A IDÉIA DE SISTEMA DE ESPAÇOS LIVRES PÚBLICOS NA AÇÃO DE PAISAGISTAS PIONEIROS NA AMÉRICA LATINA Fany Cutcher Galender



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Transcrição:

1 A IDÉIA DE SISTEMA DE ESPAÇOS LIVRES PÚBLICOS NA AÇÃO DE PAISAGISTAS PIONEIROS NA AMÉRICA LATINA Fany Cutcher Galender Trabalho apresentado à disciplina AUP 5810-Paisagismo, ministrada sob responsabilidade dos professores Euler Sandeville e Hugo Segawa, no Programa de Pós-Graduação da FAU.USP, Área de Concentração Paisagem e Ambiente Introdução A questão dos sistemas de espaços livres públicos urbanos põe em discussão duas visões que a nosso ver não são excludentes, mas complementares. Uma primeira abordagem, talvez mais recorrente, vê a idéia de uma organização do espaço a partir da distribuição de áreas livres voltadas para o desenvolvimento das atividades humanas no tecido urbano. Tais atividades, notadamente dirigidas ao lazer, à recreação e às práticas esportivas / físicas ao ar livre, seriam a motivação para a criação de parques, praças, boulevards e outras tipologias voltadas para o convívio e o lazer, agregando alguma amenização de caráter ambiental à estes espaços. É uma visão que destaca a primazia do caráter sócio-cultural do espaço livre. Já uma visão voltada para a integração dos ecossistemas pressupõe a conectividade entre estruturas que promovam a biodiversidade animal e vegetal, a drenagem e outros eventos, garantindo a manutenção dos sistemas envolvidos. Seria uma postura ecossistêmica, onde a base das intervenções priorizariam a manutenção, regeneração e recuperação dos aspectos bio-físicos. A proposta central deste trabalho é verificar como o conceito de sistema de espaços livres públicos urbanos se incorpora à prática profissional de paisagistas pioneiros que atuaram na América Latina nos final do século XIX e sua contribuição para uma posterior pesquisa que revele estas influências na ação projetual no sub-continente. A contemporaneidade dos autores selecionados leva a especulações sobre as eventuais influências que teriam sofrido nos centros urbanos mais desenvolvidos durante sua formação profissional. Permitiria, ainda, constatar situações que refletem uma convergência de idéias e posturas que propiciaram a simultaneidade de atitudes perante a questão dos espaços livres urbanos. Esta breve pesquisa poderá dar início a estudos mais aprofundados que mostrem como se deu a apreensão e evolução deste conhecimento entre nós.

2 Precursores A influência de Frederick Law Olmsted (1822-1903) para a consolidação da prática de planejamento da paisagem tem origem nos seus trabalhos em Riverside, ao preservar o riverfront para a criação de espaços abertos e, sobretudo no Plano de sistemas de espaços livres para Boston (Emerald Necklace). A crescente urbanização da zona leste dos Estados Unidos na segunda metade do século XIX, associada à intensa imigração e à expansão da malha ferroviária, provoca um rápido e desordenado crescimento das cidades desta região. Contudo, Olmsted vê nestes centros urbanos em expansão o potencial de desenvolvimento vida humana em sua plenitude, com as possibilidades de avanço tecnológico, progresso material e intelectual de todos os estratos sociais e condições de vida acessível a grandes segmentos populacionais. Para ele, a necessidade de mais espaços abertos é vital para a consolidação destas expectativas, pois áreas extremamente povoadas, carentes de ventilação e insolação adequadas são responsáveis pelas más condições de vida das antigas cidades, com suas habitações insalubres, sem condições de conforto ambiental mínimas, convertendo-se em um problema de saúde coletiva. Segundo Olmsted, a cidade como um conjunto de casas alinhadas e geminadas e de ruas em malhas ortogonais serviria somente à propósitos militares, além de não permitir soluções espaciais adequadas à vida humana. A inexistência de espaços livres entre as residências também não propiciaria o surgimento de áreas livres para a implantação de lugares para a realização de atividades ao ar livre ligadas à vida cotidiana dos moradores, além de gerar uma melhor definição da forma urbana. A introdução destes elementos presentes na vida rural (espaço, insolação, ventilação) na organização do tecido urbano seria implementada pelo arquiteto paisagista, efetivando a Metrópole como o locus ideal para o Homem. Junto com seu sócio Calvert Vaux, Olmsted criou inúmeras inovações como as parkways, que separam a circulação dos veículos de transportes do trânsito de pedestres. Sua visão acerca dos espaços livres (especialmente os parques) como elemento de integração social culminou com a construção do Central Park, onde as diferentes classes sociais poderiam conviver, criando um espaço gregário (para os grandes grupos) e de vizinhança (fomentando as relações familiares e de amizade), que, segundo ele, seriam situações universais, comuns a Humanidade ao longo de toda a História. Outra influência notável para a implementação de uma visão transformadora do espaço urbano no século XIX vem da ação do Barão de Haussmann e de Adolphe Alphand sobre a cidade de Paris, então paradigma urbanístico incontestável para as elites e gestores municipais latino-americanos. Sistemas de vias hierarquizadas perpendiculares e diagonais, sistemas de abastecimento e captação de águas pluviais e esgotos e, sobretudo, sistemas de espaços verdes foram previstos pelos dois técnicos franceses, que projetaram e implantaram sua obra graças à existência de um serviço autônomo de financiamento e gerenciamento aliado à uma vontade política, contrariamente ao que se passava na América Latina. É pela ação de Haussmann que as grandes vias foram abertas e intensamente arborizadas, juntamente com a criação de passeios (promenades) e parques como o Bois de Boulogne e o Bois de Vincennes e os Parques Buttes-Chaumont, Monceau e

