Jung e a Espiritualidade. O Self e o Mal. O Paradoxo do Arquétipo Central Um Estudo da Psicologia Simbólica Junguiana 1



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Jung e a Espiritualidade. O Self e o Mal. O Paradoxo do Arquétipo Central Um Estudo da Psicologia Simbólica Junguiana 1 Carlos Amadeu Botelho Byington 2 O símbolo de Deus, da totalidade, acompanha a humanidade desde sempre. Sua representação simbólica é coordenada pelo Arquétipo Central do Self, que promove a formação da Consciência e a sua relação com o Todo. No entanto, o Mal, a força que antagoniza e freqüentemente tenta destruir a criação, também nos acompanha em nosso dia a dia. Como conciliar a polaridade Bem e Mal, tão radicalmente antagônica, dentro do processo de desenvolvimento da Consciência Individual e Coletiva? A capacidade simbólica da criança inicia-se muito cedo, primeiro na posição passiva, que vai formando o Ego através das suas inúmeras vivências nas relações primárias e, logo a seguir, também na posição ativa quando o Ego participa de maneira cada vez mais decisiva na simbolização. Os cem bilhões de neurônios que formam o nosso cérebro permitem ao ser humano empregar inteligentemente os significados da vida, formando e equipando o Ego com as representações do mundo interno e do mundo externo. Esse manancial neurológico multiplica geometricamente os significados instintivos através das representações da imaginação. É essa capacidade que formará a linguagem e suas inúmeras metáforas, capazes de expressar a riqueza da atividade psíquica. A articulação das polaridades das representações mentais é o centro da atividade consciente e inconsciente e organizará a vida psíquica e a Consciência. Existem duas polaridades que serão as mais difíceis de elaborar e organizar no conhecimento durante toda a vida. Elas são a Vida e a Morte e o Bem e o Mal. Heidegger formulou brilhantemente que o ser humano se caracteriza pela consciência da sua caminhada em direção à morte e Sabina Spielrein descreveu a morte presente desde a concepção, quando os gametas se unem e morrem para dar início à vida. Apesar disso, porém, a maioria dos mortais sente a morte bem longe, lá no fim da vida. O mesmo não 1 Mesa Redonda: Jung e a Espiritualidade. Evento de comemoração dos 30 anos da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. São Paulo, 27 de setembro de 2008 2 Médico psiquiatra e psicoterapeuta junguiano. Membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Educador e Historiador. Criador da Psicologia Simbólica Junguiana. E-mail: c.byington@uol.com.br. Site: www.carlosbyington.com.br 1

acontece com a polaridade do Bem e do Mal, com a qual convivemos inevitavelmente no dia-a-dia. Não podendo evitá-la no tempo como fazemos com a morte, tentamos dela escapar de várias maneiras. A principal forma de fugirmos do Mal é a identificação do Ego com o Bem e a projeção do Mal nos outros. Alguns imaginam que essa projeção defensiva seja uma característica de pessoas ignorantes e sem importância social. Isso, porém, não é assim. É famosa a frase de um personagem de Sartre na sua peça Huit-clos, que afirma que o inferno são os outros. Quando vemos que o próprio presidente do país mais poderoso do planeta empregou a defesa projetiva para definir três países como o eixo do Mal e baseou-se nesta afirmação para declarar guerra, bombardear e invadir um deles, trazendo a morte a milhares de pessoas desta e de sua própria nação, concluímos que a projeção defensiva do Mal é algo que atinge a todos. Ela é tão perigosa porque, como esse caso bem ilustra, isso desencadeou uma defesa contrária que projetou o Mal de volta, também defensivamente, criando a escalada ameaçadora do terror no mundo atual. Assim, podemos afirmar que a maneira mais eficiente para evitar e aplacar o Mal é controlar sua projeção defensiva e percebê-lo principalmente dentro de nós, antes de vê-lo nos outros. Mas, como fazê-lo se não chegamos a um acordo nem sobre o que é o Mal nem como ele se forma? A própria psicologia, na maior parte das obras de seus brilhantes autores, não aborda sequer a tarefa de enfrentar este desafio. Quando estamos na fronteira do conhecimento racional, é sempre bom recorrermos aos símbolos das mitologias e das religiões, pois desde sempre eles abordaram exuberantemente os problemas humanos, com uma amplificação fantástica através da imaginação. Dentro da vida dos deuses, e simbolizando os processos psicológicos, a luta entre o Bem e o Mal está geralmente de alguma maneira presente no seu panteón. A riqueza da mitologia hindu apresenta o Bem e o Mal em muitas de suas imagens e enredos. Ninguém contesta que a guerra é a principal expressão da destrutividade humana. O épico Mahabharata é o texto religioso mais extenso de todos os tempos. Ele ultrapassa nada menos que dez Bíblias. Uma das pérolas dos textos nele reunidos é a Baghavad Gita ou Canção do Senhor. Ela é tão sublime e profunda que, segundo um biógrafo de Gandhi, ela era seu livro de cabeceira, que ele lia como uma verdadeira oração, e nela inspirou-se para aprofundar-se na doutrina do Ahimsa, da não violência. Isso é dificílimo de compreender, porque o poema trata do momento em que os dois exércitos chefiados por 2

