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8 anos 1976-2014 13 ISSN: 2176-5804 - Vol. 13 - N. 1 - Dez/2014 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO NÚCLEO DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO HISTÓRICA REGIONAL - NDIHR www.ufmt.br/ndihr/revista

O nosso papel principal é Preservar a Memória Histórica Regional NÚCLEO DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO HISTÓRICA REGIONAL - NDIHR www.ufmt.br/ndihr/revista A PANTANEIRA-BUGRE NA MPB Lucy Ferreira Azevedo Doutora em Língua Portuguesa, PUC-SP Professora da Universidade de Cuiabá- UNIC lucy_azevedo@terra.com.br José Serafim Bertoloto Doutor em Comunicação e Semiótica-PUC São Paulo; Professor da Universidade de Cuiabá - UNIC. Professor orientador no programa de Mestrado em Estudo de Cultura Contemporânea ECCO/UFMT Artista Plástico artes visuais, cultura popular, semiótica da arte e do design em Mato Grosso serafim.bertoloto@gmail.com RESUMO ISSN: 2176-5804 - Vol. 13 - N. 1 - Dez/2014 8 anos 1976-2014 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO NÚCLEO DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO HISTÓRICA REGIONAL NDIHR 13 Cotidianamente modificamos o mundo e valemo-nos da linguagem para lermos e imprimirmos novos valores e ações na percepção da realidade, na forma de sentirmos nosso entorno. Diferentes representações, veiculadas principalmente pelos nossos atos discursivos, ligam-se à produção retórica dos discursos sociais que, neste trabalho, serão apreendidos na música produzida em Mato Grosso. Discursos que nos deixam conhecer as paixões pantaneiras que pensamos estarem no outro, quando, na verdade, são universais. A música pantaneira, como qualquer outra, apresenta movimentos passionais com marcas identitárias projeções culturais singulares que, veiculados para apreciação popular, ajudam a promover outras opiniões, mudanças de costumes, novos modos de vida. Pela análise da Nova Retórica, as letras de músicas e o ethos da mulher pantaneira serão interpretados em sua força constitutiva do discurso identitário consolidado, como um recorte de uma reflexão mais ampla sobre memória discursiva e doutrina doethos: o ethosenthousiastikón, ligado aos efeitos da música sobre o comportamento humano, sobre como esta força é capaz levar o ser humano a uma supra realidade. Palavras-chave: Mulher, Ethos, Música Pantaneira. 194

ABSTRACT Routinely we modify the world and we make use of language to read and print new values and actions in the perception of reality, as we feel our surroundings.differentrepresentations, c o n v e y e d m o s t l y b y o u r s p e e c h a c t s, b i n d t o therhetoricalproduction of socialdiscourses that, in this work, will be seizedonmusic producedin MatoGrosso. Speechesthat let usknow thepantanalpassions thatwe thinkarein the other, when in fact, they are universal. The Pantanalmusic,like any other, presentspassionatemovementswithidentifying marks-unique culturalprojections- whichairedforpopular appreciation,help promoteotheropinions, changes in customs, new ways of life. By analyzing thenew Rhetoric, thelyricsand theethosof the Pantanalwomanshall be interpretedin itsconstitutive forceof c o n s o l i d a t e d i d e n t i t y d i s c o u r s e, a s a f r a g m e n t o f awiderdiscursivereflection onmemory anddoctrine ofethos: theethosenthousiastikón bind onthe effects ofmusicon human behavior, about howthis forceis able to take thehuman beingto an abovereality. Keywords: Woman, Ethos, Pantanal Music AMulher pantaneira é cantada por compositores que utilizam a poesia como argumento e, como seres retóricos, veem de forma especial um agir diante da vida, uma outra realidade plena de sentimentos e valores. Assim pela força discursiva e por uma série de outras razões, transformam identidades sociais, instauram novas representações sobre o ser e o estar no mundo. Realizam, portanto, uma relação direta entre os atos discursivos que flagram