R E S E N H A
A PRESENÇA NEGRA NO PARÁ: RESENHA DE UM TRABALHO PIONEIRO SALLES, VICENTE. O NEGRO NO PARÁ. SOB O REGIME DA ESCRAVIDÃO. 3ª EDIÇÃO. BELÉM: INSTITUTO DE ARTES DO PARÁ, 2005. JOSÉ MAIA BEZERRA NETO * Ainda hoje causa certo espanto, até mesmo entre o público acadêmico, a afirmação da importância em seus vários sentidos da escravidão negra de origem africana, portanto da presença negra, na Amazônia como um todo, inclusive no Pará. Isto porque, considerada há muito tão-somente terra de índios e florestas, tornou-se a (história da) região amazônica refém de modelos historiográficos ou interpretativos de sua história construídos desde pelo menos a segunda metade do século XIX. Modelos explicativos em que sobressaía em larga medida a tese comum de que a região em sua condição periférica, baseada sócio-economicamente no extrativismo, não desenvolveu plantations; portanto, a escravidão negra, embora presente, fora de pouca ou nenhuma importância, inclusive demograficamente. Hoje, é verdade, com base em anos acumulativos de resultados de pesquisas de diversos historiadores e cientistas sociais, já é possível a certeza de que havia escravidão negra para aquém e além da plantation e que tal escravidão, portanto a presença negra, para ser importante não tinha necessariamente como pré-requisito a economia agroexportadora monocultora. No caso da Amazônia, mais especificamente o Pará, inúmeros trabalhos ao longo dos últimos trinta anos, mais ainda desde a década de 1990, vêm demonstrando que o espanto acima relatado no início desta resenha não tem razão de ser. Aqui, no entanto, quero tratar do estudo pioneiro da presença negra e/ou da escravidão negra * Professor da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará. Doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Vol. III, n 1, 2008, p. 167-172 Revista Estudos Amazônicos 167
no Pará, que em 2005 conheceu a sua terceira edição revisada, isto é: O Negro no Pará. Sob o regime da escravidão. Neste livro, publicado pela primeira vez em 1971, portanto trabalho provavelmente produzido ainda na década de 1960 e início da seguinte, Vicente Salles, pesquisador que veio do folclore, passando pelas ciências sociais, para o campo da História, sem deixar de ser folclorista ou cientista social, na qualidade de seu autor agregou uma leitura mais cultural ao estudo da escravidão no Pará, na época em que o diálogo entre história e antropologia no Brasil ainda era uma promessa, sendo o tom da moda historiográfica brasileira o intercâmbio com a sociologia, sendo então muitos os trabalhos de história sociológica ou de sociologia histórica, inclusive acerca da escravidão. Não que Vicente Salles tenha sido imune aos encantos interpretativos sociológicos da época, afinal tinha sua formação acadêmica nas Ciências Sociais, a partir de onde resultou O Negro no Pará. Sob o regime da escravidão, sendo tal livro em larga medida uma leitura sociológica da escravidão matizada pelo debate em curso na época sobre a escravidão brasileira, seu caráter violento e a razão de ser da exclusão social da população negra. Mas, ainda que assim o fosse, as influências sociológicas mais importantes no livro aqui resenhado não foram essas já ditas. Mas aquelas que Salles trouxe dos campos da antropologia cultural brasileira e também do folclore, a partir de sua formação iniciada junto a Édson Carneiro, um dos nomes mais destacados dedicado aos estudos da presença negra no Brasil. Ou seja, numa época em que o eixo das discussões historiográficas sobre a escravidão negra no Brasil era dominado por interpretações sociológicas pouco ou quase nada afeitas aos aspectos culturais da escravidão, ou, ainda menos, ao escravo como sujeito da sociedade escravista, Salles buscou na antropologia e no folclore elementos do universo cultural afrobrasileiro para entender a escravidão; portanto, entender o escravo não apenas como produtor de riquezas coisificado pelo regime escravista, ou apenas como mão-de-obra sob domínio senhorial, mas igualmente como sujeito que interagindo socialmente era produtor de cultura ou sujeito de práticas culturais, não havendo para Salles dicotomia entre os mundos do trabalho e da cultura. Por essa razão, talvez, o livro de Salles quando de sua publicação em 1971, ainda mais se tratando de um estudo sobre a escravidão em 168 Revista Estudos Amazônicos
