GESTÃO DEMOCRÁTICA NO COTIDIANO DA ESCOLA: PARA QUÊ OU PARA QUEM?



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Transcrição:

GESTÃO DEMOCRÁTICA NO COTIDIANO DA ESCOLA: PARA QUÊ OU PARA QUEM? Clarissa B. Craveiro UERJ clacraveiro@yahoo.com.br Resumo: A partir do Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares publicado em 2004, levanto algumas questões no que diz respeito à função social deste Programa Nacional, buscando relacioná-las às práticas cotidianas que vivenciei no Colégio Estadual Fernando Magalhães em Niterói, Rio de Janeiro. Este relato sobre o Programa busca confrontar alguns aspectos da gestão do Colégio Estadual Fernando Magalhães, a participação dentro e fora das paredes da escola e as sugestões propostas por este Programa. Palavras-chave: gestão democrática; otidiano; politizar A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9394/96) completou dez anos e, aproximadamente neste mesmo período venho pesquisando sobre democracia e cidadania na escola, buscando compreender seus processos no cotidiano. A partir do Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares publicado em novembro de 2004, levantarei algumas questões que dizem respeito à função social deste Programa Nacional, buscando relacioná-las às práticas cotidianas que vivenciei no Colégio Estadual Fernando Magalhães i em Niterói, Rio de Janeiro. Tendo em vista as várias práticas democráticas escolares, proponho-me neste ensaio a esclarecer brevemente em que consiste o Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares, detendo-me no estudo de temas relacionados com a cultura, respeito ao outro, diferença, igualdade, cidadania e emancipação, contidos no Caderno 3 deste programa. Para isto, dialogo com alguns autores como Sacristán, Santos, Lopes, Skliar e Oliveira os quais apresentam reflexões sobre ações cotidianas e democracia. Este Programa foi desenvolvido pela Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação, através da Coordenação Geral de Articulação e Desenvolvimento dos Sistemas de Ensino do Departamento de Articulação e Desenvolvimento dos Sistemas de Ensino a fim de implementar e fortalecer os Conselhos Escolares. Para isso, foi elaborado um material instrucional composto de um caderno denominado Conselhos Escolares: Uma estratégia de gestão democrática da educação pública, destinado aos dirigentes e técnicos das Secretarias Municipais e Estaduais de Educação e, seis cadernos destinados aos conselheiros escolares, intitulados: Caderno 1 Conselhos Escolares: Democratização da escola e construção da cidadania Caderno 2 Conselho Escolar e a aprendizagem na escola

2 Caderno 3 Conselho Escolar e o respeito e a valorização do saber e da cultura do estudante e da comunidade Caderno 4 Conselho Escolar e o aproveitamento significativo do tempo pedagógico Caderno 5 Conselho Escolar, gestão democrática da educação e escolha do diretor Caderno de Consulta Indicadores da Qualidade na Educação De acordo com o Caderno 1, O material não deve ser entendido como um modelo que o Ministério da Educação propõe (...) (p.8). Contudo, a meu ver, os cadernos acabam por sinalizar maneiras de fazer não no sentido de ação segundo Certeau (1994), mas em sugestões muito concretas como, por exemplo, os questionários para serem aplicados que aparecem no final no Caderno 2 e em grande parte do Caderno de Consulta, demonstrando homogeneização no fazer. O Colégio Estadual Fernando Magalhães, como as demais escolas da rede de ensino, recebeu o material. Em conversa com a Diretora do mesmo sobre a pesquisa ii que desenvolvo nesta escola, a diretora não lembrava de ter recebido o material; e só depois de algum tempo associou que eu falava do material que estava guardado no armário. Fato que não me surpreendeu tendo em vista a infinidade de cobranças e propostas que chegam à escola... Conheci este Programa iii em São Paulo, através do Instituto Paulo Freire (IPF), a partir de maio de 2005. Na época, o IPF impulsionando alguns núcleos da 13ª. Delegacia de Ensino que compreende a região de Perus isto é, cerca de 110 escolas a implementarem o Programa. Já em Niterói, em meados de 2005, procurei o Setor de Gestão da Secretaria Municipal de Educação e nada comunicaram a respeito deste Programa. Indicaram uma escola na região oceânica, a Escola Portugal Neves, conhecida por ter um conselho de escola dos mais atuantes... Percebi a dificuldade em encontrar alguma reinterpretação deste Programa em Niterói, o que me leva a pensar no esvaziamento de significado em que algumas propostas oficiais chegam à escola. Muitas delas, por serem produzidas distanciadas do contexto local, geram uma resistência à sua difusão, mesmo que esta resistência se dê a partir da indiferença, como percebi no Fernando Magalhães, comprometendo assim qualquer possibilidade de negociação. Complementando com Ferraço (2006) um outro aspecto a ser considerado é que qualquer iniciativa de se pensar ou de se discutir o currículo escolar precisa garantir a participação direta e insubstituível desses sujeitos. Um envolvimento que precisa ser assegurado a partir da garantia de condições políticas, físicas e materiais de realização dos currículos e em todos os momentos de sua discussão, sobretudo no decorrer das práticas pedagógicas. (p.10)