irmãos combatem numa guerra tão feroz que os dizima. Antevendo a catástrofe, o príncipe Arjuna, um dos irmãos Pandavas, hesita em lutar contra seus primos Kauravas e argumenta com seu cocheiro, que é o próprio Deus Krishna, o oitavo avatar de Vishnu. Como poderia ele matar seus inimigos, dentre os quais muitos eram seus parentes? Krishna o convence a lutar e a guerra se realiza com a devastação homicida que previra Arjuna. Minha interpretação da lição de sabedoria do Baghavad Gita é que uma vez formada a Sombra, o Mal, a luta contra ele é uma imposição do dharma, do dever. Não há como fugir. A inspiração do Baghavad Gita, que inspirou a Gandhi viver pelo Ahimsa, a não violência, é a doutrina que prega como evitar a possessão pelo poder e a formação da Sombra. A Canção do Senhor se revela, assim, um paradoxo, pois ao estimular Arjuna para lutar, Krishna, através do Mal, está ensinando o que é o Bem e a importância de evitar o Mal. Outro grande ensinamento sobre a natureza arquetípica do Mal, sobre sua abrangência e como lidar com ele na vida está no livro de Jó, no Velho Testamento, no qual Satanás é claramente reconhecido como um dos filhos de Deus: Num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio também Satanás entre eles. Então perguntou o Senhor a Satanás: De onde vens? Satanás respondeu ao Senhor: de rodear a Terra e passear por ela (Jó, 1:6-7). A seguir Satanás explica a Deus que seu servo dileto, Jó, está em paz com Ele porque está rico e feliz, mas que, se entrar em frustração, Jó o renegará. Para que comprove sua tese, Deus autoriza Satanás a desgraçar a vida de Jó de forma extrema. Jó não se conforma com isso e contesta o Senhor. Na sua adoração idealizada de Deus, Jó O julgava exclusivamente bom e não podia admitir que Ele abrigasse também o Mal. O desespero e a revolta de Jó, diante do que ele considera uma injustiça e um erro de Deus, inundam a sua Consciência com uma vivência mística, na qual lhe é revelada a grandiosidade infinita da divindade. Dentro de uma verdadeira imaginação ativa, Jó é questionado por Deus: Onde estavas tu quando eu lançava os fundamentos da Terra?... Por qual caminho se difunde a luz e se espalha o calor?... Acaso foste tu que deste lei à estrela d alva e mostraste à aurora o seu lugar? Quem deu curso à tempestade impetuosa e a passagem ao estampido do trovão? Porventura abriram-se para ti as portas da morte e vistes sua profundidade tenebrosa? Em que caminho habita a luz e qual é o lugar das 3

