A Festa do Divino Espírito Santo de Lagoinha: devoção, manifestação e comunicação Francisco Diogo de Carvalho 1 Introdução Para entender como a Festa do Divino de Lagoinha se mantém como forma de resistência da cultura popular na modernidade, é fundamental apresentar dados do município. Gostaria de narrar algumas informações relacionadas à fundação da cidade e da festa mencionada. Os dados levantados sobre o município de Lagoinha foram retirados de um livreto intitulado de Conhecer-Compreender-Construir, organizado pelo bibliotecário da Escola Estadual Padre Chico, de Lagoinha, Sr. Altair Viana da Silva. Na fase do café, os pousos dos tropeiros, que demandavam de Ubatuba, no litoral norte, para o Vale do paraíba e sul de Minas Gerais, deram origem ao povoado, em meados do século XIX. A fundação de Lagoinha é atribuída à família dos Antocas, que se fixou na regiào do Alto Paraíba e fez doação de seis alqueires e meio de terras à Nossa Senhora da Conceição. Construíram em seu louvor, uma capela, ao redor da qual surgiram as primeiras casas. Os sobrados dos senhores do café se ergueram ao longo da vida principal, alguns dos quais se conservam até hoje. O povoado então nascente, ficou conhecido como Lagoinha, devido a existência de uma pequena lagoa em suas terras. Lagoinha foi elevada a Freguesia, sendo a paróquia constituída no mesmo ano de 1866. Em 1880, tornou-se Vila, categoria que conservou até 1934, quando o Governo Estadual o fez retornar à condição de Distrito de paz. Foi restabelecido à Município em 1953. Freguesia criada com a denominação de Lagoinha, por Lei Provincial número 22, de 26 de março de 1866, no Município de São Luiz do Paraitinga. Elevado a categoria de vila com a denominação de Lagoinha, por Lei provincial número 128, de 25 de abril de 1880, desmembrada do Município de São Luiz do Paraitinga. Constituído do Distrito Sede. Cidade por Lei Estadual número 1.038, de 19 de dezembro de 1906. Em divisão administrativa do Brasil referente ao ano de 1911, o Município de Lagoinha se compunha do Distrito Sede. Assim permanecendo em divisão administrativa referente ao ano de 1933. Pelo Decreto Estadual número 6.448, de 21 de maio de 1934, foi extinto o Município de Lagoinha, sendo seu território incorporado ao Município de Cunha. Em divisões territoriais datadas de 31-12-1936 e 31-12-1937, Lagoinha figura como Distrito apenas judiciário do Município de Cunha. Decreto-lei Estadual número 14.334, de 30 de novembro de 1944, o Distrito de Lagoinha foi transferido do Município de Cunha para o Município de São Luiz do Paraitinga, onde figura de 1945 à 1948. 1 Universidade de Taubaté Departamento de Comunicação Social
Elevado novamente à categoria de município com a denominação de Lagoinha, por Lei Estadual número 2.456, de 30 de dezembro de 1953, desmembrado de São Luiz do Paraitinga. Constituído do Distrito Sede. Sua reinstalação verificou-se no dia 01 de janeiro de 1955. E mantémse nessa categoria até presente data. Lagoinha é uma cidade aconchegante e calma, com 4.798 habitantes, segundo o levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE em 2007. O município mantém sua identidade rural pela cultura simples de seu povo. A política em Lagoinha sempre foi, e continua sendo, marcada por grande rivalidade e muitas histórias. Atualmente, o prefeito provisório é José Sérgio de Campos. O mais admirável de Lagoinha é a religião seguida por um povo de muita fé e respeito, tendo hegemonia a religião Católica Apostólica Romana. A paróquia pertence à Diocese de Aparecida SP, representada pela Igreja Matriz em louvor a Nossa Senhora Imaculada Conceição, a Igreja de São Benedito e mais treze capelas nas comunidades rurais. Na direção espiritual estão Padre Lauro Gonçalves Firmino (Pároco) e Padre Osmar Barbosa (Vigário Paroquial). As festas religiosas são costumes atrativos, tendo maior destaque a Festa do Divino, que é tema deste trabalho. A festa do Divino Espírito Santo tem sua origem no círculo pagão de manifestações durante a Idade Média, na Alemanha. As festas populares, nesta época, traziam em si, tanto a preocupação com o agradecimento às divindades, quanto às colheitas. Eram realizados rituais em prol da melhora da produção rural. Acreditavam ainda, que assim, suas produções ficariam imunes às pragas e a outros malefícios que por ventura ocorressem advindos da natureza. A festa, então, era ligada aos ciclos agrícolas, tendo como data o chamado solstício de inverno (22 ou 23 de junho), onde o Sol passa pela sua maior declinação boreal. O Cristianismo, em muitas situações, absorveu esta festa, que passou a ser realizada nas comemorações de Pentecostes. Em Lagoinha, por exemplo, a festa segue o calendário da Igreja Católica, e é realizada sempre três meses após a Páscoa. Voltando aos primórdios da festa, ela foi levada a