3 O Colégio Fernando Magalhães ao não privilegiar este Programa Nacional favorece outras possibilidades democráticas na escola, como relato mais adiante. É neste sentido que questiono o Programa. Por que não favorecer a participação e a cultura democrática na escola a partir das ações já realizadas em cada unidade escolar ou, ao menos, possibilitar o conhecimento de outras formas de exercício democrático como é o caso do Grêmio Escolar, representantes de alunos e professores nas turmas ou outros grupos de interesse local? Concordando com Sacristán (1999), entendo que as culturas, como as políticas, devem possibilitar que os sujeitos definam seu próprio projeto vital, aceitando algumas características, corrigindo a até rejeitando outras (p.185). Incentivamos um projeto vital com o Programa? Tanto Sacristán (1999) como Manoel Sarmento iv apresentam a cultura através da metáfora de círculos concêntricos isto é, a cultura local, nacional, escolar, global como esferas flexíveis que se interceptam e de maneira não linear, compreendendo aqui a produção pessoal de cada indivíduo, de acordo com seus modos de apropriação e produção simbólica gerados na interação de pares e nas demais redes de relações. Ou seja, aproximar-se desse local e dos que participam com suas singularidades, multiplicidades, imprevisibilidades significa também, de acordo com Oliveira (2003) revalorizar os saberes cotidianos (...) promover a horizontalização das relações entre os diversos saberes, a partir do momento em que reconhecemos em todos incompletudes e potencialidades. (p.53). Acredito que enquanto os direcionamentos do Estado, a partir de programas e políticas investirem em ações distanciadas dos sujeitos, do cotidiano escolar, sem partir do que já está sendo realizado na escola, dificilmente as mudanças virão. Muitos professores na escola estão descrentes e cansados de não serem ouvidos ou consultados sobre as novas propostas a serem implantadas, o que os faz sentir subestimados quanto à criatividade e competência profissional. Como ouvi há pouco tempo de uma das professoras da 3ª. série do Fernando Magalhães: Parece que os que fazem essas políticas não sabem o que acontece na sala de aula. Será que já deram aula? A PROPÓSITO DO CADERNO 3... No que diz respeito à cultura, selecionei alguns trechos, a seguir:

