Fotos: Christian Montagna O desafio da educação nas prisões A educação prisional, mais do que um instrumento de reintegração social, é um direito conferido aos presos pela igualdade sacramentada na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Assim, cabe ao Estado assumir a questão e fornecer a base necessária para que o preso, devidamente motivado, possa definir sua própria demanda por educação. Esta lição vem de Marc De Maeyer, um dos maiores especialistas em educação em sistema prisional de todo o mundo. Em entrevista exclusiva à jornalista Regina Scomparin, da AlfaSol, De Maeyer destacou as principais questões que envolvem o delicado e complexo sistema prisional, compreendidas por ele a partir de visitas a 100 presídios de 80 países. escrevendo juntos 23
Foto: Regina Scomparim Marc De Maeyer é especialista em educação prisional Escrevendo Juntos - Em linhas gerais, como tem sido tratada a questão da educação prisional no mundo? Marc De Maeyer - O direito à educação é para todos e uma responsabilidade do Estado. A educação dos prisioneiros também é responsabilidade do Estado, mas são as organizações não-governamentais que tomam a decisão de implementá-la na prisão. São projetos interessantes, mas geralmente frágeis. Já as políticas públicas são direcionadas pela opinião pública e, na opinião de todos, a prisão é um fracasso. Não um fracasso unicamente para os indivíduos, mas também para a sociedade, que não imagina outra coisa, a não ser o encarceramento, para punir uma pessoa delinquente. Isso acontece porque a sociedade se sente segura com a prisão dos indivíduos considerados perigosos. Ao mesmo tempo, são somente os pobres que estão presos, não pelo fato de serem mais perigosos, mas porque a prisão é uma consequência da pobreza, da ausência de recursos e de educação. E cabe ao Estado combinar os anseios da opinião pública com o fato de a educação ser, em nome da democracia, um direito de todas as pessoas. EJ - Quais são as características comuns que observamos nas prisões ao redor do mundo? De Maeyer - A situação nas prisões no mundo é muito diferente da brasileira, já que a prisão é um espelho da sociedade, com todas as contradições, delinquência e pobreza. Há, porém, uma característica comum: em todos os países do mundo são os pobres que vão para a cadeia, principalmente as mulheres pobres, que atuam como mulas no tráfico de drogas. Outro triste exemplo vem do México. Antes de terem seus filhos, as mulheres vão a um shopping center roubar alguma coisa para serem presas. Roubam à vista de todos e vão para a prisão muito contentes, porque seus filhos receberão muito mais atenção na cadeia do que fora dela. São exemplos da relação da prisão com a pobreza. A cadeia revela uma realidade muito terrível. Nela, há, naturalmente, pessoas muito perigosas, mas sua existência demonstra também que falta educação na escola e na família, sem que a pessoa receba pontos de referência. Educar é fornecer pontos de referência. EJ - Quais são os principais avanços ocorridos nos últimos anos? De Maeyer - O principal avanço está na consciência de que, em qualquer lugar do mundo, a prisão é um fracasso. É uma realidade do Brasil, da África ou da Europa, de que a prisão não pode resolver os problemas; ao contrário, tende a aumentá-lo. Estamos em uma estrada sem saída. EJ - Quais são as razões que motivam o investimento em educação prisional? De Maeyer - Os motivos que levam as pessoas a organizar a educação na prisão são muito diferentes. Para uns, 24 escrevendo juntos
residem no fato de que precisamos da educação para reeducar os presos, para construir uma nova personalidade. Para outros, educar é bom, pois ocupa o tempo livre a única coisa livre que os presos têm. Outros creem que a educação deve ser estritamente profissional, para levar automaticamente à integração social. Para outros, a educação é apenas um direito. Naturalmente, não é vista como um direito em todos os lugares do mundo. EJ - Por que as prisões não conseguem recuperar as pessoas que cometeram crimes? De Maeyer - A prisão é um lugar onde a pessoa vai desaprender noções de espaço e de divisão de tempo, conceitos muito diferentes para quem está preso, já que o indivíduo não desenvolve quaisquer atividades. O preso desaprende a se ocupar de coisas cotidianas, como preparar a comida, que já vem pronta; recebe roupas limpas; não tem que pagar pela casa onde mora; desaprende a intimidade, a vida normal com os dois sexos... Paradoxalmente, quando sai, a sociedade espera que o ex-preso vá tomar todas as decisões e boas decisões: procurar trabalho e casa, manter relações com as pessoas sem violência, aprender a escutar... Além disso, na cadeia, logicamente, pode-se aprender muitas coisas e muitas coisas más. Traficantes de drogas, depois de anos presos, podem sair piores do que entraram. Há também uma circulação de informações na prisão de diferentes redes (como as gangues), que acontecem pelo problema do uso do celular nos