O uso da língua materna na aprendizagem da língua estrangeira: as perspectivas do aluno e do professor Neide Aparecida Arruda de Oliveira
resumo Este trabalho examina a utilização da Língua Materna (LM), como recurso mediacional na aprendizagem da Língua Estrangeira (LE), por alunos do curso de Engenharia Química, identificando quando e para quê os aprendizes utilizam a LM nas interações em sala de aula, verificando também, os tipos de suportes propiciados pela professorapesquisadora para construir oportunidades de aprendizagem que propiciem aos alunos co-construírem o conhecimento da LE que desejam aprender. Palavras-Chave língua materna; língua estrangeira; interação social. Introdução Este trabalho insere-se em um projeto mais amplo que visa a examinar o papel da língua materna (LM) na aprendizagem de línguas estrangeiras (LEs), projeto esse que se justifica pela necessidade cada vez maior de compreendermos as ações de aprendizagem de alunos nos vários contextos institucionais. Neste estudo, especificamente, o contexto contemplado é o curso de graduação em Engenharia Química. O objetivo do recorte que apresentamos aqui é investigar o uso na LM na interpretação e produção da LE e os processos estratégicos nos quais os alunos se apóiam para aprender a segunda língua, procurando entender esses aspectos dentro da perspectiva vygotskiana. janus, lorena, ano 2, nº 2, 1º semestre de 2005 137
1 Perspectiva Teórica O papel da língua materna na aprendizagem da segunda língua tem sido amplamente discutido ao longo dos tempos. Dentro da perspectiva mentalista, por exemplo, o uso da língua materna foi visto como uma estratégia de aprendizagem (O Malley et al, 1985; Oxford, 1990) ou de comunicação (Tarone, 1981), possibilitando ao aluno processar e produzir a segunda língua. Dentro dessa perspectiva, então, entendese que, no processo de aprendizagem da segunda língua, o aprendiz recorre, por exemplo, à tradução literal (O Malley et al, 1985; Oxford) quando não dispõe de recursos suficientes da língua alvo para processála, ou utiliza a estratégia de mudança de código (O Malley, 1985), isto é, complementa os enunciados para os quais não dispõem de recursos na LE com itens lexicais ou estruturais, e muitas vezes, longos trechos de linguagem, na própria LM. Dentro da perspectiva vygotskiana (Vygotsky, 1987), por sua vez, a LM é entendida como fator crucial no desenvolvimento da segunda língua. Dentro dessa perspectiva, John-Steiner (1985), discute, por exemplo, os processos analíticos nos quais os aprendizes de LEs em situação de imersão de seu estudo se apóiam para aprender a segunda língua, bem como o amplo uso de materiais e recursos escritos, e o fato de que esses aprendizes utilizam, também amplamente, o sistema de significados da LM para processar e produzir significados na segunda língua. De maneira geral, então, dentro dessa perspectiva, entende-se o papel da LM na aprendizagem da LE como envolvendo os processos estratégicos (Frawley e Lantolf, 1985) possibilitados pelo grau cognitivo atingido pelo aprendiz em seu percurso de desenvolvimento da primeira língua, construído nas situações sociais de que participa, principalmente em contextos escolares (Vygotsky, 1987), bem como a mediação do sistema de significados da língua alvo. 2 Procedimentos metodológicos Em estudos de aprendizagem de línguas, fontes de informação importantes são os processos observáveis das interações sociais em sala de aula. Outras fontes consistem de relatos pessoais, escritos ou orais. Para John-Steiner (1985:358), os segundos são de fundamental 138 janus, lorena, ano 2, nº 2, 1º semestre de 2005
importância para clarificar aspectos que não podem ser abordados apenas através de observações exteriores. Por exemplo, segundo a autora, quais são as estratégias utilizadas pelos aprendizes para obter insumo compreensível, em situações de aprendizagem de outra língua em situações de imersão? Da mesma forma, podemos perguntar quais são as estratégias utilizadas pelos alunos fora da sala de aula, em complementação à aprendizagem escolar. Ou como o aluno iniciante pode iniciar ou sustentar conversas, e dentro de quais tópicos se sente mais confortável, em situações de imersão, ou fora da sala de aula, complementando as situações de aprendizagem escolar. Com base nisso, nosso estudo foi realizado com base em dados de aulas gravadas e transcritas, no caso dos alunos de Engenharia Química, o que nos possibilitou observar os processos dos alunos em sala de aula Os dados foram coletados em 2001. 