4 A cultura e o saber da comunidade fazem parte da vida do estudante a ponto de constituírem a educação com a qual ele chega à escola. (p.10) A escola que apenas dissemina informação, que não integra o saber e a cultura da comunidade, é uma escola discriminatória, porque nega a educação, limitando as suas possibilidades. (p.20) Percebo com Sacristán (1999) que certa reivindicação do popular passa, assim, a ser um recurso simbólico do nacionalismo político populista para a luta da emancipação social (p.175) a partir da continuidade com que apresentam a relação cultura saber comunidade - escola. Vejamos a relação com um trecho da história Reforço ou engessamento da desigualdade, uma parábola sobre a aptidão inapta e a inaptidão apta da p.25 que finaliza esta parte do Caderno 3: Era uma vez......um intelectual comprometido com as classes populares. Quando sua filha mais velha fez quatro anos, foi festejar essa alegria na casa de um trabalhador, cuja filha aniversariava no mesmo dia. Os pais, sentados em caixas de querosene únicas cadeiras ou poltronas que havia nessa casa de chão batido-, tomavam chimarrão e conversavam animadamente, enquanto suas filhas brincavam. Essa é a liturgia possível para festejar aniversário nas negadas condições de qualidade de vida da maioria da população. Enquanto assim conversavam, a filha do intelectual veio pedir lápis e papel para brincar com a amiga. (...) De lápis em punho, avidamente, tentou fazer um risco e... rasgou a folha de papel com a ponta do lápis. A continuação da brincadeira foi penosa e difícil. O intelectual pensou consigo mesmo: Pronto, esta não tem aptidão para a alfabetização. Não tem controle motor etc.. As crianças desistiram desse brinquedo e foram brincar com bonecas. Bonecas, em casa de pobre, como é sabido, são meias rasgadas e velhas, que são costuradas, enchidas com serragem e fechadas na ponta. (...) Quando brincavam, eufóricas, eis que se abriu a barriga de uma das bonecas e as tripas se esparramaram pelo chão de terra batida. A amiguinha da filha do intelectual (...) foi até uma prateleira de tijolo, pegou agulha e linha, enfiou a linha na agulha e, com a maior naturalidade, começou a costurar a barriga da boneca. (...) A filha do intelectual pôs as tripas de volta na barriga da boneca, foi buscar a linha e a agulha e..., quem diz que ela conseguiu enfiar a linha no buraco da agulha?

5 (...) Hoje, a filha do amigo do intelectual é uma eficiente e dedicada empregada doméstica. A filha do intelectual é profissional de jornalismo e comunicação, como resultado da ampliação de sua aptidão muito precária. Este fechamento incomodou-me profundamente pois, pareceu-me um tanto quanto estereotipado e discriminatório. Quem é intelectual e quem é trabalhador? Não é possível encontrar o trabalhador intelectual ou o intelectual trabalhador? Por que é preciso apresentar uma visão dicotômica e estereotipada em constante antagonismo entre os personagens? A partir desta história o Caderno apresenta algumas considerações superficiais se há ou não valorização e integração entre os saberes e a escola. O que me remete às considerações de Sacristán (1999) pois, as culturas denominadas culta e popular podem ser vistas não em contraposição recíproca (como a parábola evidencia), mas como formas de apropriação diferenciada por segmentos da população ou por classes sociais das criações culturais em geral. (p.175) Além disso, raramente encontramos referências sobre o papel do professor neste caderno. Sob essa simbologia da parábola, será o professor um intelectual? Ainda inconformada com a história, nas visitas que tenho feito às casas dos alunos do Colégio Fernando Magalhães a propósito do Projeto Jurujuba v, não tenho encontrado bonecas de meias rasgadas e velhas... Estendendo-me para a questão da igualdade e da diferença que se insinua nesta história, recorro a Skliar (2003), pois, não será a igualdade um grande equívoco? E tanto mais essa é a possível indagação quanto mais se observa como a idéia de igualdade produz pressões e expulsões, gera promessas ilusórias de equidade. (p.108). Ao mesmo tempo, é preciso nos sensibilizarmos com as desigualdades econômicas que enfrentamos no nosso país e, no âmbito das nossas relações, buscarmos soluções para minimizar o sofrimento do outro a partir do lugar que ocupamos. Além disso, não podemos esquecer que o âmbito de atuação da escola é limitado... Também acredito que a escola tem potencializado espaços que busquem, conforme Santos (1999) uma nova articulação entre políticas de igualdade e políticas de identidade. E que possa favorecer uma relação mais dialógica, encaminhando-se no sentido de formação de subjetividades democráticas, articulando o saber e a cultura da comunidade como se espera neste programa a partir do reconhecimento de que nem toda a diferença é inferiorizadora. E, por isso, a política de igualdade não tem de se reduzir a uma norma identitária única. (p.45)

