Ser mãe hoje Cristina Drummond Palavras-chave: família, mãe, criança. Hoje em dia, a diversidade das configurações familiares é um fato de nossa sociedade. Em nosso cotidiano temos figuras cada vez mais comuns tais como uma mãe, até mesmo um pai celibatário que cuida sozinho de seus filhos, famílias do meio rural que não se adaptam à vida das cidades, meninos de rua, casais hetero ou homossexuais ou ainda mulheres celibatárias que fazem apelo aos modernos métodos da ciência para ter filhos, o recurso à jurisdição para a adoção de crianças, as mães de aluguel, as mães adolescentes. Para pensarmos no que é ser mãe hoje, e não podemos nos esquecer de que queremos pensar essa questão à luz da psicanálise, vamos num primeiro momento tomar a mãe dentro do contexto da família. Na psicanálise, tomamos a família no sentido de uma estrutura necessária para pensar a questão do sujeito sendo ela responsável pela transmissão, não apenas do que assegura a reprodução e a manutenção da vida, como também da constituição de uma subjetividade: o que se transmite é uma relação particularizada, não anônima, com o desejo. Os historiadores e sociólogos nos ajudam a precisar as mudanças que ocorreram na família ao longo do tempo. A partir do século XVII a família tradicional sofreu mudanças significativas que levaram à constituição da família moderna. Em primeiro lugar, os casamentos, que antes eram feitos exclusivamente visando a preservação e perpetuação do patrimônio, passaram a ter como origem os laços de amor.em segundo lugar, as mães começaram a se preocupar com seus filhos. A educação e o cuidado do filho passam a ocupar um lugar central na família moderna. E em terceiro lugar, a família se isola em relação à comunidade na qual ela está inserida e se torna um universo fechado, inventor da vida privada, centrado na gestão da casa individual e respondendo às exigências de intimidade e de vida sentimental dos pais e dos filhos. Essa passagem para a família moderna implica num isolamento do sujeito. A família moderna já se reduz em muitos casos ao casal sexual e a metade das famílias atuais é monoparental. O drama da família está longe de ser apenas o resultado da liberação de um
sexo em relação ao outro. Ele resulta da assunção de duas solidões e essa famíla fabricou um sujeito que sofre os avatares desse individualismo. A relação das mães com seus filhos teve ainda novas mudanças no século XX a ponto de podermos falar de uma revolução materna. Essa revolução se desenrolou a partir dos anos 40 ao longo de três gerações de mulheres: a geração do baby-boom, a geração dos novos métodos contraceptivos para, enfim, chegar à geração das mulheres que querem a profissão, os filhos e as responsabilidades políticas. A instabilidade das famílias modernas não pode ser explicada pela rivalidade entre o homem e a mulher, já que inegavelmente as mulheres conquistaram definitivamente o mercado de trabalho e encontramos cada vez mais homens que estão em casa. A célula familiar pôde se acomodar sem dificuldades a essa troca de papéis. Ele dá, no entanto, duas causas para essa instabilidade. A primeira se refere à própria instabilidade das relações do casal já que, como vimos, os laços afetivos estão na base da família moderna.a segunda causa é a perda do controle que os pais tinham sobre os adolescentes. Os pais não são mais tomados como referência pelos filhos que buscam o saber fora de casa. O que temos na verdade apontado nessa questão é o declínio da função de autoridade paterna. Antes era mais fácil para o pai ser um herói ou um ideal para seu filho. Hoje em dia não se sabe mais o que é um pai. O pai moderno é um pai juridificado e é concebido no contexto do útil. Lacan nos ajudou a pensar a modernidade ou a contemporaneidade como uma mudança no discurso que organizava o mundo, mudança que podemos descrever como a instalação da ciência no lugar de comando, do que organiza atualmente o campo do inconsciente. Estamos não apenas imersos no discurso da ciência e do capitalismo como também somos produtos desta mudança. A ciência permite que se drible a infertilidade e que mulheres possam ter filhos sem que seu desejo de filho seja interrogado. Hoje em dia, ter um filho muitas vezes virou um imperativo, passando do possível ao obrigatório. O que está em questão é que o que é próprio da transmissão no seio da família operado pela função paterna e que é irredutível à variabilidade histórica escapa às reflexões da ciência porque não se insere nesta forma de pensar a vida como pura satisfação das necessidades. A ciência com suas técnicas de procriação assistida, franqueia às mulheres o acesso a um filho que não provenha da ação de um desejo. O desejo de ter um filho, atualmente se
