ASPECTOS INCONSTITUCIONAIS DA LEI Nº 11.977/2009 PROGRAMA MINHA CASA, MINHA VIDA (PMCMV) Caio Marco Bartine Nascimento A Lei nº 11.977, de 07 de julho de 2.009 dispõe sobre um programa habitacional específico do Governo Federal intitulado Minha Casa, Minha Vida. Tal programa governamental compreende o Programa Nacional de Habitação Urbana (PNHU), o Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR) e várias autorizações para que a União conceda subvenções econômicas e transferências de recursos para determinados Fundos e outras agências financeiras de fomento. Tal lei ordinária, de cunho aparentemente constitucional, fora instituída mediante aprovação da Medida Provisória nº 459/09 em lei pelo Congresso Nacional, sendo tal ato normativo sancionado pelo Vice-Presidente da República, no uso de suas atribuições constitucionais. Além das atribuições dos programas habitacionais supracitados, temos ainda a disposição do desenvolvimento de um sistema de registro eletrônico, exigindo a partir da determinação regulamentar que todos os documentos apresentados a registro nas serventias, mesmo aqueles praticados a partir da vigência da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6015/73) sejam inseridos eletronicamente. Após a implementação do registro eletrônico, as serventias extrajudiciais deverão disponibilizar ao Poder Executivo Federal, através de meio eletrônico e gratuito, o acesso a todas as informações constantes em seu banco de dados.
Ademais, o art. 42 da Lei nº 11.977/09 regula a redução de custas e emolumentos devidos pelos atos de abertura de matricula, registro de incorporação, parcelamento do solo, averbação da construção, instituição de condomínio, registro de carta de Hhabite-se e de demais atos referentes à construção de empreendimentos no âmbito do PMCMV. Tais reduções serão conferidas da seguinte forma: 90% (noventa por cento) para construção de unidades habitacionais de até R$ 60.000,00 (sessenta mil reais); 80% (oitenta por cento) para a construção de unidades habitacionais de R$ 60.000,01 (sessenta mil reais e um centavo) a R$ 80.000,00 (oitenta mil reais); 75% (setenta e cinco por cento) para a construção de unidades habitacionais de R$ 80.000,01 (oitenta mil reais e um centavo) a R$ 130.000,00 (cento e trinta mil reais). Também não serão devidas as custas e emolumentos referentes a escritura pública quando esta for exigida ao registro de alienação de imóvel e de correspondentes garantias reais, bem como aos demais atos relativos ao primeiro imóvel residencial adquirido ou financiado pelo beneficiário com renda familiar de até 03 (três) salários mínimos, sendo as custas e emolumentos reduzidas em: 80% (oitenta por cento), quando os imóveis residenciais forem destinados a beneficiário com renda familiar superior a 6 (seis) até 10 (dez) salários mínimos; e 90% (noventa por cento) quando os imóveis residenciais forem destinados a beneficiário com renda familiar superior e 3 (três) e inferior a 6 (seis) salários mínimos.
Caso ainda não haja cumprimento do disposto nos artigos 42 e 43 da Lei nº 11.977/09 que versam sobre custas e emolumentos, as serventias extrajudiciais ficarão sujeitas à multa no valor de até R$ 100.000,00 (cem mil reais). Inobstante aparentar que o referido programa habitacional visa reduzir desigualdades regionais e sociais, em observância de um dos objetivos da República Federativa do Brasil (art. 3º, II, CF), todos os atos praticados pelos Poderes da República devem estar em plena consonância com preceitos constitucionais interpretados de forma sistemática, teleológica e axiológica, fato este que não foi observado. Conforme expressa decisão emanada do STF e de demais Tribunais, as serventias notariais e registrárias, previstas no art. 236 da CF e na Lei de Registros Públicos, serão exercidas em caráter privado, por delegação do Poder Público, porque recebem retribuição não oficial, mas sim oriunda de pagamento das partes interessadas. Tal fato, contudo, não desnatura a natureza dos serviços públicos que são prestados, ocorrendo à intervenção estatal, vez que a importância de tais serviços ultrapassa os limites da esfera dos interesses individuais, atingindo seara na qual prepondera o interesse da coletividade. O entendimento esposado reflete que, a rigor e pela sua própria natureza, as serventias não geram por si só lucro, uma vez que o usuário do serviço paga o preço justo pela prestação do serviço público que lhe é oferecido. Uma vez que o Estado não retribui diretamente a prestação de serviços pelo particular, estabelece uma tabela de custas que proporcionam sua justa remuneração.
