Vol. 2 3 (2). (1). jul./dez Jul./Dez Jan./jun 2009 NOVAS URGÊNCIAS SOCIAIS: A PSICANÁLISE E O PLANO DE SAÚDE Marcia Müller Garcez 1 RESUMO: O trabalho consiste em abordar a atual discussão sobre a psicanálise aplicada à terapêutica e seus desdobramentos na prática tomados a partir do atendimento clínico via plano de saúde. Essa nova modalidade de atendimento, legitimada pelo discurso do mestre para abarcar o sofrimento da civilização contemporânea, traz novas reflexões sobre o uso da psicanálise e sobre o desejo do analista frente às demandas sociais. Como sustentar os princípios da psicanálise sem ceder ao discurso do mestre e cair na falsa promessa de cura e como manejar os dispositivos institucionais oferecidos contemplando a questão do pagamento na análise são assuntos tocados nesse trabalho, que só pôde ser construído a partir do encontro do analista com essa modalidade clínica. Palavras chave: psicanálise aplicada; discursos; plano de saúde. NEW SOCIAL EMERGENCIES: THE PSYCHOANALYSIS AND THE PRIVATE HEALTH ABSTRACT: This essay brings up the current discussion about psychoanalysis applied to therapy and its effects on the practice taken from the private health insurance. The new service mode legitimized by the master s discourse to enclose the suffering of the contemporary civilization - brings new reflections about psychoanalysis usage and the analyst s desire in the face of social demands. How to support the principles of psychoanalysis, without ceding to the master s discourse and fall for a false promise of cure and how to handle institutional devices noticing the issue of the analysis payment are subjects proposed in this essay, which could only be built from the encounter between the analyst and this clinical modality. Key-words: psychoanalysis applied; discourses; private health. 1 Psicanalista e sócia proprietária da Clínica Falasser Niterói RJ. Participante do Núcleo de Pesquisa Curumim Escola Brasileira de Psicanálise Seção Rio. Mestranda 2010 em Psicologia UFRJ. 87
INTRODUÇÃO A PAISAGEM SOCIAL A vida contemporânea requer um novo olhar para as formas de organização social. Cada época pode ser pensada pelas características de seu laço social. Se antes, no mundo industrial, havia um ideal a se chegar, uma organização onde havia um topo, hoje com a modernização e globalização, os ideais se pulverizam. Com isso, não se sabe mais aonde chegar ou mesmo aonde ir. Lipovetsky (2007), ao nomear esse novo tempo como hipermoderno, coloca que além de uma aceleração no ritmo social, há uma intensificação na esfera do mercado, do indivíduo e na escalada técnico científica. Sobre a esfera do indivíduo, ele comenta: Até os comportamentos individuais são pegos na engrenagem do extremo... Delineiam-se duas tendências contraditórias. De um lado, os indivíduos, mais do que nunca, cuidam do corpo, são fanáticos por higiene e saúde, obedecem as determinações médicas e sanitárias. De outro lado, proliferam as patologias individuais, o consumo anômico, a anarquia comportamental (LIPOVETSKY, 2007, p.55) Esses e outros paradoxos caracterizam nossa atual paisagem social e essas transformações convocam a psicanálise a responder de outro lugar, para além dos consultórios, aplicada em diversos campos de atuação, desde o momento em que vai à rua, inserindo-se em hospitais, escolas e instituições em geral, até sua aplicação na própria Escola de psicanalistas. Mas, o que trago para acrescentar, a meu ver, nessa variedade de psicanálise aplicada é sua aplicação em uma nova modalidade de atendimento que consiste em um desafio para a psicanálise: o atendimento via plano de saúde. A APLICAÇÃO DA PSICANÁLISE Nesta nova modalidade de atendimento, o indivíduo chega com um tempo determinado pelo plano de saúde, porém, logo no primeiro contato com o analista, fica esclarecido que este é o tempo que ele poderá desfrutar do plano, mas o tempo de análise é indeterminado cronologicamente e ele mesmo deverá, se desejar, responsabilizar-se pelo curso de sua análise. Esse tempo, determinado pela lei sobre os planos de saúde em um mínimo de 12 sessões ao ano, pode ser distribuído semanalmente equivalendo a aproximadamente três meses de trabalho ou pode ser alternado com sessões particulares, ficando esse critério e opção para o paciente, de modo com que ele tenha que administrar sua análise e as sessões a que tem direito. Abre-se uma porta para aplicação e extensão da psicanálise e caberá ao analista e ao sujeito em análise engancharem-se no processo. Em um texto extraído da publicação de um livro sobre psicanálise aplicada, tema discutido em jornada na Escola da Causa Freudiana, o autor Pierre-Gilles Guéguen comenta:... o fato de haver análise não depende nem de sua duração, nem do lugar, nem do ritual, mas sim do tipo de operação que se efetua sobre o gozo, graças aos poderes da fala: para nós, o enquadre é feito para servir à análise, e não que a análise seja feita para servir ao enquadre (GUÉGUEN, 2007, p. 19). OS DISCURSOS A partir da introdução dos quatro discursos por Lacan (1992) no Seminário 17, 92