novas representações e a produção retórica dos discursos sociais. É desse modo que as paixões, no contexto da retórica, aparecem nas músicas que cantam a mulher pantaneira. Sendo a música um discurso social de grande influência, pois nenhum texto é neutro, diferentes aspectos políticos e passionais das letras ajudam a formar opiniões, transformam valores, constroem, podem se infiltrar nos grupos por meio dos espaços midiáticos. Este trajeto, estudar a mulher pantaneira objetiva refletir sobre o perfil traçado pelos músicos/poetas, em seu discurso poético; intercruzar ethos, pathos e logos, pela análise da Nova Retórica e considerar a cultura do Pantanal como fator constitutivo de um discurso identitário. Para delinear o ethos da mulher pantaneira, utilizando a Música Popular Brasileira, é bom aguçar os ouvidos desde o Paraguai, atravessar a fronteira, passar para Mato Grosso do Sul pantanal de maior extensão- e chegar a Mato Grosso. É espantosa a riqueza cultural das populações representadas pela música. Diferentes manifestações, como dança, artes plásticas, culinária, também apresentam marcas identitárias variadas e híbridas e são observadas no percurso do chaco ao vale do Rio Cuiabá à baixada cuiabana. Conforme Canclini (2000: 28), assim ocorre em todo o continente: América Latina, como uma articulação mais complexa de tradições e modernidades (diversas, desiguais), um continente heterogêneo formado por países onde, em cada um, coexistem múltiplas lógicas de desenvolvimento. Aproveitando o eco de tanta diversidade para estudar a pantaneira, a Nova Retórica oportuniza um foco bem marcante- lua cheia brotando do rio: Ethos, logos e pathos. Barilli (1985, p.34) explica que são as três bases da Retórica. Concentra toda a responsabilidade do discurso no pathos, em que o orador deve ser um portador como [...] um raio que tudo arranca (op. cit., p. 3). Assim, a paixão possui a sua própria racionalidade, constituída pela arquitetura da técnica do poeta - logos - que representa um apoio- neste trabalho a letra da música sobre a mulher do Pantanal- ao momento maior que seria a plenitude da alma, a paixão. Ethos é a imagem de si (caráter) que o orador constrói através de seus recursos argumentativos. No primeiro porto, Aquidauana, ou talvez no rumo de Corumbá, na chalana que parece dormir nas águas do rio, está a 195

cuñataí a moça bonita. Esta guarânia paraguaia ainda é muito executada pelos cantores das casas noturnas, bares, churrascarias mais populares tanto em Mato Grosso do Sul quanto em Mato Grosso. A guarânia parece ser um traço definidor da alma musical do povo mestiço do pantanal, aliando o sentimento de melancolia à paisagem sem horizontes que se esvai em grandes espelhos de céu e água em espanhol, português e guarani. Recuerdos de Ypacarai Zulema de Mirkin y Demetrio Ortiz(1948) Una noche tíbia nos conocimos Junto al lago azul de Ypacarai Tu cantabas triste por el camino Viejas melodias en guarani Y con el embrusco de tus canciones Iba renasciendo tu amor en mi Y en la noche hermosa de plenilúnio De tu blancas manos senti el calor Que con sus carícias me dio el amor Donde estas ahora cuñataí Que tu suave canto no llega a mi Donde estas ahora Mi ser te adora con frenesi Todo te recuerda mi dulce amor Junto al lago azul de Ypacarai Vulve para siempre Me amor te chama, cuñataí[ ] Afrodite inspira acuñataí que, refletida na voz do poeta, seduz com muitos recursos: música suave, mãos cálidas e brancas, carícias, sexo, a negação do sexo pela ausência e a cumplicidade da natureza. A moça bonita provoca a paixão, deixando o poeta em desequilíbrio Mi ser te adora con frenesi. A marca forte da mulher pantaneira/paraguaia é um excelente demonstrativo da presença Guarani no Paraguai inclusive, como idioma, tem o prestígio do espanhol entre a população. É a língua afetiva, falada na intimidade das famílias. O termo em guarani é um recurso argumentativo que os significistas holandeses