3 Montsouris. Foram implantadas cerca de 40 pequenas praças e squares e ampliados e vegetados os cemitérios. No entanto, esta profunda transformação urbanística promoveu a especulação imobiliária, com o deslocamento da população de baixa renda para a região periférica da cidade de Paris, além de acarretar acusações de destruição de prédios de valor histórico significativo. Os paisagistas pioneiros Edouard André (1840-1911) Foi contratado por Alphand como jardineiro principal da cidade de Paris após estudos práticos e teóricos em escolas e museus, seguindo a carreira paterna. Realizou inúmeras obras de vulto, destacando-se o parque de Buttes-Chaumont e projetos em diversos países europeus, especialmente na Inglaterra. Teve ainda intensa atividade acadêmica, sendo professor em Versailles. Em 1868, André elaborou um Ante Projeto para a cidade de Buenos Aires, atendo-se somente às demandas apresentadas por Sarmiento, então presidente da República Argentina. Seriam praças (na realidade, squares, as praças à moda inglesa, muito em voga na época e que André havia executado com sucesso em Liverpool), boulevards e parques, sem nenhuma intenção de articulação mais profunda entre si, não manifestando qualquer ligação (seja hierárquica, seja de continuidade espacial) entre as diferentes tipologias. Apesar das semelhanças que André via entre Buenos Aires e Montevidéu, as duas capitais rio-platenses similares sob o aspecto da língua, da arquitetura, dos parques, dos cafés entre outros aspectos, ele observava uma grande diferença relativa à maneira como Montevidéu se integrava com o rio e sua topografia, contrariamente à capital argentina. Ao elaborar em 1891 o Plano para Montevidéu, denominado Informe sobre el Proyeto de transformación y embellecimiento de la Ciudad de Montevideo (Uruguay), André apresentou uma planta geral da cidade, incluindo parques, jardins públicos, plazas. boulevard marítimo, avenidas plantadas, vias novas ou retificadas, divisão de lotes, além de projetos específicos (plantas e/ou vistas) para algumas destas áreas como o Parque del Miguelete (Prado), Parque Central, Plaza de la Independencia, Plaza de la Constituición, Plaza Flores, Plaza Sarandi e Plaza Artola. O estudo, extremamente detalhado, desenvolvia cada etapa para consolidação do projeto e seus custos de implantação. Sobretudo, o plano ainda levava em conta a expansão urbana, sistema viário e a utilização de novos terrenos, prevendo a expansão da malha urbana dos então 550 hectares para 4.500 hectares. Segundo Berjman (1998, p.49), com relação aos espaços verdes, André propôs articular um sistema de parques e praças mantendo o já construído, mas remodelando-o e construindo novas unidades, criando uma rede verde com os 4 principais parques da cidade (Central, Prado, del Sur e del Cerrito), localizados em pontos extremos da cidade, acompanhadas das praças e squares, fornecendo a população locais para recreação e