Portugal no final do século XV pela rainha Isabel de Castela (1470-1498). No século seguinte (1522), já era realizada naquele país para angariar fundos que seriam empregados na manutenção de hospitais e outras obras de assistência domiciliar; Nessa mesma época, a festa já existia também nos Açores. Tanto a festa de Portugal quanto a dos Açores influenciaram muito as características encontradas nas Festas brasileiras desde a época colonial, e a festa do Divino de Lagoinha tem toda uma identidade com estas manifestações ibéricas. No Brasil não há consenso sobre uma data precisa para que a festa tenha se iniciado embora ainda no período colonial tenha exercido grande destaque em todo o território brasileiro. No Vale do Paraíba, a notícia mais remota é uma referência sobre uma crítica de um visitador santo em Guaratinguetá que data 1761. Já nessa observação, o principal problema estava na sempre conflituosa relação entre o sagrado e o profano. A festa do Divino possui um ciclo anual sendo apresentado no último dia da Festa o festeiro do próximo ano e que logo se junta à Folia do Divino, iniciando a peregrinação para arrecadar prendas para a próxima festa. As Folias, originárias de Portugal, executavam inicialmente uma dança rápida e bem diferente da praticada hoje no culto ao Divino, persistente tanto na Beira, no Velho Continente, como adaptada e influenciada, nas regiões mineiras e paulistas do Brasil. Uma diferença fundamental entre as folias européias e as brasileiras é a sua função de recolher prendas, típica da nossa cultura. É muito forte no catolicismo a idéia de reciprocidade, sendo esta festa e estes instantes de preparação, momentos para se estabelecer os pactos com o sagrado, resultando nestas promessas geralmente cumpridas nos momentos das
festas do Divino. Levar a bandeira na procissão com os símbolos das graças alcançadas é uma destas modalidades. De maneira importante e causadora de muitos conflitos, esta relação com o sagrado geralmente prescinde da atuação da Igreja e de seus agentes eclesiásticos, afinal quem carrega a bandeira são pessoas identificadas como de seu grupo social. Mesmo quando um poderoso é o festeiro do Divino parece que ao empunhar a bandeira transforma-se em um cidadão comum a serviço do Espírito do Santo assim como todos os outros, é novamente a excepcionalidade dentro da organização social destas pessoas. (SANTOS, João Rafael Coelho Cursino. A Festa do Divino de São Luiz do Paraitinga: o desafio da cultura popular na contemporaneidade. Relatório para qualificação de mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2007). Como relatado por João Rafael Santos, o festeiro, após tomar em mãos a bandeira do Divino, se transforma em um servidor do Espírito Santo, e é encarregado de angariar fundos para realização da festa, bem como, levar as bênçãos da entidade santíssima àquelas pessoas que precisam e dedicam devoção. A folia, que se junta ao festeiro, tem a missão de guardar pela bandeira e proclamar rituais de pedidos e bênçãos pelas ofertas ao Divino. É considerada peça fundamental da tradição, e seu trabalho de peregrinação desdobra meses antecedentes à festa. A partir das descrições realizadas anteriormente, darei início à análise do processo comunicativo estabelecido no decorrer da Festa do Divino, referenciando, sempre, a resistência das tradições e relacionando com estudos acerca dos agentes e meios populares de informação de fatos, idéias e costumes. Desenvolvimento Após serem realizadas as peregrinações da folia e bandeira do Divino e arrecadados os fundos pelo festeiro, dá-se início, numa sexta-feira, a festa do Divino Espírito Santo. O primeiro ritual em Lagoinha é a primeira novena, realizada na Igreja Matriz, no centro da cidade, onde são bentas as bandeiras dos fiéis e a apresentação da folia. Em todos os dias subsequentes serão realizadas procissões que saem da Igreja, ao término da novena, e se deslocam até o Império da Festa. O Império é uma sala repleta de enfeites, e possui local fixo na cidade, é instalado na Congregação do Apostolado Mariano, ao lado da Igreja Matriz. Em seu interior predomina a cor vermelha denominada a cor do Divino. Ali ficarão todas as bandeiras, o cetro e a coroa, símbolos do Império do Divino, que durante a festa transformam este local num dos de maior destaque no pequeno município, trazendo além de toda devoção popular, um caráter de nobreza que afirma os preceitos da festa. Mesmo com a forte participação das camadas populares, a Festa do Divino sempre foi uma festa nobre. No período colonial a própria importância do imperador na festa refletia o poder político da realeza além da tradição, ainda muito presente na maioria das cidades, do imperador ser representado por uma criança, aliás, uma forma de legitimar o imperador ainda criança em nosso passado.