chamam de família de palavras, pois, conforme Perelman&Tyteca (2002, p. 170), são palavras que formam um sistema de interação com o contexto e que poderiam, por isso, ser integrado por línguas diferentes. Em resumo, as raízes da pantaneira: ethos sensual e forte; pathos que passa pelo sensitivo, o amor popular ou pandêmio (Aristóteles apud Perelman&Tyteca, 2002) e o logos que, como húmus, fortalece os argumentos que são artefatos culturais (GEERTZ,1999) de sua região. Na comunhão das três bases, tem-se a primeira pantaneira como sedutora, ativa e que não sofre com o afastamento. Segundo Aristóteles (apud Cardoso et al.,1987), o ethos que age é superior, porque encerra em si mesmo um poder-operar; diferentemente do paciente que tem como principal característica um poder tornarse. Um move, o outro é mutável. Ao contrário do que se diz da fragilidade da mulher, a cuñataí abandona o seu homem. Isso está pressuposto em vuelve para siempre. A expressão é uma marca de que ela já o fizera outras vezes. Toda a força da guarani tem a maior expressão construída na gradação dos aspectos verbais, forma que demonstra o amor que cresce com a saudade- Tu cantabas triste por elcamino/ibarenasciendo tu amor en mi/vuelve para siempre/me amor te chama, cuñataí. Outro argumento muito forte é o uso do guarani, traço identitário da mulher. A segunda índia aqui em duas versões, ambas ameríndias - aparece como agente, porque subjuga o amante, deixa-o dependente. O que conduz a uma reflexão antropológica sobre natureza humana ou determinismo cultural (GEERTZ,1989) que a conduzem a uma decisão que equivale ao mesmo patamar masculino. O universo masculino do pantaneiro deveria impor a postura de submissão e aceitação da índia, no entanto, na versão em língua portuguesa, ela vive o amor pandêmio, porque é dessa forma que 196

mulheres pantaneiras aprenderam a seduzir. Perguntar-se-ia se o que a faz Afrodite está em sua natureza humana, como pele morena, cabelos compridos, lábios rosados, boca pequena, a metáfora da flor, ou essa aceitação é histórica, tendo em vista que o homem pantaneiro sempre vai embora? (Temos aqui a relação do homem vaqueiro que sempre viajou para buscar gado em outro rincões, o Pantaneiro também se ausenta de casa por dias, fica o saudosismo do lar ou até mesmo das tabernas (cabarés) de beira de estrada onde por ventura já se aportaram). A cuñataí poderá também ser uma amante recôndita. Îndia José Asunción - português(s/data) Índia seus cabelos nos ombros caídos Negros como a noite que não tem luar Seus lábios de rosas para mim sorrindo E a doce meiguice desse seu olhar Índia da pele morena Sua boca pequena Eu quero beijar Índia sangue tupi Tens o cheiro da flor Vem que eu quero lhe dar Todo o meu grande amor Quando eu for embora para bem distante E chegar a hora de lhe dizer adeus Fica nos meus braços só mais um instante Deixa os meus lábios se unirem aos seus Índia levarei saudade Da felicidade que você me deu Índia a sua imagem Sempre comigo vai Dentro do meu coração Flor do meu Paraguai. Îndia espanhol (s/data) India bella mezcla de diosa y pantera Doncella desnuda que habita el Guairá Arisca romanza curvó sus caderas Copiando un recodo de azul Paraná. A aninteko'ero, cacique oi'yro, nde aña chendivé SOLO De su tribu la flor Montarázguayakí Eva arisca de amor Del edén guaraní. SOLO Bravea en las sienes su orgullo de plumas Su lengua es salvaje, panal de eiruzú Collar de colmillos de tigres y pumas Enjoya a la musa de Ybytyruzú. Montaráz india manceba, de la raza virgen Eva guayakí. SOLO La silvestre mujer, Que la selva es su hogar También sabe querer También sabe soñar A paixão, a sensualidade é um painel realizado com a predominância de metáforas e comparações que ligam mulher e natureza: Negros como a noite que não tem luar/ Seus lábios de rosas/doce meiguice desse seu olhar/flor do meu Paraguai. Para explicação do logos, além dos verbos no presente, há a descrição da índia que