Exige-se que o delegado das serventias notariais e registrarias disponibilizem um serviço público adequado e eficiente, mantendo instalações, equipamentos, meios e procedimentos de trabalho dimensionados ao bom atendimento, bem como possuindo o número suficiente de prepostos. Todo o gerenciamento administrativo e financeiro dos serviços notariais e de registro é de responsabilidade exclusiva do respectivo titular, inclusive no que diz respeito às despesas de custeio, investimento e pessoal, cabendo-lhe estabelecer normas, condições e obrigações relativas à atribuição de funções e remuneração de seus prepostos, de modo a obter a melhor qualidade na prestação dos serviços. Tais exigências, sob pena inclusive da possibilidade da perda de delegação da serventia, é custeada diretamente pelo serventuário dos ofícios custeado por meio das custas e emolumentos que são tabelados pelos próprios Tribunais. 1. Da natureza jurídica das custas e emolumentos Reiteradas decisões dos Tribunais Superiores, notadamente do STF já determinaram que às custas e emolumentos judiciais e extrajudiciais são taxas remuneratórias de serviços públicos que ensejam o exercício de missão essencialmente estatal: conferir fé pública a atos e documentos, certificar a legitimidade de situações, possibilitar o exercício de direitos subjetivos privados e públicos, dentre outros. Tais serviços, implicando com o exercício de direitos subjetivos e referindo-se a caso particular concreto, são específicos, permitindo vislumbrar o vínculo tributário entre o devedor e a atividade estatal; são ainda, divisíveis,
posto que individualizada sua utilização pelas pessoas vinculadas ao dever de custeá-las. Ora, a compulsoriedade de sua utilização e do pagamento das custas e emolumentos são inerradáveis, porque consubstancia o único caminho para exercer a pretensão jurídica, por imperativo legal vedado a justiça privada. Se todos os entendimentos convergem pelo fato das custas e emolumentos extrajudiciais serem considerados como espécie tributária, na modalidade de taxa, é cediço que deve a estrita observância ao regime jurídico tributário, seja sua instituição, seja o seu aumento, seja a sua redução, pelo princípio da estrita legalidade tributária (art. 150, I, CF c/c art. 97 CTN). 2. Caráter Isentivo das Reduções das Custas e Emolumentos do PMCMV e a inconstitucionalidade no uso de medidas provisórias Conforme analisado nos artigos 42 e 43 da Lei nº 11.977/09, não pairam dúvidas de que tais reduções, chegando ao percentual de 90% (noventa por cento) em determinadas situações, conferem ao particular espécie de isenção de taxas, mesmo que de forma parcial. A Constituição Federal, no art. 146, III, b, determina que caberá a lei complementar tratar sobre as normas gerais em matéria de legislação tributária, notadamente sobre obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributária. A isenção tributária compõe uma das vertentes do estudo do crédito tributário, sendo considerada como uma exclusão do mesmo, devendo ser interpretada de forma restritiva, nos ditames do art. 111 e 175 do CTN.