6 Assim, para que a escola garanta a educação aos estudantes, contribuindo para que se tornem sujeitos conforme assinala o Caderno 3, p.16, é preciso não perder de vista que a escolarização, o currículo, as escolas, os métodos e as relações pedagógicas precisam ser vistas com o desafio do relativismo cultural como sugere Sacristán (1999, p.179). E, para isso, buscar articulações nas políticas de igualdade e identidade tendo por princípio de ação que as nossas relações devem ir além da superação das diferenças econômicas e outros patamares de difusão social, como nos acentua Santos (2003), sexual, étnica, religiosa, etária, política, cultural, nos hábitos de consumo, armamento e o desarmamento, a guerra e a paz. (p.259). No cotidiano escolar do Colégio Fernando Magalhães percebo que a autonomia e a expressão de cada um constrói-se na tessitura de relações ora de forma mais dialógica, ora não, distanciada da luta pelos direitos que o Caderno reforça. Ao aproximar-me do cotidiano escolar observo tanto a dureza e legalismo nas relações como a solidariedade, o respeito. As preocupações no Fernando Magalhães são muitas, dentre elas a participação dos alunos no Grêmio Escolar, a eleição das chapas, a implantação da rádio dos alunos e negociação pelos horários da quadra de esporte nos horários de aulas vagas... Esses processos interativos nem sempre vibializam-se sem algumas ações conflituosas ou permeadas de momentos de tensão, mas como buscam estar permeados de espaços de discussão, acabam por gerar mecanismos de respeito ao indivíduo dentro de cada grupo cultural e, dentro de cada esfera, seja qual for a amplitude, haverá sempre subesferas, até chegar à radicalidade de cada sujeito. E é o sujeito o que importa. (Sacristán, 1999, p.181). É neste sentido que acredito que os processos interativos ocorrem, modificando o seu perfil, tornando-se realmente significativos para os que fazem parte deste processo e, responder às necessidades locais dos mesmos. Portanto, quando o Programa afirma que a escola tende a reforçar os interesses dos grupos que detêm maior poder na sociedade (p.18), considero a afirmação de cunho generalista e até desconfiada dos bons propósitos dos que fazem parte da escola. Afinal, quem faz parte da escola? Do Fernando Magalhães conheço muitos profissionais, alunos e pais... Além disso, de que poder da sociedade se fala? Preocupa-me também que o material apresente em várias ocasiões proposições na forma de perguntas e respostas como o exemplo a seguir: Qual é a função da escola na formação das pessoas?

7 A função da escola é assegurar essa apropriação (da riqueza cultural produzida pela humanidade) e essa construção das condições subjetivas do cidadão. Esses aspectos são essenciais ao exercício da cidadania. (p.29). Além do mais, compreendo que a democracia é o eixo central das práticas participativas e é um processo a ser construído a partir dos diversos espaços e relações possíveis do cotidiano e, de acordo com Santos (1991) através da repolitização global da prática social e o campo político imenso que daí resultará permitirá desocultar formas novas de opressão e de dominação, ao mesmo tempo que cuidará novas oportunidades para o exercício de novas formas de democracia e de cidadania. (...). Politizar significa identificar relações de poder e imaginar formas práticas de as transformar em relações de autoridade partilhada. (p.179) Neste sentido, percebo um alargamento do conceito de democracia e na concretude de suas práticas ou lutas democráticas (que o são) em todos os espaços da prática social. A escola é apenas um desses espaços possíveis para os exercícios de cidadania. A construção das condições subjetivas do cidadão também se dá em outros espaços da vida cotidiana como presenciei perto do Fernando Magalhães, no bairro de Jurujuba. No primeiro semestre de 2006 participei de uma assembléia nas proximidades da Associação de Moradores e de Pescadores de Jurujuba. A questão que unia todos era a apropriação indevida por um novo morador de uma parte da praia. Por este cidadão ter uma condição econômica superior à grande maioria dos moradores de lá, sentiu-se no direito de alargar seu território, comprometendo a pesca local. Presenciei a chegada dos moradores até a votação sobre o que deveria ser feito a propósito deste ocorrido. A discussão foi acalorada. Fiquei impressionada com uma mulher que subia um carrinho de mão de pedreiro com várias garrafas de cerveja vazias e que disse não poder conversar, pois precisava acabar o serviço para participar da reunião. Infelizmente a descrição do fato não alcança a riqueza da experiência vivida... Não será reduzir muitas possibilidades de exercícios de cidadania o fato de se dar ênfase demasiada aos muros da escola? Nesta assembléia encontrei vários alunos do Fernando Magalhães. Por isso, concordo com Sacristán (1999) com a metáfora das esferas culturais que transformadas em sistemas abertos, se as entendermos como zonas de uma grande rede na qual fluem as comunicações na rede total. Nesta, há partes mais relacionadas e menos relacionadas entre si, podemos ter certa especificidade, mas nunca total independência. (p.182), pois, complementando com Oliveira (2003), no mundo da escola, se entrecruzam