3 Discussão Para Vygotsky (1987), a interação social é um mecanismo para o desenvolvimento individual, uma vez que com a participação de um colaborador mais capaz (professor ou colega), o aprendiz iniciante é levado a participar de espaços nos quais compartilha com o colaborador de procedimentos estratégicos para resolução de problemas (de linguagem ou outros) bem como da própria linguagem com a qual esses procedimentos são operacionalizados. Mais especificamente, o evento interpsicológico constituído dialogicamente entre participantes que têm habilidades desiguais é uma maneira para o aprendiz ampliar seu nível de competência, tanto lingüístico, como estratégico. Nesse processo, é importante ressaltar o papel do participante mais experiente, no caso deste estudo o professor, que é freqüentemente visto guiando, apoiando e moldando ações estratégicas e de linguagem do participante iniciante, que, por sua vez, internaliza os processos (estratégicos e de linguagem) do colaborador. Nesse processo ainda, é importante ressaltar o uso da LM pelos alunos, não apenas na medida em que recorrem à primeira língua como um sistema de significados e estruturas já constituído, para dar conta dos elementos de que ainda não dispõem na língua alvo, mas também na medida em que se apóiam em procedimentos estratégicos desenvolvidos principalmente janus, lorena, ano 2, nº 2, 1º semestre de 2005 139
durante a aprendizagem da primeira língua, em particular em situações escolares, como as abordagens analíticas e o apoio em procedimentos e recursos escritos. Também, é ainda importante ressaltar o uso da primeira língua por professora e alunos, na medida em que a LM é utilizada para colocar em evidência e trazer à consciência os itens desconhecidos da língua alvo, convertendo-os em objetos de análise (Swain, 2000), e contribuindo assim para o próprio desenvolvimento da segunda língua. Isso pode ser visto nos trechos de duas aulas de um contexto de ensino de inglês para alunos de Engenharia Química, que transcrevemos a seguir: Aula 1 (1) P - Ok! A1, can you read exercise number 1 for us? Ok, first let s read what we have to do, ok? (a professora está lendo) Substitute the past tense form of going to for the verbs in italics. Did you understand when we use going to? (2) A1 - Yes, but we don t know algumas palavras. (3) P - Ok. You don t know some words, ok! That s no problem. Then, you can ask me, ok? Do you know how to ask for information in English? (4) A1 - No. (5) P - Teacher, how can I say `algumas palavras in English? Then, I will explain it, ok? (6) A1 - Please, write on the blackboard. (A professora escreve no quadro e a aluna anota). May I begin? (7) P - Yes, of course! [...] (8) P - The title is Hello, my name is... Jennifer (colon) Hello (period) (at the same line) My name is Jennifer Wan (period or full stop) Do you remember? (9) Sts - Yes. 140 janus, lorena, ano 2, nº 2, 1º semestre de 2005
(10) A2 - Teacher please, devagar, speak devagar! (11) P - How can I say devagar in English? (12) A2 - I don t know! (13) P - Slowly. (14) A2 - Ok, teacher, speak slowly! (15) P - Ok, I m sorry. Aula 2 (1) P - Hello, students! How are you? Is everything ok? (2) Sts - Yes/ so so/ more or less. (3) P - Ok. Page 79, let s read What s this called in English? Snapshot: Things people carry. (Há uma figura com diversos objetos e os nomes escritos em inglês, a profª lê e verifica se os alunos estão entendendo). A comb, a wallet, an address book, credit cards, glasses, pens, a driver s license, a hairbrush... (4) A3 - (Consultando suas anotações) Teacher, how can I say escova de dente in English? (5) P - Toothbrush, ok? [...] (6) P - What are you carrying in your schoolbag today, A3? (7) A3 - Isso aqui, certinho é: I m carrying, eu estou carregando? (8) P - Yes. What are you carrying in your schoolbag today? (9) A3 - I don t have money. I have driver s license, keys of my house, glasses, wallet sem money, teacher, how can I say sem in English? janus, lorena, ano 2, nº 2, 1º semestre de 2005 141
(10) P - Without, ok? I have a wallet without money. (11) A3 - Hamm... and a credit card and a photo of my girlfriend Lili. (12) A4 (ri) Como pode ser visto no primeiro trecho transcrito da Aula 1, o uso da LM (algumas palavras) por A1 dentro de um enunciado na língua alvo, em (2), não apenas revela para a professora o desconhecimento do aluno do item correspondente na língua alvo, situação para a qual a professora não fornece o item necessário de imediato, mas principalmente coloca em relevo o aspecto a ser trabalhado naquela interação, seja o da forma lingüística na língua alvo que dê conta do significado pretendido pelo aluno, seja de algum procedimento estratégico que possa levar o aluno a aprender tal item. A professora, então, fornece a esse aluno o procedimento de solicitação de auxílio (Oxford, 1990) (Then, you can ask me, ok?), em (03), assim como o item lingüístico na língua alvo que pode permitir ao aluno fazê-lo, em (5) (Teacher, how can I say algumas palavras in English?), bem como modela novamente o procedimento de solicitação de auxílio, com A2, em (11), (How can I say devagar in English?), antes de fornecer o item lingüístico solicitado pelo aluno (devagar) na língua alvo, o que faz em (13). Ao assim fazê-lo, então, a professora constrói uma oportunidade de aprendizagem em sala de aula que propicia aos alunos