A realeza e Império dão ainda ao Divino, confirmando as tantas analogias entre o poder e o sagrado, a conotação de inspiração e poder que vem de Deus, sendo o iluminador e o propagador dos dons do Espírito Santo. No primeiro sábado da festa, acontece a Procissão do Encontro, onde a bandeira do Divino, que percorre a cidade o ano todo em peregrinação, encontra-se com as bandeiras dos fiéis. Durante os dias da novena, a parte conhecida como profana da festa acontece nas ruas da cidade. Apresentam-se grupos folclóricos de congadas, moçambiques, folias de várias regiões, shows musicais de estilo sertanejo, grupo de danças, além da infinita variedade culinária que é encontrada, nesta época, em Lagoinha. Encontra-se desde o tradicionalíssimo e delicioso bolinho caipira, até doces introduzidos de outras culturas, como fondue de chocolate e frutas. Compõe, ainda, o cenário da festa parque de diversões e barracas com diversas finalidades, desde venda de roupas até jogos de azar. Também faz parte das tradições dos dias de festa, a distribuição de refeições gratuitas, tendo como cardápio o afogado um cozido de carne com batatas, macarrão com carne e a típica quirera de milho com frango e carne suína. Todos doam sua prenda ao Divino e recebem sua comida abençoada como resposta e meio de proteção. O último ato litúrgico da festa é a Procissão do Divino, ocorre no domingo final e, por sinal, é o momento mais esperado pelos participantes das festividades. Nela participam o Imperador (festeiro) atual e o futuro. Integram ainda ao cortejo a Irmandade do Santíssimo Sacramento e a de São Benedito, a folia do Divino, grupos de moçambique e congadas. O andor do Divino, trazendo os símbolos da pomba e da coroa sai ricamente adornado e é conduzido por guardas de honra. A banda musical e a multidão de devotos, sempre em atitude de fé e reverência, percorrem as ruas mais tradicionais da cidade. Ao findar a procissão, inicia-se a missa vespertina que vai coroar o novo Imperador. Com essa atitude, a festa é sacramentada e legitimada. Mais tarde, tradicionalmente, ocorrerá uma queima de fogos em comemoração à festa que se findou e já se iniciam os preparativos da próxima. Uma questão importante a ser discutida, é o aspecto do entretenimento que essa festa vem adquirindo de alguns anos para cá visando atender, sobretudo, o crescente público do turismo. Este último grupo é muito atraente pela questão econômica, ficando de lado o sentido de participação ativa na festa, porém, não se pode simplificar a questão, pensando que o turismo seja algo altamente prejudicial à festa, mas é importante refletir a respeito. Resultados Finais Analisando as inúmeras manifestações presentes na festa é possível concluir que a Folkcomunicação, a comunicação dos marginalizados segundo Luiz Beltrão, se faz presente de forma contínua no evento. A cada tradição é um processo comunicativo estabelecido, podemos
exemplificar com a folia, que realiza com os devotos que visita uma troca, não só de prendas, como uma troca de orações e bênçãos, ou seja, uma troca de códigos, que são bens culturais, conforme denominou o filósofo e linguista italiano, Umberto Eco. A bandeira do Divino, por sua vez, realiza um processo de comunicação sensorial visual, com sua estampa da Pomba, que é símbolo da paz e plenitude. As fotos e objetos que os fiéis penduram na bandeira, criam um conjunto de informações que não passam despercebidas por cada devoto que nela quer tocar, buscando a benção e proteção do Espírito Santo e selando uma comunicação sensorial tátil. Esse talvez seja um dos processos comunicativos mais longos identificados no decorrer dos louvores, pois a bandeira peregrina meses antecedentes à festa, já reunindo esses objetos que constituem a imagem e história do povo, por onde a folia e o festeiro passaram. As procissões carregam características peculiares de Lagoinha, é organizada em duas únicas filas, mantendo um largo corredor entre elas, para que o andor do Divino Espírito Santo e as figuras nobres do ensejo passem pelo meio. As mulheres