trevas? Vejam como a divindade coloca o conhecimento da polaridade Vida e Morte junto com a polaridade do Bem e do Mal. Nestas passagens, constatamos como em tantas outras nos mitos e religiões, que os poetas são os melhores relatores da transcendência. Entre as imagens que descrevem essa força incomensurável, neste caso, o poeta introduziu até mesmo afirmações jocosas, como aquela em que Deus pergunta a Jó, quem foi que deu inteligência ao galo, provavelmente por ele saudar com seu canto o nascimento do dia. Seguem-se inúmeros outros exemplos do poder da energia criadora do universo, que ultrapassa toda a capacidade humana de entendimento. Deslumbrado com tamanha grandeza que lhe é revelada, Jó se dá conta da limitação da sua contestação e se reconcilia com Deus. Na verdade, falei do que não entendia, coisas maravilhosas demais para mim, coisas que eu não conhecia... Eu Te conhecia só de ouvir, mas agora meus olhos Te vêm. Por isso me abomino e me arrependo no pó e na cinza (Jó, 42:3 e 5). O aumento de consciência de Jó, através do êxtase místico, é imenso e atinge o que denomino Supraconsciência, que é a capacidade de vermos a Sombra e a Consciência, o Bem e o Mal como companheiros na vida, ambos expressos pelo Arquétipo Central. É preciso muita dedicação para se cultivar a vivência da Supraconsciência, mas o esforço vale à pena. Numa das inúmeras cartas de Jung, que peço a algum de vocês pesquisar qual foi, tenho certeza de ter lido a afirmação dele de que: A vida pode trazer muito poder e prazer através da fama, da riqueza e do amor, mas somente a consciência e o confronto com a Sombra são capazes de trazer a paz! A noção, que Jó tinha da divindade excluía Satanás. Este lhe traz a vivência da frustração com Deus e Jó não a aceita, como previra Satanás a vivência mística de Jó da totalidade, no entanto, é tão transcendente e abrangente, que o leva a admitir a existência do Mal na divindade e a compreender que Satanás é um filho de Deus, o que em termos psicológicos significa que a Sombra também está subordinada ao Arquétipo Central. Esse episódio é crucial no Velho Testamento, pois ao se reconhecer que a Sombra faz parte da divindade, prepara-se o Novo Testamento, no qual a elaboração do pecado é o caminho da salvação. Percebido arquetipicamente, o paradoxo expressa o crescimento do Ego na individuação, através do resgate da Sombra na relação com o Arquétipo Central, intermediado pela Função Transcendente da Imaginação. 4

Outro grande mito Hindu que relaciona de forma exuberante a luta do Bem e do Mal dentro da divindade é o Épico Ramayana. O príncipe Rama é a oitava encarnação do Deus Vishnu. Ele está na floresta cumprindo um exílio com sua esposa Sita, quando o Rakchasa Ravana a seqüestra e a encarcera no seu reino no sul da Índia. Segue-se uma grande busca e, finalmente, uma guerra feroz entre Rama e Ravana, responsável não só pelo rapto de Sita, como por mil outras ruindades. Ravana é um demônio com dez cabeças, cada uma com uma vida de dez mil anos. No meio do drama, começa a expirar a vida da última cabeça de Ravana e este implora ao Deus supremo Brahma que lhe renove a vida. Ao receber nova vida para suas dez cabeças, Ravana sente-se o eleito do Deus, mas Brahma lhe frustra nessa ilusão, quando lhe afirma: _ Eu sofro a sua existência! Esta frase poderia ter sido pronunciada pelo Arquétipo Central com respeito à Sombra. O simbolismo do mito é um paradoxo, pois por um lado Brahma defende a pujança e o valor de Rama, mas por outro, renova a vida de Ravana, apesar de sofrer com isso O fato de o paradoxo de Deus na religião abrigar o Bem e o Mal pode ser melhor compreendido pelo conceito de arquétipo na Psicologia, quando relacionamos dinamicamente a Sombra, ou seja, do Mal, com o Arquétipo Central. Se já é tão difícil estudar a polaridade do Bem e do Mal de maneira que sua relação faça sentido, a dissociação materialista ocorrida no final do século dezoito tornou essa tarefa teoricamente impossível dentro da epistemologia positivista. Ao tomar o poder na Universidade, no final do século dezoito na luta contra a Inquisição, a Ciência dissociou o subjetivo do objetivo e as chamadas ciências exatas das ciências humanas. Assim, a ética nas ciências exatas passou a existir exclusivamente em função da verdade da objetividade e, com isso, separou-se radicalmente do humanismo. Vejamos agora a dinâmica da Sombra dentro da elaboração simbólica propriamente dita. O desenvolvimento da personalidade, baseado no conceito de arquétipo de Jung, ocorre dentro da teoria das polaridades, segundo a qual tudo na psique é bipolar, inclusive os arquétipos. Através das representações do real, que denominamos símbolos, funções e sistemas estruturantes, a bipolaridade pode ser percebida em todas as dimensões psicológicas. Por isso, não podemos definir a identidade em função só de um pólo de uma polaridade, porque os dois pólos, de algum modo a integram. É importante que relacionemos os pólos na maneira dialética propiciada pelo Arquétipo da Alteridade, pois assim podemos 5

