de reflexão e ressignificação. In: XI ENDIPE. Igualdade e diversidade na educação. Maio de 2002. Goiás. CD-ROM. p.1-8. RODRIGUES, Neidson. Elogio à educação. São Paulo: Cortez, 1999. 111 p. SCHWANDT, Thomaz A. Three epistemological stances for qualitative inquiry: Inerpretivis, Hermeneutics, and social Constructionism. In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. Handbook of qualitative research. 2. ed. Thousand Oaks, CA.: Sage, 2000 (1994 ). 36 p. SILVA, T. T. da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo horizonte: Autêntica, 1999. 156 p. SOARES, S. G. Arquitetura da identidade: sobre educação, ensino e aprendizagem. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2001. 119 p.

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