sempre à frente rezando e com véu na cabeça, e os homens logo atrás de cabeça baixa em respeito à entidade santa e nobre que ora é louvada. Durante a procissão, ouvem-se apenas as vozes daqueles que pedem, em oração, intercessão, proteção e paz. Luiz Beltrão, no livro Folkcomunicação, a comunicação dos marginalizados p. 67 a 78, faz uma interpretação do culto ao Divino, ele cita as origens, descreve rituais das folias e da cavalhada, luta entre Mouros e Cristãos. Ele também faz uma referência ao leilão do Divino, onde tudo que não pode ser aproveitado para a festa é leiloado. Lagoinha realiza o leilão exatamente como Beltrão o descreve. É reunidas as prendas que não foram usadas para a festa e é realizado o leilão, apregoado por um gaiato que lança as ofertas e intercala com piadas e brincadeiras, divertindo o numeroso público. O leilão tradicionalmente é realizado na tarde do domingo, dia da festa. Os processos comunicacionais estabelecidos em tal ocasião são os mais variados, porém, todos eles são dotados da autêntica cultura do homem caipira, e não há qualquer conotação pejorativa em relação à figura dele, pelo contrário, é a real essência do homem simples, que sabe levar a vida com alegria. O grande valor da Festa do Divino Espírito Santo de Lagoinha está na fé do seu povo, está no empenho daqueles que se dedicam aos preparativos e à realização dessa manifestação magnífica, que resgata e mantém a maravilhosa cultura do homem sertanejo. Pesquisar tal cultura, para mim, é a satisfação de um desejo imenso de conhecer cada vez mais a identidade desse povo autêntico, de uma beleza ímpar e, que carrega consigo, uma fé convicta no encontro com Deus e o Espírito Santo. Espero, com este trabalho, ter conseguido registrar um pouco do que é a Festa do Divino de Lagoinha e ter relacionado com os respectivos estudos feitos acerca da comunicação popular. Não há dúvidas em relação à variedade dos processos comunicacionais estabelecidos em uma manifestação como essa, porém, registrá-los e analisá-los completamente, seria uma tarefa longa e digna de um estudo muito aprofundado acerca da disciplina de Folkcomunicação. Conclui-se, por fim, que Lagoinha, não diferente de outras cidades, realiza esse processo de comunicação popular, porém, de maneira formidável. As manifestações descritas anteriormente carregam a essência da tradição católica e, sobretudo, da tradição caipira. Estabelecendo não só um processo de Folkcomunicação, mas realizando um trabalho de resgate e manutenção da identidade local, dando resistência a cultura da cidade e criando um paradigma da Festa do Divino Espírito Santo de Lagoinha.
Referências Bibliográficas - SANTOS, João Rafael Coelho Cursino. A Festa do Divino de São Luiz do Paraitinga: o desafio da cultura popular na contemporaneidade. Relatório para qualificação de mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2007. - ALMEIDA, Jaime. Foliões (TOMO I e II). Tese de doutoramento apresentada ao Departamento de História da FFLCH-USP. São Paulo, 1987. - AZZI, Riolando. História da Igreja Católica no Brasil. São Paulo, Edições Paulinas 1983. - BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O Divino, o Santo e a Senhora. Rio de Janeiro: Fundação Nacional da Arte, 1978. - DUVIGNAUD, Jean. Festas e Civilizações. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará/Tempo Brasileiro, 1983. - RAVELI, Flávia Albergaria. A reforma ultramontana e a Festa do Divino. Dissertação de Mestrado, São Paulo, FFLCH-USP, 1999. - BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados (p. 67 a 78). São Paulo, Editora Cortez, 1980. - SILVA, Altair Viana da. Conhecer-Compreender-Construir. Lagoinha: Livreto, 2000. - SANTOS, Elaine Aparecida Carvalho Cursino. Variação Linguística: A linguagem de Nhô Godoy - Lagoinha SP. Taubaté: Universidade de Taubaté, Departamento de Ciências Sociais e Letras, 2005. - VILALBA, Rodrigo. Teoria da Comunicação: conceitos básicos. São Paulo: Ática, 2006. - BOSI, Alfredo. Cultura Brasileira: Temas e situações. São Paulo, Editora Ática, 2ª edição, 1992.