abranger toda a gama de relacionamento dos pólos das polaridades, não são só como opostos, mas também incluindo as situações extremas nas quais os pólos são iguais. Nesse sentido, é preciso assinalar que muitos estudiosos abordaram a polaridade do Bem e do Mal através da posição polarizada patriarcal, na qual os opostos se relacionam exclusivamente em oposição. Um grande exemplo dessa abordagem é a teoria de Eros e Tanátos, de Freud, na qual a vida e a morte e o Bem e o Mal se relacionam de maneira exclusivamente oposta. Racionalmente, essa proposta é perfeitamente lógica e inteligível, mas ela não explica existencialmente a fenomenologia da interação da polaridade. Assim, sua ontologia paradoxal que inclui a polaridade do Bem e do Mal na centralização unitária do Arquétipo Central, só pode ser devidamente estudada através do Arquétipo da Alteridade. Em inúmeras passagens de sua obra, Jung ocupou-se em conceituar a Sombra e incluir o Mal na totalidade do Self, mas teve muita dificuldade de articulá-lo psicologicamente com o Bem. Quando se ocupou da teologia católica, enfatizou sua discordância da doutrina do Summum Bonum (Deus é absolutamente bom) e do Privatio Boni (o Mal é a privação do Bem), por achar que ela exclui o Mal da divindade. Por isso, ao criar o conceito de símbolo na Psicologia Simbólica Junguiana como símbolo estruturante, nele incluí todas as polaridades, inclusive o subjetivo e o objetivo, o Bem e o Mal. Nesta teoria, reuni o conceito de arquétipo da psicologia analítica com o de fixação e de defesa da psicanálise. Descrevi também o processo de elaboração simbólica, como o centro da atividade psíquica que, quando normal, transforma os símbolos, funções e sistemas estruturantes para formar a Consciência, mas que, quando sofre fixações, gera as defesas, a Sombra e o Mal. Desta maneira, podemos incluir o Mal no conceito do Arquétipo Central dentro de um paradoxo no qual ele é tanto o Bem quanto o Mal. Conceituo o paradoxo como uma afirmação contraditória que, tanto pode incluir um erro, quanto expressar uma verdade maior que inclui uma contradição. A dimensão espiritual é geralmente associada com os mitos e as religiões, que são baseados principalmente em vivências subjetivas e explicam a vida e o mundo, e nos quais as pessoas se baseiam para orientar-se moralmente. A vida espiritual é também associada com a religiosidade, que é a busca de significados maiores para explicar a vida além das aparências, ou seja, através da dimensão simbólica. 6