uma região considerada periférica e na qual a escravidão era vista e compreendida como desimportante, não tenha sido levado na devida conta pela historiografia da escravidão na época. Acredito que podia muito bem ter sido visto, senão ignorado, como um estranho no ninho da história, sendo seu lugar junto aos estudos antropológicos afrobrasileiros. Ainda mais, muito provavelmente, deve ter sido visto como um trabalho de cunho regional, portanto menor, sobre algo considerado até então muito mais uma curiosidade sociológica do que um tema a ser devidamente investigado e, que, portanto, não poderia render muito, isto é o estudo da escravidão negra numa região periférica, portanto pobre, onde a escravidão embora tenha existido pouco importou. Não que os estudos regionais sobre a escravidão negra em áreas periféricas, portanto onde não havia plantations, não estivessem na moda, sendo exemplo disto o conhecido trabalho de Fernando Henrique Cardoso sobre a escravidão nas charqueadas riograndeses do sul do Brasil, ou do trabalho não menos conhecido de Octávio Ianni sobre escravidão e relações raciais no Paraná. Mas, tais trabalhos estavam dentro do perfil dos estudos sociológicos ou de sociologia histórica da época sobre a escravidão, além do que o Pará parecia e ainda parece mais periférico que as demais áreas periféricas brasileiras, ainda mais se tratando do estudo da escravidão negra. Aliás, a publicação em primeira edição do livro de Salles, em 1971, pela Fundação Getúlio Vargas, com prefácio do historiador Arthur Cezar Ferreira Reis, alguém que, apesar de seu eixo interpretativo sobre a Amazônia ser valorativo do extrativismo, não desconhecia de todo a presença negra na região, já era indicativo, como ao que parece o fora nas duas edições seguintes em 1988 e 2005, editadas por órgãos vinculados ao governo do Estado do Pará, de que sem o suporte de edições por órgãos públicos, portanto pouco afeitas aos ditames do mercado editorial, não teria havido possibilidade de publicação deste trabalho ou talvez houvesse sido mais difícil fazê-lo por editoras comerciais, isto pelas razões já apontadas antes. Exposto o quadro acima, fica então a pergunta: o livro de Salles em sua terceira edição em 2005, bem como a segunda, por órgão ligado ao governo estadual paraense, seria então apenas de interesse local ou regional? Não creio. Acredito tratar-se de obra importante para a compreensão da escravidão brasileira como um todo a partir de uma Revista Estudos Amazônicos 169
dada realidade, no caso a paraense. Sendo justamente esta condição a razão de ser de sua importância. Daí, obviamente, o sendo também importante para aqueles que desejam enveredar pelos estudos da presença negra sob ou não o regime da escravidão no Pará. Portanto, quero tratar agora um pouco mais de perto de alguns aspectos desta obra. Quando da primeira edição, bem como da segunda edição, esta beneficiada pelo longo tempo desde sua publicação primeira e, principalmente, pelo interesse despertado acerca do tema da escravidão aquando da efeméride do centenário da abolição em 1988, ainda eram incomuns os estudos ou pesquisas sobre a presença escrava negra de origem africana na Amazônia, inclusive no Pará, sendo esta situação por si só já indicadora do pioneirismo do trabalho de Vicente Salles, para além das razões já expostas antes. Isto porque, mesmo não sendo Salles o primeiro a tratar do tema, o foi com certeza o primeiro a fazêlo de forma mais abrangente e aprofundada e, ao mesmo tempo, fazendo do tema da escravidão negra no Pará objeto específico de investigação social. A partir de O Negro no Pará. Sob o regime da escravidão, portanto, não seria mais possível ignorar a