tornou insistente e sintomático e essa espécie de direito a ter um filho se instalou de uma maneira absolutamente nova na história. O discurso universalizante da ciência tende a apagar esse particular que é transmitido pelo pai e que humaniza o sujeito. Essa pluralidade de técnicas criou, além disso, uma questão para o Estado que passou a legislar sobre esse desejo de se ter um filho através de tais meios. Agora se pode ter um filho fora da idade habitual, se pode ter um filho oriundo de fertilização com material de um banco de esperma, ou seja, de um doador anônimo. O efeito disso é que a criança passa a ser uma mercadoria, inclusive bastante cara. Ser mãe nessas circunstâncias implica muitas vezes em ter que se haver com todas as conseqüências da criança colocada nesse lugar de objeto de troca e de circulação e com as conseqüentes dificuldades de endereçar essa criança a um pai. Em 97 Eric Laurent e Jacques-Alain Miller proferiram juntos um seminário que se chamou O Outro que não existe e seus comitês de ética. Nele construíram o estatuto do Outro contemporâneo que se vê às voltas com a queda dos ideais e o crescimento dos objetos de consumo, dos ready-mades como os objetos para os quais os sujeitos se voltam. Essas mudanças que afetam todos os sujeitos alteraram particularmente o estatuto das mulheres e das mães. O que vemos hoje em dia é mães se ocupando cada vez mais sozinhas de seus filhos. Cada vez mais elas se tornam o principal parceiro da criança e muitas vezes seu único parceiro estável. Lacan nos mostrou que as utopias comunitárias que desenvolveram um esforço para subtrair a criança da singularidade familiar fracassaram nesse intuito. Isso nos mostra que o que cabe à família transmitir, isto é, um desejo particularizado, é de alguma forma impossibilitado numa estrutura de comunidade. Vemos então que cada vez mais cabe apenas à mãe a função que anteriormente cabia à família: a função de humanização da criança. Se a mãe tem uma função de palavra, a relação da mãe com a criança começa num corpo a corpo no qual a criança não se estruturou ainda como um sujeito. Na verdade, a prematuração da criança a deixa à mercê da mãe e de seus substitutos. A separação entre a mãe e a criança se fará necessária nesse caminho de humanização do sujeito.ao nos perguntarmos qual é o lugar de uma criança para sua mãe, temos, a partir do ensino de Freud, uma resposta: é o fruto de uma demanda endereçada ao pai. Porém, Lacan nos
ensinou que esta resposta é parcial, que é preciso ir além no sentido de articular a criança com a sexualidade feminina, sexualidade que é repleta de paradoxos. Isso é curioso porque, em geral, quando se trabalha com crianças, se interroga pela maternagem e não pela sexualidade feminina. Nesse sentido, há, em geral, um universo de saberes que buscam ensinar e orientar a mulher a ser mãe. Se para Freud o filho é um pedido endereçado ao pai, Lacan enfatiza a dimensão impossível desse objeto, a partir da privação feminina. Isso implica que a criança está sempre um pouco além ou aquém do esperado pela mãe e que ela está numa posição que divide a mãe entre mãe e mulher. É importante que a criança não preencha inteiramente sua mãe. Nessa divisão, temos a mulher silenciosa e a mãe que, por seu lado, se queixa e se descabela com seus filhos. Entretanto, o destino da sexualidade feminina não é necessariamente a maternidade, ela é apenas uma de suas possibilidades. Mas essa possibilidade de ter ou não um filho é uma questão que cada mulher se faz. A resposta pode ser ambivalente, de recusa, de impossibilidade, de horror ou ainda de angústia diante do limite que o tempo coloca. O fato de que muitas psicoses sejam desencadeadas nas mulheres após o parto diz do quanto a relação da mãe com seu filho pode ser difícil. A resolução de sua sexualidade para a mulher é complexa e cheia de sutilezas. De qualquer forma, é desta solução que é a maternidade que depende o destino da criança. Daí resultam as dificuldades de se ser mãe hoje, já que temos um atravessamento dessa solução pelas ofertas da ciência e pelos já citados declínio da função paterna e do movimento de solidão contemporâneo. Daí as dificuldades para uma mulher distinguir a vontade de filho e o desejo de filho, de escapar do registro dos imperativos contemporâneos. Excessivamente ocupada por seu filho, desinteressada dele, preenchida por ele, angustiada, dividida, solitária, a mãe de hoje tem que exercer uma função para a qual não há saber fazer. É a questão que nos coloca o mundo contemporâneo: as mães estão sendo bem sucedidas ao se responsabilizar, sozinhas, pela humanização de seus filhos?