É dentro da religiosidade que devemos compreender a espiritualidade na teoria e na psicoterapia junguiana, pois, sendo ela conceituada na perspectiva arquetípica, ela considera os eventos existenciais baseados numa vivência simbólica que os relaciona com o processo de individuação e de humanização além do seu contexto literal. Assim sendo, postula-se que os símbolos buscam prospectivamente a totalidade do Self, em função de um arquétipo coordenador da elaboração simbólica, que chamamos de Arquétipo Central. Espiritualidade, na psicologia junguiana é, então, a busca de um relacionamento das vivências com o Arquétipo Central, chamado de Deus nas religiões. Quando esses símbolos são positivos e produtivos, ou seja, bons, temos mais facilidade em fazê-lo, mas quando eles são negativos, destrutivos, isto é, maus temos muitas resistências, pois é difícil relacionar nossa busca de totalidade com a presença do Mal. A compreensão que a Sombra e o Mal fazem parte do Arquétipo Central é essencial para buscarmos o significado simbólico dos sintomas. Caso contrário, por que não seguir o caminho de procurar eliminá-los sumariamente através da medicação ou do descondicionamento cognitivo-comportamental? Esclareço que não sou contra a medicação nem o descondicionamento, mas condeno o seu emprego autônomo e alienante sem buscarmos junto com eles compreender e elaborar os significados dos sintomas dentro do processo de individuação e de humanização. Procurar o significado de uma fixação ou de uma defesa é simbolizar aquilo que está paralisado como sintoma, como algo ruim, e perceber um significado maior, ou seja, espiritual, para ele no processo existencial. Quando não o conseguimos e concluímos que a vida é ruim porque inclui o Mal, como fez Jó, perdemos a espiritualidade e o sentido maior da existência. Essa busca às vezes é muito difícil porque, freqüentemente, o sofrimento dos sintomas, dos traumas e das frustrações é tão grande que o que mais queremos é nos livrarmos deles ou os esquecermos, e a última coisa que desejamos é compreendê-los. Quando expressamos a verdade através de um paradoxo criativo é porque os pólos de uma polaridade estão relacionados de uma forma tão ambígüa e complexa que somente o paradoxo pode expressá-la. Nesse caso, precisamos amplificar os pólos da polaridade de maneira detalhada e ampla para que sua relação se torne compreensível. No caso do Arquétipo Central, ele não é só um paradoxo porque expressa o Bem e o Mal, mas também porque tem a capacidade de resgatar os símbolos que estão sendo expressos dentro do Mal e elaborá-los criativamente dentro da busca da individuação, ou 7

seja, no caminho do Bem. Nesse caso, o Arquétipo Central se aproxima do famoso paradoxo socrático: Ninguém faz o Mal voluntariamente, mas por ignorância, pois a sabedoria e a virtude são inseparáveis. O Arquétipo Central expressa o Bem, com a elaboração por ele coordenada para formar a Consciência e expressa também o Mal, com a fixação, as defesas e a Sombra constituídas durante a elaboração. Esta ambigüidade do Arquétipo Central advém da necessidade de ele manter os símbolos mesmo fixados, para preservar a integridade do Self. Desta maneira, o Arquétipo Central exerce e compactua com o Mal, porque coordena a elaboração simbólica apesar de suas fixações e as mantém quando atua as defesas na Sombra. Podemos dizer mesmo, que o Arquétipo Central coordena também a resistência e a compulsão de repetição das defesas, o que agrava sua participação no Mal. Compreendemos, porém, que o Arquétipo Central assim o faz porque não pode prescindir dos símbolos que estão fixados e na Sombra, mesmo quando possuem um alto grau de destrutividade, como, por exemplo, em muitos casos de defesas psicopáticas graves e até mesmo de defesas psicóticas. Quando o Arquétipo Central atua o Mal, ou seja, a Sombra, instala-se a culpa dentro do sofrimento do Self, seja devido a ela afrontar o Superego ou moral coletiva, seja devido a ela atuar a divisão do Self e infringir a função estruturante da ética no processo de desenvolvimento. Nestas duas perspectivas, a atuação do Mal traz uma disfunção existencial que atinge o Outro em geral e recai sobre o Ego em particular. Mesmo que a atuação da Sombra seja através de uma projeção defensiva, em algum momento ela se voltará sobre o Ego, cuja função, de enfrentar o Mal, também é coordenada pelo Arquétipo Central. A coordenação do Arquétipo Central na expressão do Mal é muito complexa porque abrange toda a variedade das defesas. Sabemos, por exemplo, da grande versatilidade das defesas dissociativas ou histéricas. Essa criatividade, como toda aquela inerente à atividade psíquica, advém da função estruturante da imaginação que, como todas as funções estruturantes, têm características conscientes e inconscientes, normais e defensivas. É surpreendente, então, mas parece irrefutável constatar como o Arquétipo Central expressa o Mal através dessa exuberante criatividade que também expressa a Sombra pela imaginação. 8

Desta maneira, fecha-se o ciclo e compreende-se que o duplo paradoxo no qual o Arquétipo Central atua o Bem e o Mal e depois coordena a reintegração dos símbolos do Mal no caminho do Bem. Tal fato nos faz acrescentar ao duplo paradoxo do Arquétipo Central uma característica messiânica de resgate do Mal e de redenção do Self no processo de individuação e de humanização. Muito Obrigado. 9