4 lazer com a presença de áreas intensamente plantadas, com o aproveitamento de nascentes e cursos d água existentes, a criação de lagos, cascatas e grutas, em um estilo nitidamente gardenesque. O sistema viário reconfigurado geraria boulevards e um conjunto de vias que partiriam de cada parque criando um tecido próprio de circulação de pedestres e veículos. O boulevard marítimo talvez fosse o ponto mais interessante do plano, pois uniria o sistema viário à uma sucessão de espaços livres em uma região lindeira à costa, uma vez que esta extensa área de cerca de 20 km ligaria uma variada seleção de tipologias espaciais como o Parque del Sur, o Gran Paseo Nacional e o Porto de Regatas na Praça Ramirez, entre outros. André acreditava firmemente que as intervenções contidas neste plano contemplariam todas as classes sociais e as possibilidades futuras de expansão urbana da capital uruguaia a partir da correta análise do contexto bio-físico e da escala urbana previamente encontrada, o que implicaria em verdadeiras transformações que transcenderiam a visão pontual e esteticista de grande parte das práticas paisagísticas e urbanísticas em vigência. Charles Thays (1849-1934) Com a configuração física e administrativa consolidada em 1887, Buenos Aires se prepara para assumir o papel da grande capital sul-americana, onde os espaços livres tem sua relevância maximizada, seguindo a orientação francesa de destaque de passeios, praças, jardins e parques na definição do tecido urbano, destacando suas funções recreativas e higienistas (as idéias de oásis e pulmão transparecem nos próprios textos oficiais) e de ligação às novas regiões agregadas à cidade. Thays, aluno e posteriormente sócio de André, estabeleceu seu contato com a América Latina através da elaboração de um projeto para um parque na cidade de Córdoba, tornando sua permanência na Argentina definitiva ao assumir o cargo de Diretor de Passeios da Prefeitura de Buenos Aires em 1891. Segundo Berjman (1998, p.115), Thays permaneceu aferrado a seus princípios estéticos que coincidiam com aqueles de Adolphe Alphand e Edouard André: a estética, a higiene e a recreação. Sua intenção de criar grandes espaços livres nas cidades visava propiciar o encontro social, sobretudo das elites, em uma tentativa de tornar o espaço urbano cosmopolita, equiparando a capital argentina à algumas das principais metrópoles européias. Aliada às grandes modificações urbanas geradas pela construção de largas avenidas, a capital argentina ganhou inúmeros parques, praças e boulevares. Tal situação também se repetiria em Mendoza, Rosário, Córdoba, Tucuman e Salta. Em uma época de grande agitação política e social, marcada pelo aumento da massa trabalhadora e pelas greves, os espaços livres, especialmente os parques, originalmente criados para o lazer das camadas mais abastadas e para o embelezamento urbano, se converteram em pontos de encontro das demais classes sociais. Thays, apesar de seu estreito vínculo com a elite local, parece perceber o potencial social de sua atuação. Seu trabalho em Buenos Aires, além de tornar-se paradigma para cidades do interior argentino, também atingiria Montevidéu e Santiago do Chile, vindo a atuar até mesmo

5 no Brasil, elaborando em 1900, um projeto para São Luís do Maranhão que previa a construção de um conjunto que agregava praça, avenida-boulevard e costaneira. Não só o trinômio estética-higiene-recreação explica a concepção espacial de Thays. Ao propor seus espaços livres urbanos, intenta construir a paisagem urbana que se consolidaria a partir da inserção de tipologias espaciais significativas, marcadas pelo uso intenso de vegetação (inclusive com destaque das espécies nativas) e pelo seu desenho expressivo. Seus planos urbanísticos contemplam a distribuição equitativa dos espaços livres e vegetados, mesclando tipologias variadas para o atendimento de demandas específicas e o aumento do percentual de área verde por habitante. Thays foi o responsável pela construção do Jardim Botânico de Buenos Aires, onde pretendia criar um centro avançado de pesquisas científicas voltadas para a flora nativa e exótica, sendo ele mesmo um grande estudioso do tema. Joseph Bouvard (1840-1920) Em 1907, depois de uma profícua carreira na França, culminando com o cargo de chefe de Parques e Passeios de Paris, o arquiteto Bouvard vem para a Argentina para desenvolver um Plano para a cidade de Buenos Aires que é finalmente apresentado dois anos depois. El Nuevo Plano de la ciudad de Buenos Aires continha as premissas da época que atribuíam um valor de transformação desejável às cidades quando contemplavam a melhoria do sistema viário, das condições de higiene e da estética que deveriam ser encontrados nas grandes cidades do planeta. O Plano parte de dois eixos básicos: os espaços verdes (praças e parques) e o sistema viário. Os espaços livres fomentariam atividades esportivas e recreacionais, embutindo ideais higienistas (parques) e se constituiriam em espaços de referência, marco visual e descanso na malha urbana, no caso das praças. Considerava algumas das áreas livres já consolidadas, ignorando, contudo, outras extremamente relevantes na dinâmica da cidade. Sobre o traçado reticular da cidade, Bouvard propôs um sistema de vias diagonais, dentro do conceito haussmaniano de criação de eixos e perspectivas. Tal conceito já fora proposto por outros arquitetos e urbanistas argentinos e parcialmente implantados em Buenos Aires (por exemplo, o bairro de Vila Devoto, em 1888). A consagração deste modelo de desenho urbano se concretiza construção da cidade de La Plata, em 1882 Bouvard elaborou dois planos, sendo que no segundo atendia a uma área mais ampla, não se restringindo somente à região central da capital. Foram propostas dezenas de vias diagonais acompanhadas de um elenco de vias que seguiam uma hierarquia, que se iniciava com vias radiantes (ou concêntricas), vias oblíquas (ou diagonais) e vias de união, com diferentes funções de ligação entre espaços urbanos. É importante ressaltar que Bouvard encontrou forte resistência às suas teses por parte de profissionais locais como Benito Carrasco, então diretor de Passeios da capital, que foi o primeiro teórico argentino dos espaços verdes e o arquiteto de origem alemã Victor Jaeschké, curiosamente um entusiasta das vias diagonais que tanto destaque tinham no Plano de Bouvard. A polêmica foi de ordem técnica, expondo um possível desconhecimento do francês de importantes questões locais, sendo sua proposta considerada utópica e dispendiosa.