co-construírem o conhecimento de elementos procedimentais e lingüísticos que podem auxiliá-los a romper o código da língua estrangeira que desejam aprender. Nesse processo de negociação de significados, é importante notar ainda o fato de que A1 pede à professora que escreva o item desconhecido no quadro-negro, copiando-o em seu caderno, apoiando-se no procedimento de tomar notas, como recurso auxiliar para a retenção da informação fornecida, procedimento esse característico de aprendizes que já atingiram um determinado grau de desenvolvimento cognitivo (John-Steiner, 1985). O processo de apropriação do conhecimento estratégico bem como do conhecimento lingüístico através do qual operacioná-lo, em construção coletiva (Moll, 1991) pelos alunos, por sua vez, pode igualmente ser visto nos trechos transcritos da Aula 2, em (4), quando ainda outro aluno (A3) utiliza a estratégia, após consulta a suas anotações sobre a forma lingüística com a qual operacioná-la (Teacher, how can I say escova de dente in English?), e finalmente, quando a usa de maneira independente, em (9), (teacher, how can I say sem in English?), no segundo trecho transcrito da Aula 2. 142 janus, lorena, ano 2, nº 2, 1º semestre de 2005
Nesse processo ainda, é interessante e importante salientar o papel da LM enquanto sistema de significados socialmente constituído, no qual o aprendiz se apóia para processar e analisar a língua alvo, o que se revela na tradução feita por A3, em (7), (Isso aqui, certinho, é: I m carrying, eu estou carregando?), antes de responder à pergunta feita pela professora, em (6), (What are you carrying in your schoolbag today, A3?). Considerações finais Os resultados deste estudo apontaram a construção da aprendizagem da LE como um processo que se apóia amplamente no sistema de significados e de estruturas da LM. Isso, por um lado, propicia aos participantes das interações em sala de aula, professores e alunos, fazerem sobressair aspectos que desejam problematizar ou analisar, bem como terem maior segurança em sua interpretação e compreensão de itens da língua alvo, como vimos nos dados. O papel do professor ou do colega colaborador na construção do novo conhecimento, no entanto, é fato indiscutível, como mostraram muito claramente os dados das aulas do contexto de Engenharia Química. Resta aos participantes das interações em sala de aula continuar na busca de maneiras mais efetivas de fazer uso do conhecimento já existente, adquirido ao longo de toda uma vivência cotidiana ou escolar, na construção da nova língua que se quer aprender. Referências DONATO, R. Collective Scaffolding in Second Language Learning. In Lantolf, J. P. & Appel, G. (Eds.) Vygotskian Approaches to Second Language Research. Norwood, New Jersey: Ablex Publishing Corporation, 1994, pp. 33-55. FRAWLEY, W. & LANTOLF, J. P. Second Language Discourse: A Vygotskian Perspective. Applied Linguistics, Vol. 6, N. 1, 1985, pp. 19-44. janus, lorena, ano 2, nº 2, 1º semestre de 2005 143
JOHN-STEINER, V. The Road to Competence in an Alien Land: A Vygotskian Perspective on Bilingualism. In James V. Wertsch (Ed.) Culture, Communication & Cognition. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, 348-371. MOLL, L. C. 1991. Teaching Second Language Students: A Vygotskian Perpsective. In Johnson, D. M. & Roen, D. H. (Eds.) Richness in Writing: Empowering ESL Students. London: Longman, 1991, pp. 55-69. O MALLEY, J. M.; CHAMOT, A. U.; STEWNER-MANZANARES, G; RUSSO, R. P.; & KUPPER, L. Learning strategy applications with students of English as a second language. TESOL Quarterly 19:557-584. OXFORD, R. Language Learning Strategies: What Every Teacher Should Know. New York: Newbury House, 1990. SWAIN, M. The output hypothesis and beyond: Mediating acquisition through collaborative dialogue. In LANTOLF, J. P. (Ed.) Sociocultural Theory and Second Language Learning. Oxford: Oxford University Press, 2000, pp. 97-114. TARONE, E. Some thoughts on the notion of communication strategy. TESOL Quarterly, 15, 1981, pp. 285-295. VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1987. Abstract This work analyses the EFL teaching-learning process of Chemical Engineering students, verifying the role of mother tongue and its use in the learning process. By the other hand, this study verifies the several kinds of supports given by the teacher during the EFL teaching-learning process to these students. At EFL learning studies, the perceptive processes are source of important information in the social interaction classrooms. The results of the analysis of EFL learning process of Chemical Engineering students showed that they learn a foreign language based on the mother tongue language system. The supports given by the teacher helped the students to develop the foreign language. Neide Aparecida Arruda de Oliveira é professora, Mestre das Faculdades Integradas Teresa D Ávila, de Lorena. 144 janus, lorena, ano 2, nº 2, 1º semestre de 2005