reporta o auditório para a intensidade do amor- Índia a sua imagem/sempre comigo vai. A imagem da mulher indígena indomável percorre o imaginário brasileiro desde o período romantista, personificada na obra Iracema de José de Alencar, onde a sedução do seu corpo desnudo provoca paixões, idealizada nas pinturas edílicas de José Maria de Medeiros 1884; Vitor Meireles 1886; "unindo o indianismo ao romance sentimental e ao erotismo por meio da imagem feminina, tornou-se característico da pintura brasileira durante toda a segunda metade do século." (MIGLIACCIO, 2000, p. 105) Na versão em espanhol, a índia Guayakí, da região de Ybytyruzú, é mais agressiva e todo o contexto, que Maingueneau chama de cenografia (apud AMOSSY, 2005, p.78), ela utiliza para seduzir, transmutando-se em onça, jaguatirica tigre, porque, no pantanal, está em seu habitat. É o seu Éden. O poeta utiliza-se de argumentos lexicais para fortalecer o envolvimento que a silvestre mujer faz: plumas, panal de eiruzú, collar de colmillos de tigres y pumas. Em Chalana, de Almir Sater, a mulher pantaneira, igualmente à mestiça paraguaia, vai embora para bem longe, sem nenhuma lágrima, embora ferida. A chalana parece que, em pacto de tortura com a mulher, não desaparece de súbito. Vai devagar, morte lenta... Temos a mesma mulher pantaneira que usa da sua força pessoal para sair das situações. O estranho é que não revida com confronto físico ou com discussões inúteis, simplesmente toma a decisão. Essa postura é algo que tem presença na cultura pantaneira. Nada precisa ser explicado. Apenas é. Dessa mesma forma aparece na obra dos poetas, como em Manuel de Barros que teve sua explicação da concepção, olhando, quando menino, a cópula de uma égua. Sem cuidados, sem explicações pedagogicamente 197

armadas por educadores, a vida foi-lhe mostrada tal qual é. Tudo é concreto, objetivo, apenas existe. O ethos pode ser representado por Héstia, por mostrar o arquétipo de mulher centrada, de força interior, ponto de equilíbrio e referência que a faz permanecer firme frente à confusão, à paixão que a levaria ao desequilíbrio. Na sedução, continua como Afrodite. Quanto ao logos, existe um campo semântico demarcador da tortura armada a melancolia: chalana, curva, longe, remanso, serenas, clima que fica mais triste ainda pelo próprio gênero musical, a guarânia. O logos e a tristeza da guarânia dão a exata impressão de momento/movimento prolongado e sucessivo, juntamente com as locuções verbais e verbos simples que trazem o aspecto frequentativo- vai levando, se vai, se foi, vai sumindo. Chalana Almir Sater (s/data) Lá vai uma chalana Bem longe se vai Navegando no remanso Do rio Paraguai Oh! Chalana sem querer Tu aumentas minha dor Nessas águas tão serenas Vai levando meu amor Oh! Chalana sem querer Tu aumentas minha dor Nessas águas tão serenas Vai levando meu amor E assim ela se foi Nem de mim se despediu Oh chalana vai sumindo Lá na curva do rio E se ela vai magoada Eu bem sei que tem razão Fui ingrato Eu feri o seu meigo coração Oh! Chalana sem querer Tu aumentas minha dor Nessas águas tão serenas Vai levando meu amor Oh! Chalana sem querer Tu aumentas minha dor Nessas águas tão serenas vai levando o meu amor[ ] Chalana pode ser a personificação metafórica da própria amada que se esvai nas águas tão serenas do pantanal e quem leva o amor é a água. Já atravessando o Estado de Mato Grosso do Sul, em direção a Mato Grosso, encontra-se a Mestiça de Renato Teixeira que é pantaneira- agente. Outra vez a situação em que o homem, embora também tome atitude, sofre toda a tensão do abandono. A mestiça pantaneira está em qualquer lugar, onde o rio a levar e isso caracteriza o seu ethos: a aventureira. A paixão ainda é a sensualidade que prende, faz sofrer. O poeta usa a linguagem popular como recurso que combina com a linha melódica e os versos curtos, dando a impressão de bilhete, um recado, o que torna a música mais leve e a melancolia vai ficando para trás. Se ocê vai pra Mato Grosso Não deixe de me avisar Eu quero mandar um recado para minha mestiça, que venha pra cá Não sei por onde ela anda Por favor, vá procurar Procure em Aquidauana em Porto Murtinho e também Cuiabá 198