Não se está falando que toda a forma de isenção deve ser conferida por lei complementar. O que estamos afirmando é que, uma vez da existência constitucional determinando a expressa previsão da tratativa pelo dispositivo normativo complementar, devemos analisar as disposições expressas acerca do que a lei complementar exige para que o benefício seja concedido. A Lei nº 5172/66, definida como Código Tributário Nacional pelo Ato Complementar 36/67 possui status material de lei complementar, de acordo com a Teoria da Recepção utilizada por nosso sistema constitucional. Sendo assim, a lei complementar utilizada para tratativa do crédito tributário passa a ser o Digesto Tributário Nacional. Não se pode confundir a lei com ato normativo. A lei passa a ser um instrumento normativo formal editado pelo Poder Legislativo, composto de representantes do povo para o exercício dos poderes determinados na Carta Constitucional. Tais Poderes da República, nos termos do art. 2º da CF, são independentes e harmônicos entre si. Cada qual possui sua autonomia exercida de forma velada pelos demais poderes, possuindo suas chamadas funções típicas e atípicas. A Medida Provisória não passa de um ato monocrático do Presidente da República com força de lei, editada nos casos de relevância e urgência, devendo ser imediatamente submetida a apreciação do Congresso Nacional. A justificativa do Presidente da República editar medidas provisórias, com força de lei, é a existência de um estado de necessidade que impõe ao Poder Público a adoção imediata de providências, de caráter legislativo, inalcançáveis segundo as regras ordinárias de legiferação.
São instrumentos, portanto, de uso excepcionalíssimo, uma vez que propiciam o afastamento pro tempore do princípio da separação dos Poderes. No julgamento da ADI 2.213-MC, da lavra do Ministro Celso de Mello, a crescente apropriação institucional do poder de legislar, por parte dos sucessivos Presidentes da República, tem despertado graves preocupações de ordem jurídica, em razão do fato de a utilização excessiva de medidas provisórias causar profundas distorções que se projetam no plano das relações políticas entre os Poderes Executivo e Legislativo. Nada pode justificar a utilização abusiva de medidas provisórias, sob pena de o Executivo, quando ausentes razões constitucionais de urgência, necessidade e relevância material, investir-se ilegitimamente, no mais relevante função institucional que pertence ao Congresso Nacional, vindo a converter-se, no âmbito da comunidade estatal, em estância hegemônica de poder, afetando, desse modo, grave prejuízo para o regime das liberdades públicas e sérios reflexos sobre o sistema de checks and balances, a relação de equilíbrio que necessariamente deve existir entre os Poderes da República. Se a tributação é conferida, em sentido estrito, à lei, não poderá um ato normativo, por mais que goze de força legal, ser utilizado para conferência de benefícios fiscais. E não só isso: se por um lado, determinados particulares se beneficiam do caráter isentivo das reduções de custas e emolumentos, em contrapartida as serventias extrajudiciais tem reduzido impacto em sua remuneração, o que pode levar ao colapso e a inviabilidade da própria atividade delegatária do Poder Público. Exige-se que as serventias extrajudiciais mantenham os serviços públicos prestados com eficiência e adequação, sob pena da imposição de um número sem fim de penalidades. Enquanto isso, o Poder Público retira do
particular que presta esse serviço as condições econômicas para o exercício dessa prestação. Por mais que se afirme que a atividade notarial e registral é atividade tipicamente estatal, não podemos nos olvidar que se trata de prestação em caráter privado, em que todo o ônus e encargos estão nas mãos de seus titulares. Do mesmo modo que a finalidade do Poder Público é de propiciar a redução de igualdades regionais e sociais, não se podem afrontar demais princípios sem que haja uma ponderação de interesses, ainda mais quando tal fato é realizado de maneira totalmente inconstitucional. Destarte, se é cediço que custas e emolumentos são espécies tributárias, toda sua instituição, modificação e extinção somente poderão ser realizadas mediante lei específica strictu sensu, inadmitindo-se o uso de medidas provisórias para esta finalidade. As serventias extrajudiciais, por mais que tenham a atribuição de prestadoras de serviços públicos, o fazem em regime privado, não podendo sofrer a diminuição substancial de suas receitas, por afronta a princípios da ordem econômica e da segurança jurídica. Não se justifica a existência de urgência e relevância no referido programa habitacional a ponto de justificar sua instituição mediante o uso de medida provisória, demonstrando o caráter desmedido do Poder Executivo no uso atípico de seus poderes. Caberá assim a entidade de classe responsável ou às próprias serventias, em cada caso concreto, requerer a inconstitucionalidade da referida lei, aduzindo os pontos cediços e já decididos nas instâncias superiores sobre os aspectos que podem levar, ainda mais, ao caos o rumo da atividade notarial e registral.