A prática da descriminalização do consumo de drogas e as intenções dos consumidores

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Transcrição:

A prática da descriminalização do consumo de drogas e as intenções dos consumidores Encontro Descriminalização, 15 anos depois Porto, 8.11.2016 Jorge Quintas Escola de Criminologia, FDUP, Portugal

Lei portuguesa da descriminalização do consumo de drogas

A lei da descriminalização do consumo de drogas (Lei 30/2000) Inscrita na ENLCD (1999), na sequência das propostas de uma comissão de peritos (1998) Regime contraordenacional para o consumo de todas as drogas ilegais (não podendo exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual para o período de 10 dias) os excessos serão, decide o STJ, mais tarde, um crime Acórdão n.º 8/2008 A lei visa a proteção sanitária e social dos consumidores e tem uma dupla função: não toxicodependentes convencer dos riscos e da indesejabilidade do uso toxicodependentes incentivar tratamento ou promover redução de riscos e danos Promoção e decisão do processo pelas Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência - CDT Diversos mecanismos de suspensão das sanções como resposta preferencial que permitirá às CDT encontrar soluções protecionistas para os consumidores

Os efeitos da lei da descriminalização do consumo de drogas (análise macro)

Aplicação das leis

Presumíveis infratores (Polícia) Consumo (Média por ano) Tráficoconsumo (Média por ano) Tráfico (Média por ano) Antes da Lei 30/2000 (1993-2000) 4955 2030 2003 Depois da Lei 30/2000 (2001-2014) 6900 (+39%) 3261 (+61%) 2363 (+18%) Aumento moderado dos presumíveis infratores por consumo e tráfico (Maior atenção ao mercado de cannabis)

Decisões (Tribunais e CDT) Lei 15/93 (1993-2000) Lei 30/2000 (2001-2014) Lei 15/93 (2001-20014) Consumo Média por ano = 1451 75% Multa 8% prisão efetiva Média por ano = 4738 (+227%) 85% suspensão provisória (não toxicodependente=3207; toxicodependente =826) 13% sanções punitivas (627) Aplicada conforme decisão STJ de 2008 para quantidades > 10 dias Média por ano = 355 (2009-2014) 83% Multa 3% prisão efetiva (12) Tráfico Média por ano = 1574 Prisão efetiva - 70% Média por ano = 1840 (+17%) Prisão efetiva - 42% Net-widening effect (pelo menos três vezes mais decisões) Ação preventiva e encaminhamento para tratamento

Evolução do consumo de drogas e dos danos associados ao consumo

Evolução dos níveis de consumo Taxas de prevalência, ao longo da vida, do consumo de drogas ilícitas nos estudos à população geral Comparação (só canábis): 15-64 anos - 22,5% Europa; 11,7% Portugal - Rank 22/28 20 Os toxicodependentes são 44% de todos os casos notificados de AIDS e 51% de todas as mortes resultantes de AIDS 18 16 14 12 10 15-64 anos 1250 1000 750 8 500 6 4 2 15-34 anos 250 0 84858687888990919293949596979899 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 1011 0 2001 2007 2012 SIDA SIDA - Toxicodependentes SIDA - Outros 25 20 15 10 Taxas de prevalência, ao longo da vida, do consumo de drogas ilícitas nos estudos em população escolar (jovens de16 anos) (ESPAD Surveys) 25 países europeus Estabilidade nos indicadores de consumo Menos danos associados ao consumo portugal 5 0 1995 1999 2003 2007 2011 2015 9

Os efeitos da lei da descriminalização do consumo de drogas (análise micro)

Inquéritos sobre droga e lei Amostra normativa estudantes (N=247) Consumidores detetados contactados em CDT (N = 147)

Auto-avaliação do contacto com CDT

A experiência dos consumidores detetados com a polícia e com as CDT(%) N= 147; Escala- 1 (totalmente em desacordo) a 7 (totalmente de acordo) CDT Polícia M SD M SD p Satisfação com a forma como a situação foi tratada 6.32 1,16 3,28 2,21 <.001 Tratamento respeituoso 6.60,94 4,24 2,24 <.001 Informação sobre os procedimentos 6.68.79 4,34 2,16 <.001 Averiguação dos factos 6.55.89 4,01 2,28 <.001 Informação sobre os riscos do uso de drogas 6.67.75 - - - Promoção do acesso a serviços de saúde ou de apoio social 6.33 1.18 - - - Decisão justa 6.42 1.18 - - - Altos níveis de satisfação com os trabalho das CDT (M>6 em 7); por contraste, grande diferenciação relativamente à apreciação da atuação das autoridades policiais (M 4 em 7; DP>2)