podemos pensar esse enquadre como imposto pelo discurso do mestre ou aqui, pelas operadoras de plano de saúde e o analista, tratado como prestador, deve saber-fazer com essa não-relação: Operadoras X Prestadores. O discurso do mestre é o ponto de partida e após o encaminhamento para análise, esse discurso poderá versar para o discurso analítico e então o sujeito advir. A a - $ S2 S1 M S1 S2 $ a Assim, o agente no discurso do mestre, que nesse trabalho se coloca ao lado das operadoras da saúde (S1), se dirige ao saber (S2) e produz um resto renunciado (a). Ao chegar para os prestadores (que, a partir do discurso analítico, não são mais os que simplesmente prestam serviços), o agente passa a ser esse objeto a dirigido ao sujeito ($) para que este produza os significantes primordiais que o alienam, tendo o saber colocado na experiência como a sua verdade. Esse giro nos discursos só será estabelecido a partir da instauração de um saber que é apenas suposto - no analista, que, por sua vez, como agente desse discurso, faz-se de semblante de objeto a, causa de desejo. A transferência será a mola propulsora para que esse encontro com o analista possa transformar a busca de sentido em um saberfazer com um não-sentido resultante da operação analítica. No seminário 18, Lacan (2009) aponta o lugar do agente também como o lugar do semblante e que vai nomear cada discurso. Isso nos possibilita pensar ainda mais como esse discurso opera no social....é quando o significante-mestre encontra-se num certo lugar que falo do discurso do mestre. Quando um certo saber o ocupa, falo do discurso da universidade. Quando o sujeito, em sua divisão, fundadora do inconsciente, encontra-se instalado ali, falo do discurso da histérica. Por fim, quando o mais-de-gozar ocupa esse lugar, falo do discurso do analista (LACAN, 2009, p.24). Então, podemos começar a refletir no que consiste a análise com seus pontos fundamentais e como podemos aplicá-la a essa nova forma do sujeito se chegar, sob o discurso e a demanda social. Deparamo-nos com uma nova demanda ou ausência dela. Os indivíduos que chegam, por vezes estão curiosos ou precisavam desse estímulo para chegar, mas por outras e muitas outras só querem usufruir do plano de saúde como um modo de gozo. O analista será apenas mais um especialista da lista que eles percorrem. Caberá ao analista mais uma vez se prestar ao lugar de objeto que lhe cabe nesse momento e saber ouvir de cada um à que veio - sempre apostando no que pode acontecer a partir desse encontro. Entrarão em jogo os pontos cruciais da psicanálise como a transferência e o fato de o analista poder escutar quando o sujeito não optar por pagar sua análise, se não for possível incidir nesse momento na relação de gozo que o sujeito estabeleceu com o plano de saúde. No entanto, as portas se abrem para muitos que estavam em casa supervisionados e medicados pela clínica psiquiátrica e uma gama de material clínico se oferece ao analista que mergulha nessa clínica que se presta a um saber-fazer com isso. Inserir um terceiro - no caso o plano de saúde - que sustenta a análise para o indivíduo e depois poder convocá-lo ao trabalho, passando das entrevistas iniciais à análise propriamente dita consiste em um novo e singular manejo da clínica psicanalítica e em uma nova aposta: a passagem da psicanálise aplicada à pura. Algumas correntes da psicologia questionaram o fato das sessões serem 93