importância da presença negra e o legado importante de sua contribuição para a formação social paraense, ainda que pudesse, como ainda hoje, ser tema desconhecido para espanto de muitos. Mesmo assim, apesar da primeira e segunda edição do livro de Salles, ainda levaria algum tempo, mais precisamente a partir da década de 1990, para que o volume de trabalhos acadêmicos sobre a escravidão na Amazônia, no Pará em especial, viessem à tona em termos quantitativos e qualitativos abordando diversos aspectos sobre o tema, enquanto outros ainda aguardam por novas pesquisas ou pesquisadores com outros olhares. Não sendo, todavia, o caso aqui de mencioná-los amiúde nos limites desta resenha, bastando apenas registrar que a amplitude da abordagem do livro de Salles já demonstrava que muitos podiam ser os campos de pesquisa social acerca da escravidão negra no Pará, tal como descortinara em seus diversos capítulos; fossem eles a respeito do tráfico, tema somente mais recentemente objeto de pesquisas específicas e inovadoras; os quilombos, tema já com alguma tradição de estudos e há mais tempo investigados pelos pesquisadores; o abolicionismo e as lutas contra a escravidão, objeto de investigações mais recentes por parte de outros 170 Revista Estudos Amazônicos
investigadores; as práticas culturais e religiosas dos escravos, cujas investigações ainda pedem novas pesquisas; ou a própria escravidão nas diversas áreas rurais ou no espaço urbano que estão igualmente ainda carecendo de investigações sociais mais precisas e específicas. Todos esses aspectos foram abordados por Salles, entre outros não citados, como quem fitando o horizonte à nossa frente, apontando em sua direção, nos convidasse com uma frase provocativa do tipo: Vamos até lá?. Esse convite não dito, mas dado aos seus leitores, torna-se mais instigante se levarmos em conta que na construção deste seu trabalho, Salles, para além do conhecimento adquirido nas pesquisas com as narrativas orais e registros etnográficos que realizou como folclorista pelos sertões do Pará, lançou mão basicamente de fontes documentais impressas para seu estudo da escravidão, ainda que não menos importantes e nem mais fáceis de serem trabalhadas, tais como a relatos de viagens, a legislação, os relatórios governamentais e os jornais, sendo, aliás, um exímio e experiente pesquisador em periódicos. Ou seja, Salles fez um trabalho pioneiro e importante acerca da escravidão negra no Pará sem necessariamente recorrer aos diversos fundos documentais manuscritos existentes no acervo do Arquivo Público do Pará, sem falar de outros que hoje se encontram no Centro de Memória da Amazônia/UFPA, numa época, inclusive, em que o acervo documental em larga medida desses arquivos eram ainda pouco conhecido, não sendo exagero dizer que havia quem duvidasse de que fosse possível ao pesquisador falar de escravidão a partir dessas fontes, sendo o trabalho de uma outra pesquisadora, no caso Anaíza Vergolino, o responsável por demonstrar tal possibilidade, ampliando, portanto, ainda mais os horizontes já indicados por Salles. Horizontes esses, oxalá, possamos continuar buscando, sendo a terceira edição de O Negro no Pará. Sob o regime da escravidão, em 2005, após dezessete anos de sua segunda edição, por si só indicativo dessa necessidade de conhecimento acerca da temática da escravidão negra na Amazônia, ainda que restrita ao Pará. Terceira edição que, sendo a mais bem cuidada editorial e graficamente, foi publicada também, para além da necessidade indicada, pelo reconhecimento da importância deste trabalho, cuja demanda por parte do público de leitores há muito pedia sua reedição, agora na condição de um clássico da historiografia brasileira. Uma vez que, Revista Estudos Amazônicos 171
mesmo sendo passível de revisões e críticas, como todo e qualquer trabalho, O Negro no Pará. Sob o regime da escravidão guarda aquilo que é essencial à condição dos livros que se definem como clássicos: a indispensabilidade de sua leitura. 172 Revista Estudos Amazônicos