Contacto com a CDT teve o efeito de % Reduzir o uso de drogas 80,1 Aumentar os cuidados com os riscos do uso de drogas Aumentar o conhecimento sobre drogas Reduzir atitudes favoráveis ao uso de drogas Efeito da ação da CDT para os consumidores 69,4 69,2 57,6 Aumentar a motivação para eventual tratamento 37,1 Contacto com a CDT teve um efeito importante na possibilidade de Escala- 1 (totalmente em desacordo) a 7 (totalmente de acordo) Não voltar a usar drogas 5.15 1.86 Usar drogas de forma mais cuidadosa (para a preservação da saúde) Usar drogas de forma mais cuidadosa (para evitar a deteção) M DP 5.41 1.97 4.37 2.31 Principais motivos para a intenção de reduzir o uso de drogas informação; explicações sobre os riscos do uso de drogas; atitudes de apoio da CDT Principais motivos para a intenção de manter o uso de drogas Prazer no uso de drogas; opção pessoal Estimativa da intenção de uso de drogas no próximo ano, (questão específica afastada da apreciação dos efeitos de contacto com a CDT) Baixa Média Alta % 42,9 41,5 15,6 Intenção maioritária de reduzir ou mesmo eliminar o uso de drogas (associado ao trabalho das CDT); Maior conhecimento sobre riscos e maior cuidado com o uso de drogas, mas menos capacidade de mudar atitudes favoráveis ao uso de drogas; Um grupo menor, mas relevante, mantém intenção de consumo (justificado por motivos pessoais)

Preditores dissuasivos e normativos do uso de drogas

Análise descritiva e bivariada Escala de 1 a 7, excepto outra indicação Estudantes Consumidores detetados Estimativa do uso de drogas (próximo ano) DISSUASÃO Estimativa do uso de drogas (próximo ano) Estudantes Consumidores detetados M M Rs Rs 1.87 3.31*** - - Risco de detenção (certeza pessoal) 1.22 1.90***.46***.43*** Risco de detenção dos outros (certeza 3.69 4.26** -,12.26** geral) Severidade 349 Euros 66Euros*** -,10.07 Celeridade 3.52 3.95**.09 -.07 NORMAS Pessoais (internalizadas) 2.71 3.60***.40***.27** Sociais (próximos) 1.68 2.53***.55***.20* Sociais (distantes) 3.07 3.64**.13*.03 Descritivas (comportamento dos 4.83 4.46.27***.53*** outros) OUTRAS FONTES DE INFLUÊNCIA Sanções informais 3.59 2.83*** -.20*** -.31*** Legitimidade da sanção 4.61 3.56*** -.30*** -.31*** Riscos do uso de drogas 6.23 6.10 -.30*** -.11 16

Preditores do uso de drogas Estudantes - R 2 =.54;p<.001 Normas Sociais próximas - β=.35 Descritivas - β=.31 Risco de detenção geral - β=-.26 Risco pessoal de detenção - β=.35 Consumidores detetados - R 2 =.54;p<.001 Normas Descritivas - β=..51 Risco pessoal de detenção - β=.20

A descriminalização do consumo Conclusões Afasta a crítica recorrente ao uso da lei criminal e aos seus mecanismos de aplicação para punir consumidores de drogas (por posse de quantidades limitadas) Regime legal protecionista do consumidor mais efetivo Não interfere decisivamente na evolução dos indicadores de consumo Coincide com a redução dos danos do consumo A ação das CDT Apreciada favoravelmente pelos consumidores detetados Intenção maioritária de redução dos consumos, maior conhecimento sobre os riscos e maiores cuidados com o uso de drogas Menor capacidade de alterar atitudes favoráveis ao uso de drogas Preditores da intenção de uso A intenção de uso nos consumidores detetados é predita essencialmente por normas descritivas e pelo risco pessoal de detenção (em ambos os casos de forma positiva). A intenção de uso nos consumidores detetados correlaciona-se ainda positivamente com normas pessoais e sociais próximas e com o risco de detenção geral. As sanções informais e a legitimidade da sanção correlacionam-se negativamente com a intenção de uso. De modo geral, a intenção de uso é influenciada pela esfera normativa proximal (e.g. pares, família)