presídios. E, para sobreviver na penitenciária, o indivíduo deve conhecer essa rede e se situar dentro das respectivas áreas de influências. Essa é a contradição: um lugar que deveria recuperar, mas onde a pessoa vai desaprender a vida em sociedade e aprender coisas más. Depois, quando o preso é libertado, após anos de detenção, não tem possibilidade alguma de levar uma vida normal. E é claro que existem pessoas más na prisão. Visitei prisões de 80 países e essas são características naturais da prisão. Não são boas pessoas, inocentes e amigos, seguramente não. EJ - E como deve ser ministrada a educação nesse contexto? De Maeyer - Não é necessário educar apenas os presos, mas também os agentes penitenciários e as famílias escrevendo juntos 25
do preso. É preciso formar biblioteca, trocar os acervos. Em algumas prisões, há somente cinco classes para mil presos. É muito pouco. Por conta disso, a educação na cadeia é apenas para uma elite ou para os que têm grande motivação. É preciso ainda motivar aquele que teve uma história negativa de escolarização. Creio que todo trabalho consiste em definir um processo que motive os presos a se educarem, para que possam definir sua própria demanda por educação. É um processo difícil para quem está fora da cadeia e ainda mais difícil na prisão. EJ - Como a educação pode trabalhar com a reinserção do indivíduo preso e evitar a reincidência? De Maeyer - Essa é uma boa pergunta. Por que reinserção? Alguma vez o preso já foi inserido? Além disso, se nós desenvolvemos uma visão de que a educação acontece em qualquer momento da vida da pessoa, acreditamos que sempre se pode aprender, em qualquer parte da existência. A educação no cárcere é apenas uma etapa, um momento particular. Do primeiro ao último dia da vida nós podemos aprender, seja olhando os outros, ou pelos livros, ou com a religião. EJ - Quais são os tipos de projetos que oferecem melhor resultado no sistema prisional? De Maeyer - Os principais projetos implementados referem-se a atividades de educação não formal, como o teatro no Brasil, existe o Teatro do Oprimido. É um teatro de criação, no qual os atores vão trabalhar com as emoções de outra pessoa, tocando o corpo do outro, provocando reações. É um local de interação entre os presos. As participações em cinema, teatro ou pintura são também atos de educação. O processo de dedicação ao projeto é mais importante do que o resultado final, assim como a consciência do que está sendo realizado é mais importante que a avaliação de um educador. EJ - Quais as principais dificuldades que impedem o sucesso dos cursos de educação de jovens e adultos nas prisões? De Maeyer - Os principais problemas são a falta de continuidade de 26 escrevendo juntos
estudo, ausência de lugares e falta de recursos, bem como as constantes transferências dos presos que interferem tanto na continuidade como na perda da motivação para estudar. Além disso, a proibição imposta ao preso de que sua mulher possa visitá-lo interfere na motivação de praticamente todos os eventos dentro da prisão. E já que falamos de educação na prisão, devemos falar também da educação de todos aqueles que possuem relação com a prisão, como os agentes penitenciários ou famílias dos presos. EJ - Qual o impacto que a prisão gera na família do preso e como ele pode ser minimizado? De Maeyer A família deve ser educada juntamente com o preso, porque sabemos que uma grande parcela dos filhos oriundos dessas famílias instáveis acaba encarcerada, pois há um maior risco de termos um preso de segunda geração, ou seja, aquela que teve o pai preso. Isto porque a prisão do pai vai provocar o fracasso dessa família, bem como o fracasso escolar de seus filhos. É preciso desenvolver projetos que permitam aos pais presos conservar sua função educativa que deve acontecer nas visitas familiares. Essa função pode ser exercida nas bibliotecas existentes nos presídios, um espaço que é igual em qualquer lugar do mundo. Todos os outros espaços dentro da prisão são diferentes dos encontrados no exterior. Além disso, o ambiente pode ajudar, por causa dos livros. Com isso, os pais na prisão podem conservar seu papel de educador. CEREJA discute No início de 2010 a AlfaSol lançará o primeiro volume da série CEREJA discute, uma ação direcionada à ampliação da reflexão em torno dos desafios impostos ao exercício pleno da cidadania das pessoas analfabetas ou pouco escolarizadas, no Brasil e no mundo. CEREJA discute aposta na pesquisa, na construção compartilhada de saberes e na diversidade de estratégias de defesa da democracia como alicerce do desenvolvimento humano e social. Para inaugurar esta proposta, a AlfaSol se uniu a três Organizações: Ação Educativa, Instituto Paulo Freire e Ilanud, e trouxe para o centro da discussão a educação em prisões, tema diretamente ligado ao amadurecimento da visão da educação como direito humano. Agradecimento especial a Christian Montagna pelas fotos gentilmente cedidas. escrevendo juntos 27