limitadas, alegando que os planos deveriam cobrir o tratamento integralmente. No entanto, encontraríamos a dificuldade em determinar quem teria o direito e por quanto tempo, o que nos remeteria a uma prática seletiva e de diagnósticos. Devemos estar atentos para não ceder ao discurso do mestre e acabar por conduzir a psicanálise à falsa promessa de cura. A QUESTÃO DO PAGAMENTO Outro ponto seria a questão do pagamento, que sabemos estar intimamente ligada ao processo analítico. O pagamento deve ser caro ao sujeito, é preciso cobrar nãopouco para que esse preço lhe seja mais valioso que o seu sintoma. O sujeito deve pagar bem para que possa abrir mão de seu sintoma em nome da análise. Esse não-pouco só pode ser escutado pelo analista na singularidade do discurso de cada analisando. Por outro lado, o analista deve adequar essa escuta ao seu não-pouco a receber enquanto analista - como Freud (1969) já indicava ao escrever Sobre o início do tratamento. Dessa forma, proponho pensar sobre o delicado manejo da passagem das sessões pagas pelo plano de saúde também caro ao sujeito ao pagamento direto com dinheiro, moeda libidinal por excelência. Essa passagem também se diferencia de quando o sujeito procura uma análise já disposto a pagar por isso. Ele vai apoiado no plano que já paga, então, somente o encontro com o analista e o cuidadoso manejo ao amoedar o sintoma podem possibilitar esse pagamento. A entrada dessa moeda na análise é parte integrante do manejo da transferência e possibilita que as questões atreladas a esse significante possam ser relançadas no processo analítico. Ao mesmo tempo, ao passar a sustentar a própria análise, o sujeito a lança em um tempo próprio, libertando-se do tempo contabilizado pelas operadoras de saúde.o uso do plano de saúde tem sido um exemplo desse manejo: um tempo determinado é oferecido ao indivíduo ou usuário, mas a ele abre-se uma possibilidade de saber para além disso, calcado em um tempo singular. PSICANÁLISE PURA E APLICADA Nessa modalidade de atendimento, via plano de saúde, a psicanálise passa a acolher a emergência social sem perder seus pontos de ancoragem e seu manejo clínico, sobre o qual Marie-Hélène Brousse discorre: A psicanálise aplicada é um móbil maior para o futuro da psicanálise, tanto como disciplina quanto como solução ética nova, introduzida na civilização por meio dessa experiência original que é um tratamento psicanalítico (BROUSSE, 2007, p.22). É preciso oferecer-se à realidade social que se apresenta e encontrar o manejo para cada prática que surja, uma vez que os tempos atuais se apresentam com novas roupagens e novas modalidades de atendimento. Ao mesmo passo, é preciso acolher o real enquanto impossível, o que não cessa de não se escrever, e poder, assim, em uma experiência de análise, construir um saber sobre esse impossível. Apesar dessas reflexões, não deixo de registrar o cuidado que é preciso ter ao se falar de psicanálise aplicada, já que o risco que se apresenta é o da dissolução do discurso da psicanálise nos outros discursos dominantes, que hoje se faz presente na busca avassaladora por respostas possíveis e imediatas. A massificação do domínio da terapêutica requer que a psicanálise venha a responder o que é indizível e intratável, e para que seus princípios se sustentem, somente podemos falar da psicanálise pura, aquela que aplicamos a nós mesmos enquanto analistas em formação. Por isso, não acredito em uma oposição entre pura e aplicada. A pura está sempre presente, inclusive quando se estende 94
para além dos consultórios e torna-se aplicada. Com a contribuição dos autores da atualidade, que trazem um exame cuidadoso do retrato social, podemos pensar nas diferentes formas de atuar e intervir nesse contexto a partir da nossa profissão. O acolhimento para a obrigatoriedade de atendimento psicológico via plano de saúde consiste em uma forma de interferir nessa paisagem. As questões levantadas sobre como o dinheiro será acolhido e também como irá operar nessa forma de atendimento fazem dessa obrigatoriedade não apenas uma solução de mestria para o mal estar social, mas também a possibilidade de um novo dispositivo analítico. 2009.LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Bacarolla, 2007. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BROUSSE, Marie-Hélène. Três pontos de ancoragem. In: Trabalhos da Escola da Causa Freudiana reunidos pela Associação do Campo Freudiano. Pertinências da Psicanálise Aplicada. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2007. 22-26. FREUD, Sigmund. Sobre o início do tratamento (1913). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1969. Vol XII. 164-203 GUÉGUEN, Pierre-Gilles. Quatro pontuações sobre a psicanálise aplicada. In: Trabalhos da Escola da Causa Freudiana reunidos pela Associação do Campo Freudiano. Pertinências da Psicanálise Aplicada. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2007. 17-21 LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 95