6 Bouvard elaborou ainda diversos projetos e planos na América Latina, destacando-se a urbanização da Quinta Hale, Projetos para as Praças do Congresso e de Mayo, a Exposição do Centenário e o Hospital Torcuato de Alvear (Buenos Aires), Plano urbano e de praças (Rosário), Concurso de Avenidas (Montevidéu) e o Plano para São Paulo, na realidade, um esboço de um programa de ação que contribuiu para a implantação de dois parques: Anhangabaú e Várzea do Carmo (Dom Pedro). Oscar Prager (1876-1960) Oscar Prager nasceu em Leipzig, em 1876. Sua infância transcorre entre a Alemanha e a Áustria, sendo sua formação profissional autodidata, complementada por viagens pela Europa, que permitiram a observação da arte, arquitetura e paisagismo in loco. Trabalhou com paisagismo na Inglaterra, familiarizando-se com o estilo de Gertrude Jeckyll e Edwin Lutyens. Em 1903 se estabeleceu na Califórnia, região fortemente influenciada pelas missões espanholas e pelos primeiros assentamentos de proprietários norte-americanos. A arquitetura e o jardim californiano se voltaram para suas origens hispânicas do início do século XIX, com o uso da flora nativa e de vegetação resistentes à seca, introduzidas pelos padres missionários. Este movimento (Mediterranean Revival Era) trabalhava com elementos do sul da Espanha, Pérsia e Renascimento Italiano, em uma mescla que passou a dominar grande parte das manifestações paisagísticas, valorizando o uso do espaço livre, o entendimento das condições climáticas, o uso da água e do pátio-jardim. É neste panorama artístico que Prager foi nomeado em 1907 consultor e diretor de parques da cidade de Oakland, onde desenhou Lake Park, às margens do lago Merrit e um sistema de parques para a cidade, além de muitos outros projetos. Entre 1910 e 1920 começam a surgir os primeiros jardins modernos na Europa, onde as pessoas se convertem em protagonistas da paisagem, abandonando seu papel de observadores passivos. Os estilos históricos cedem lugar à experimentação. Church, Olmsted e outros consolidam a profissão do arquiteto paisagista, liderando diversos profissionais que realizam projetos em diversas escalas por toda a América do Norte Durante a primeira guerra mundial, Prager retornou à Alemanha para lutar por seu país. Ao regressar aos EUA, foi deportado e embarcado de Nova Iorque para Buenos Aires, onde permaneceu por quatro anos, onde acredita-se tenha trabalhado com Charles Thays e Benito Carrasco. Projetou ainda o Parque Centenário em Tucuman e um Plano de Reflorestamento para Bariloche. Em 1925, foi contratado pelo intendente de Santiago do Chile para elaborar o Projeto do Jardim Zoológico no cerro San Cristóbal, cujo projeto de paisagismo havia sido inicialmente concebido por Thays. Segundo Viveiros (1997, p.19), a reinterpretação do jardim californiano frente a uma paisagem tão similar como é a do Chile central parece tê-lo levado à precisão do traçado de seus jardins; sem dúvida a leitura na liberdade no agrupamento das espécies vegetais recorda o desenho romântico de Olmsted ou aos princípios básicos de Shenstone, em uma paisagem com características tão similares às que havia no Chile. No Chile, onde viveu até sua morte em 1960, realizou tanto projetos de grande escala como pequenos jardins residenciais, sendo conhecido e apreciado por arquitetos locais.