8 experiências, saberes e idéias que se tecem e se articulam para além dos muros da escola, mesmo que não desempenhem papel fundamental no viver cotidiano dos alunos. (p.114) Neste sentido, continuo a questionar o porquê da ênfase do Programa Nacional que privilegia apenas o Conselho de Escola. Dando continuidade à discussão, o item do Programa intitulado Por que o respeito e o cultivo da diferença são fundamentais para a educação das pessoas? apresenta a questão do respeito à diferença da seguinte forma: Se aprender fosse imitar ou repetir o que é ensinado, falaríamos todos do mesmo jeito, nossas risadas seriam iguais, nosso jeito de caminhar, de olhar e sorrir seriam iguais. Cada pessoa é diferente. É na diferença que está a originalidade, o sentido e a riqueza de ser gente. A singularidade de cada pessoa é facilmente percebida se olharmos a fisionomia das pessoas. Os sorrisos, os olhares, as expressões nas fisionomias das pessoas são muito diferentes. A fisionomia de uma criança, de um adolescente, de um homem ou de uma mulher é um rosto e nenhum rosto é igual ao outro. Não somos diferentes apenas nas expressões faciais, no jeito de falar e de ser, mas até nossos corpos são muito diferentes uns dos outros. Mas, o que faz as pessoas serem diferentes? De onde vem essa originalidade e por que é preciso respeitá-la? E quanto à singularidade? Será tão fácil de percebê-la a partir das atitudes externas como o sorrir, o olhar, expressões faciais? Sacristán (1999) apresenta esta discussão a partir de fundamentos culturais, ou seja, vai além dos aspectos externos, visíveis que nem sempre vão responder ao porquê da necessidade de respeitar o outro, diferente e, que por vezes, até podem apresentar-se como não agradáveis a partir do nosso olhar para os processos dialógicos. Respeitar a história de vida das crianças como sugere o Programa significa ir além da forma como cada um expressa o que pensa de acordo com o seu jeito (p.14) implica em compreender a rede de relações em que estamos inseridos isto é, a educação deve não só dar conta desses processos e dessas interdependências na grande rede, mas, seguindo a idéia do universalismo, deve facilitar a comunicação, estabelecendo fios de conexão entre as zonas da mesma. (p.182) Ainda pensando a partir das redes, quanto ao conhecimento como processo e os conceitos de pessoa, de sociedade e educação, o Caderno 3 apresenta dois quadros que pretendem resumir sistematicamente os aspectos considerados mais relevantes do que está no documento.

