Latusa Digital ano 3 Nº 24 setembro de 2006 Filho, não vês que estou queimando! Ondina Maria Rodrigues Machado * Fui a Salvador para o XV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, mas não só para isso. Fui dois dias antes para descansar. Meu marido, leitor voraz, havia me recomendado o livro O caçador de pipas de Khaled Hosseini 1 : vou levá-lo para você ler em Salvador. Li, aliás, devorei. Quando comecei não parei mais e acabei usando a manhã e a tarde de sábado para terminar a leitura. É lindo! Nesse mesmo sábado começou o Encontro e Graciela Brodsky introduziu o tema do Congresso da AMP sobre O Nome-do-Pai, prescindir, servir-se dele, do qual tomamos um viés como tema das próximas Jornadas Clínicas da Seção Rio. Assim, foi sob o impacto da leitura do livro que acompanhei o seminário em que Graciela disse que Lacan começa pelo Nome-do-Pai para passar a Um pai. A idéia é simples: a função civilizadora do Nome-do-Pai jamais interfere sem a mediação do pai real. Quem encarna essa função se ela é impossível? É impossível porque nenhum pai recobre a função paterna, nenhum pai está à altura dessa função. A solução de Lacan é passar do Nome-do-Pai como universal ao particular de Um pai. É a passagem do Nome-do-Pai para o mais além do pai, sendo nessa última que vamos encontrar Um pai. * Aderente da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP). 1 HOSSEINI, K. O caçador de pipas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2005. 1
No Seminário 11 2, Lacan usa o exemplo do sonho Pai, não vês que estou queimando! para mostrar que o pecado do pai é que ele não vê, ou seja, todo pai tem um pecado, por isso nenhum homem está altura da função paterna, o que equivale a dizer que o simbólico não recobre completamente o real. Graciela Brodsky enfatiza que não há análise do pai, só do filho, pois cada um de nós está em análise como filho. Nesse ponto ela se pergunta: O que é um pai para um filho? O que é um pai sob o ponto de vista do filho? Sob o ponto de vista do filho, a pergunta sobre o que é Um pai equivale à pergunta sobre A Mulher, pois não há um significante que represente o Pai assim como não há um significante que represente A Mulher. Se antes Lacan pensou que o Nome-do-Pai como significante podia representar o Pai, quando pluraliza o Nome-do-Pai, no Seminário Os Nomes-do-Pai, ele mostra que este não é mais do que um semblante colocado sobre um lugar vazio. Se o lugar é vazio, precisamos, em cada caso, diz Graciela, procurar o que ocupa esse lugar para cada sujeito, qual a elucubração de saber sobre o pai que ali operou. Assim, Lacan deixa de lado o Nome-do-Pai para falar da existência do pai, pois tem que haver ao menos um que ocupe esse lugar. O Nome-do-Pai é pluralizado indicando que do Pai só há versões. Assim também o pai simbólico passa à existência de Um pai. O Um pai (un père/impair) é a irrupção de algo ímpar no eixo imaginário, algo não especularizável que, no Seminário 10: A Angústia, aparece como objeto a. O importante aqui é entender que não é o pai que opera, o que opera é o ímpar do Um pai, extraído por Lacan da homofonia em francês entre un père e impair. O que é o ímpar de Um pai? Graciela responde que é o modo singular como Um pai se arranja com o gozo feminino, como ele se arranja com um gozo sem lei, sem nome. 2 LACAN, J. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. 2
Ela lembra que, no Seminário 20 3, a resposta de Lacan é que a solução do macho para o enigma do feminino é a segregação. O macho segrega aquilo que não é recoberto pela função fálica, o que não é alcançado pela castração. Assim, a solução de segregar, rechaçar, cria um universal pelo ao menos um das fórmulas da sexuação. Já no Seminário 21 4, Graciela considera que há uma outra solução: não há um universal, nem pela lei do Édipo nem pela exceção das fórmulas da sexuação, mas sim uma solução singular. O Um pai transmite a um filho a sua própria solução, como ele se arranjou com o gozo feminino. Nessa concepção o pai não é o do Totem e tabu, mito do neurótico no qual o pai goza de todas as mulheres, mas sim aquele que elege uma mulher, faz dela a causa de seu desejo e, em nome do amor, se arranja com ela, com o gozo dela. O que Um pai transmite a um filho é o seu saber-fazer com a causa do seu desejo. E aonde entra O caçador de pipas? Bem, não vou contar o livro, pois não sei se o leitor é americano ou afegão. Hosseini nos explica que o primeiro perde o interesse se souber o final, enquanto o segundo quer saber o final para poder se interessar. Vou apenas tomar alguns elementos, aqueles que me foram úteis para acompanhar o seminário. O caçador de pipas conta a história de um menino afegão, ou melhor, de dois meninos afegãos e, a bem da verdade, da infância das crianças afegãs nascidas na década de 60 e todo o horror que viveram e talvez vivam até hoje. O romance, como todo bom romance, tem várias leituras; destaco uma delas: a paternidade. É nesse contexto que privilegio o menino Amir, narrador da história, e seu pai, seu baba. Foi por uma dessas coincidências que dão à vida o seu encanto que terminei de ler o livro poucas horas antes da primeira parte do Seminário de Graciela. 3 LACAN, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 4 LACAN, J. Le séminaire, Livre XXI: Les non-dupes errent (1973-1974). Inédito. 3