Se ocê vai pra Mato Grosso Não deixe de me avisar Que eu quero mandar um recado para minha mestiça, que venha pra cá Já vai pra quatro semana que eu mandei carta prá lá Tô vendo que assim desse jeito rebenta meu peito de tanto esperar Não sei por onde ela anda Por favor, vá procurar Procure em Aquidauana em Porto Murtinho e também Cuiabá Chegamos em Cuiabá, Mato Grosso e encontramos o rasqueado, ritmo que é trânsito e mistura de índio, branco e negro. A mestiça vai mudando à medida que vai se aproximando do Centro Geodésico da América do Sul, como que, no meio do continente, encontrasse a alegria de ser: ser mestiça, mulher, pantaneira, América, Brasil, híbrida de chapa-e-cruz. Moreninha cuiabana Zuleica Arruda Um olhar que me fascina Traz essa cabocla, Essa menina, Com seu corpo, Seu queimado Cravo com canela temperado Vou tomar guaraná, Chupar caju, Comer banana, Passear com você, Doce moreninha cuiabana Casa de Bembém Zuleica e Vera Eu me orgulho de ser um cuiabano De chapa-e-cruz Confesso e não me engano Moro na pracinha, Perto da Prainha, Sento na porta Pra ver as moreninhas. Gosto de um amargo, Ventrecha de pacu, Mojica de pintado E bagre ensopado Danço um rasqueado Na casa de Bembém, Como bolo- de arroz E de queijo também!! ĵ Ă (domínio popular) A lua quando vem saindo por detrás da montanha é uma solidão. Até parece uma coroa de prata, Coração da mulata Lá do meu sertão. Vem cá, morena, Sai na janela, Venha ver a lua Como está tão bela. a śĵ ľ ʼnĂŇĎ ţ lśĵ ĂĊţ ź Roberto Lucialdo e Adonis Não sei mais o que faço Pra ser o seu benzinho Você só me despreza, negando o seu carinho Eu vou fazer de tudo Pra ser o seu benzinho. A moreninha cuiabana, na música popular, é plena de alegria e vida. Nas letras de Zuleica, Vera, Henrique, Roberto Lucialdo e Adonis, comida e meninas têm o mesmo gosto: gosto do prazer (Com seu corpo/seu queimado/cravo com canela temperado). Flagra-se novamente a visão aristotélica de ser por si. A felicidade não precisa ser explicada, porque tem a força de apenas ser. Um estar-de-bem consigo mesma, porque se integra a dois fatores: primeiro, à própria identidade cultural que, conforme Bourdieu (2004, p.112 ):...a procura dos critérios objetivos de identidade regional ou étnica não deve fazer esquecer que, na prática social, esses critérios (por exemplo, a língua, o dialeto, o sotaque) são objetos de representações mentais, quer dizer, de atos de percepção e de apreciação, de conhecimento e reconhecimento em que os agentes investem os seus interesses e seus pressupostos, e de representações objetais, em coisas (emblemas, bandeiras, insígnias, etc) ou em atos, estratégias interessadas de manipulação simbólica que têm em vista determinar a representação mental que os outros podem ter destas propriedades e de seus portadores. 199

Por isso, a mulher pantaneira está feliz; segundo, porque inserida no habitus de sua região estar na janela, passear na pracinha. O logos foi criado pelas metáforas que ensinaram o respeito pelas coisas da terra que predominam sobre o homem. A descrição na música da Casa de Bembém reforça o habitus. A paixão aqui é pela própria cultura, pela construção cultural contra a qual ela não se rebela. Está simplesmente nela. Não há conflito, o que continua na música Nandaia. Nandaia Siriri de roda (2005) Nandaia, nandaia Vamos nandaiá Seu padre vigário Venha meensinádançá Põe esta perna Se não servir esta Põe esta outra Pra senhora moça Rodeia, rodeia, rodeia Fica de joelho Põe mão na cintura Pra fazêmisura Palma, palma, palma Pé, pé pé[...] No livro Cultura e dança em Mato Grosso, organizado por Grando (2005, p.42), acadêmicas de Pedagogia, em um trabalho de guardar tesouros, copilaram da tradição local (Cáceres), a dança do Siriri. A mulher pantaneira está representada pela nandaia (jandaia em tupi), uma espécie de periquito barulhento e, parece, cheio de alegria. Aliás, esta é a paixão. A alegria é o que provoca o desequilíbrio, a irreverência que convoca um padre para dançar. Um estado de espírito que quebra posturas e convenções: põe a mão na cintura / Pra fazêmisura... Perna aqui, perna acolá, até com onomatopeia palma -como argumento para o chamado irrecusável figura de presença. Aí está o ethos da mulher pantaneira do centro da América. A felicidade é - no sentido aristotélico de ser necessário, essencial ou por si (MET.V,7,101 7 a 7). Para a Nandaia, ser é sentido, passa pela audição, tato... Abbagnano (2000) explica Aristóteles quando o filósofo grego ensina que o sentir é o sentir e conjugar esse ser/coisa com a dimensão maior da vida e isso extrapola a dimensão da inteligência. É o ser-todo. O logos provoca um efeito que é o movimento do cotidiano, mostrando perfeitamente a enciclopédia (ECO, 1986, p. 112) dos dançarinos: rodeia, palma, pé. A lua (domínio popular) A lua quando vem saindo por detrás da montanha é uma solidão. Até parece uma coroa de prata, Coração da mulata Lá do meu sertão. Vem cá, morena, Sai na janela, Venha ver a lua Como está tão bela. Meu coração é seu até o fim Roberto Lucialdo e Adonis Não sei mais o que faço Pra ser o seu benzinho Você só me despreza, negando o seu carinho Eu vou fazer de tudo Pra ser o seu benzinho. Embora caminhando em terra firme, o estudioso da mulher pantaneira, por meio das canções da MPB, do chaco à baixada cuiabana, não tem a segurança que apresenta essa mestiça do/no Pantanal de terras alagadiças, enchentes que vão e que vêm. Apoiada na solidez das águas pantaneiras que sempre estiveram aqui e que condicionaram o modo de vida de sua gente, ela apresenta um ethos de Héstia/Afrodite/onça, (obra do João Sebastião) que a desculparia de uma acusação moderna de mulherobjeto ou que lhe possibilitaria a justificativa de que tudo na vida pantaneira é móvel e que a aceitação aparente camufla uma 200

rebeldia/liberdade de alma. O pathos é tudo aquilo que constitui a vida, principalmente o sexo, a beleza física e a liberdade de ser até céu e água. Aqueles que cantam a sua beleza o fazem não só com a agudeza dos ouvidos, mas sob a influência do Pantanal que, pela grandiosidade, determina. Um grande paradoxo, porque à medida que determina, é suficientemente grande para permitir o voo para deixar ser. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. AMOSSY, R. (Org.) Imagens de si no discurso-a construção do ethos, São Paulo: Contexto, 2005. ARISTÓTELES, Methafisica, Ed. Ross, 1924. Arte retórica e arte poética. São Paulo: Edições Ouro, [19--]. Retórica das paixões. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BARILLI, R. Retórica. Lisboa: Editorial Presença, 1979. CASCUDO, L. C. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Global Editora, 2000. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Ed.Guanabara,1989. GRANDO, B. S. (org.). Cultura e dança em Mato Grosso, Cáceres: UNEMAT Ed., 2005. LAKOFF, -----; JOHNSON, M. Metaphor we live by. Chicago: The University of Chicago Press, 1980. LIMA, A. A. Estudos Literários, Rio de Janeiro: Aguiar,1966. MAINGUENEAU, D. Pragmática do discurso literário, São Paulo:1996. MAHER, T. M. In: SIGNORINI, I. Língua(gem) e Identidade, Campinas: Mercado de Letras,1998. MIGLIACCIO, Luciano. Mostra do Redescobrimento: Arte do século XIX. São Paulo: Associação Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. BOURDIEU, P. O poder simbólico. Trad. port. Fernando Tomaz, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. CAMPOS, H. Ruptura dos gêneros na literatura latinoamericana. In América Latina em sua literatura. Coord. César F. Moreno. São Paulo: Perspectiva. 1979 CANCLINI, N.G. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 3. ed. São Paulo: Edusp. (1. ed. 1989) 2000. 201