7 Durante 30 anos projetou parques e jardins privados, praças e parques públicos e alguns planos regionais, demonstrando profundo conhecimento das paisagens chilenas, do deserto às paisagens úmidas e temperadas. Estudou o caráter da paisagem de cada lugar para verificar as suas possibilidades de associações vegetais, ressaltando valores e particularidades locais. Seus projetos se contrapõem aos até então dominantes conceitos das intervenções realizadas no país por paisagistas franceses. Prager alia uma rigorosa geometria a um plantio cuja volumetria apresenta intensa liberdade, juntamente com o modelado do terreno de forma irregular, mesclando princípios modernistas e formas mediterrâneas. Em 1930 realizou o Plano Regional para Osorno, rica província agrícola do sul chileno e posteriormente o Parque Providencia, em Santiago (1933), o Plano Comunal para San Miguel e Parque do Llano Subercaseaux (1936), Ladeira sul do cerro Santa Lucia, no centro de Santiago (1938); o Plano Regional Serena (1942-46) e o Parque Intercomunal Isabel Riquelme, além de inúmeros projetos residenciais e privados. Demonstrando preocupação com a infra-estrutura urbana, considerou o espaço público como elemento estrutural do espaço urbano. Sua postura projetual compreende o entendimento do lugar, com suas componentes bio-geográficas - a estrutura, que transcende o tempo presente e a vitalidade do espaço, com a interação entre o tecido urbano e o espaço livre. Considerações finais O presente estudo é uma primeira abordagem que procura conhecer o pensamento de alguns profissionais que atuaram em países sul-americanos (especificamente no cone sul ) com uma visão mais ampla da prática paisagística, além do projeto do jardim e mesmo da praça ou parque isolado desvinculados da formação da paisagem urbana. A idéia de sistema de espaços livres expressa na postura destes profissionais ( e aqui cabe acrescentar os franceses Eugène Courtois e J. C. Forestier) supera a atuação pontual sobre este ou aquele espaço livre, procurando, muitas vezes através de planos urbanísticos, promover o desenho da paisagem, através do estabelecimento de uma continuidade espacial, relacionando os espaços construídos e os espaços abertos. A necessidade imperiosa de introdução e ampliação de áreas vegetadas é reflexo de uma época que vê a necessidade de melhoria das condições ambientais face à urgência de controle da degradação das condições de habitabilidade urbana. É uma ótica higienista, onde o entendimento dos processos ambientais ainda não é objeto de preocupações mais rigorosas, sendo no entanto, valorizado significativamente o conhecimento botânico da flora do novo mundo, através de profundos estudos das espécies nativas. Em Buenos Aires e Santiago do Chile, a consolidação desta postura voltada para a constituição de sistemas de espaços livres urbanos talvez seja percebida com maior nitidez, devido à implementação efetiva dos planos e projetos propostos que levaram tanto os governantes como os seus habitantes a manterem a permanente demanda pela criação e conservação dos espaços livres, percebidos como entidades fundamentais da vida da cidade.

8 Bibliografia BERJMAN, Sonia. Plazas y parques de Buenos Aires: la obra de los paisajistas franceses. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica de Argentina, 1998 BEVERIDGE, Charles e ROCHELEAU. Frederick Law Olmsted: designing the American Landscape. New York: Rizzoli, 1995 GOODE, Patrick e LANCASTER, Michael (ed.). The Oxford Companion to Gardens. Oxford / New York: Oxford University Press, 1986 TISHLER, William (ed.). American landscape: designers and places. Washington, The Preservation Press, 1996 VIVEIROS, Marta, LANATA, Liliana, FUENTES, Isabel e VILCHES, Eduardo. Oscar Prager: el arte del paisaje. Santiago de Chile: Ediciones ARQ, 1997 Nota dos Editores Os artigos publicados em PAISAGENS EM DEBATE não refletem opinião ou concordância dos professores da FAU nem da equipe editorial da revista, sendo o conteúdo e a veracidade dos artigos de inteira e exclusiva responsabilidade de seus autores, inclusive quanto aos direitos autorais de terceiros. Os autores ao submeterem os artigos a PAISAGENS EM DEBATE consentem no direito de uso e publicação dos mesmos por meios eletrônicos e outros pela Área de Paisagem e Ambiente (eventualmente em parcerias com terceiros), com finalidades acadêmicas, de debate e divulgação de informação. Ou seja, os artigos publicados passam a fazer parte do acervo da Área.