Acompanhei-o tendo em mente a história de Amir e seu baba, o que se mostrou sob medida para pensar o que é Um pai para um filho. Amir crê no pai, seu baba, e nos brinda com a sua versão do pai: um pai inteiro, sem furos, a quem tenta agradar sem jamais conseguir. A retidão do pai, sua coragem e bondade fazem de Amir um ser culpado por sua covardia. Como nos diz Graciela, só conhecemos o pai pelo sintoma do filho e é desse ponto de vista que o romance é impressionante. Amir criou um pai, porém, quando é chamado a ocupar esse lugar, descobre que ninguém está à altura dessa função, desvelando-se então a verdade do pai: a função não dá conta da existência. Amir criou um pai, acreditou na sua criação, ficou siderado por ela sem perceber que a verdade do pai aparecia nele como sintoma. É somente quando Amir é confrontado com o pecado do pai, que, por sua vez, pode se tornar pai. A função paterna implica sempre um furo porque ela não recobre o pai como existência. Assim, podemos pensar que a condição para se alçar à função é o pecado. Amir só se torna pai quando, já adulto, comete o pecado do pai e também não vê que o filho está queimando. Podemos pensar, então, que há também um pecado do filho, a crença no pai. Se a função se engendra pelo furo do não recobrimento, o consentimento do filho a Um pai vem pelo seu próprio pecado. Não ver que o pai estava queimando é o pecado do filho que constitui Um pai. Amir nasceu do desejo de seu baba por sua mãe. A mãe morre em seu nascimento, o que serve ao filho para explicar a frieza com que seu pai o tratava: ele era culpado pela morte da mãe. Amir assume essa culpa para não se confrontar com o furo no Outro e chega a se perguntar como pôde ser tão cego, como pôde negar as evidências. Diante da revelação de que seu baba era só um homem, ele ainda tenta, mais uma vez, preservar o pai, recriminando-o e tentando reparar seus erros. É nesse caminho que ele peca e se depara com a verdade do pai: nenhum homem está à altura de tal função. Há um outro menino, seu nome é Hassan. Ele tem um pai e um genitor. O que os diferencia é a fala performativa Tu és meu filho : o pai diz, o genitor não. 4
Sob o ponto de vista biológico, ele não nasceu do desejo do seu pai por uma mulher; biologicamente foi fruto de uma dessas besteiras, como diz Sérgio Laia 5, que o homem faz para dar conta da perturbação que lhe traz a agitação do órgão. Mas o pai de Hassan, aquele que o adotou, lhe devotou muito amor. Sua mãe também foi genitora durante boa parte de sua vida, vindo a ser mãe quando Hassan já era adulto e, principalmente, foi avó de seu filho. Ele nunca soube que era filho de outro homem, mesmo que este sempre se mantivesse por perto e, a seu modo, o amasse, porém sem se declarar como seu pai. O pai de Hassan era Ali, que, mesmo sabendo não sê-lo, enunciou o Tu és. A história é contada por Amir e, do seu ponto de vista, a relação de Ali com Hassan e deste com Sohrab foi menos complicada que a de Amir com seu baba, talvez porque a versão de pai em jogo já comportasse um furo. Chama atenção o fato do livro tratar de uma comunidade de homens. As mulheres não estavam presentes apesar de serem sempre evocadas. A primeira mulher que entra na trama com sua presença é aquela por quem Amir se apaixona e se casa. Era uma mulher excluída que soube se fazer causa de desejo para Amir. Mas ela não lhe deu filhos, o que aparentemente não o incomodou muito. O desejo de filho só aparece claramente em Amir quando sua versão do pai se confronta com o homem que seu pai foi. Nesse momento, o desejo se instaura a ponto de fazer com que ele abandone a covardia e lute ferozmente pelo filho que não é seu, mas que adotou. Seu pecado como pai foi não ver que o filho já era seu antes mesmo de adotá-lo. Se o pecado do pai é não estar à altura, o pecado do filho é não ver justamente isso. Como é do pecado que nasce o homem, podemos deduzir que é dele também que nasce o Um pai e o Um filho. 5 LAIA, S. Angústia e sexualidade masculina. Trabalho apresentado no XV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, disponível em http://www.ebp.org.br/eventos/sergiolaia.htm. 5