9 Em ambos, acabam por delimitar os mecanismos de ação de forma dicotômica. É erudito e competitivo ou ético, culto e solidário; ou se trabalha mais a memória, a repetição ou a se trabalha a inteligência e a criatividade. Na vida cotidiana da escola percebo como é importante considerar como Oliveira (2003) que não há nem propostas nem práticas que possam ser, de modo inequívoco, identificadas somente com a regulação ou com a emancipação social. (p.104). Pois, é o que tenho vivenciado no Fernando Magalhães. Nas ações da diretora deste colégio percebo a preocupação com uma gestão mais democrática ao esperar a tomada de decisões para discutir com os professores nas reuniões pedagógicas, no incentivo para que o grêmio escolar seja atuante entre os alunos, na naturalidade com que professores, alunos e funcionários entram no gabinete da diretora (algumas vezes até pela janela, como já presenciei), no carinho ao preparar lembranças personalizadas para funcionários da escola, como também diversos nãos, bem como decisões precipitadas sem privilegiar o diálogo entre as partes interessadas... Em outras palavras, por mais que tenhamos desejos de atuar democraticamente com os nossos outros, nem sempre conseguimos de fato. Penso que um Programa Nacional voltado ao debate sobre a formação de subjetividades democráticas (Santos, 2003) e as questões que envolvem esta formação, conforme já mencionado no decorrer deste ensaio, deveria incentivar esta discussão além da efetivação do conselho de escola. Minha crítica não está na atuação do conselho de escola, pois reconheço a contribuição que este mecanismo de participação pode oferecer para a comunidade escolar, mas na ampliação dos diversos mecanismos de participação a partir do que já está sendo feito na escola ou do que é mais significativo para os que a compõem. Além disso, preocupa-me o caráter dicotômico e simplificado de alguns temas tratados bem como as poucas referências aos professores, alunos, direção, funcionários e comunidade na construção de um projeto próprio para a escola e não apenas a participação de todos através das sugestões de participação apontadas pelo Programa. Neste sentido, fazendo um paralelo com Lopes (2006), a partir das políticas de currículo, considero que este Programa, bem como alguns textos governamentais, situa-se como principais interlocutores da comunidade educacional e os modelos de análise permanecem separando políticas e práticas curriculares, sendo as práticas compreendidas, sobretudo, como espaços de implementação das políticas. (p.148)

10 i Colégio onde realizo minha pesquisa do mestrado. ii Refiro-me a pesquisa do mestrado iniciado em 2006 no PROPED da UERJ, na linha de pesquisa Cotidiano e Cultura Escolar, sob a orientação de Inês Barbosa de Oliveira. iii A partir de agora, utilizarei a palavra Programa ao me referir ao Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares buscando tornar a leitura menos repetitiva para o leitor. iv Palestra proferida no Congresso Internacional Cotidiano, Diálogos sobre Diálogos realizado na UFF em agosto de 2005. v Sobre esse Projeto é possível encontrar em trabalho publicado na 13º Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (ENDIPE) e 29 a. Reunião Anual da ANPEd. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994. FERRAÇO, Carlos Eduardo. Possibilidades para Entender o Currículo Escolar. In: Revista Pedagógica Pátio. Porto Alegre, Ano 10, n. 37, p.8-11, fevereiro/abril, 2006. FÓRUM PARANAENSE EM DEFESA DA ESCOLA PÚBLICA, GRATUITA E UNIVERSAL. Lei de diretrizes e bases da educação nacional Lei n. 9394/96. Curitiba: APP-Sindicato, 1997. LOPES, Alice Ribeiro Casimiro, MACEDO, Elizabeth Fernandes de e ALVES, Maria Palmira Carlos. Cultura e política de currículo. Araraquara, São Paulo: Junqueira & Marin, 2006. OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Gestão Democrática. Texto datilografado. Curitiba, 2005. Currículos Praticados entre a regulação e a emancipação. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. SACRISTÁN, J.Gimeno. Poderes Instáveis em Educação. Porto Alegre: Artmed, 1999. SANTOS, Boaventura de Sousa. A Construção Multicultural da Igualdade e da Diferença. In: Centro de Estudos Sociais-Oficina do CES. Coimbra, Portugal, n.135, janeiro, 1999..Subjectividade, Cidadania e Emancipação. In: Revista Crítica de Ciências Sociais. Coimbra, Portugal, n. 332, p.135-191, junho, 1991..Pela mão de Alice: o social e o político na pósmodernidade. São Paulo: Cortez, 2003. SKLIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.