Considerações sobre as psicoses ordinárias: categoria clínica ou epistêmica?

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Opção Lacaniana online nova série Ano 8 Número 24 novembro 2017 ISSN 2177-2673 1 Luiz Mena Parto de uma afirmação de Miller 2 com relação à psicose ordinária, na qual o sintagma psicose ordinária seria uma categoria epistêmica, e não clínica. Partindo daí, gostaria de elaborar algumas reflexões a respeito dessas duas dimensões: a psicose ordinária como categoria epistêmica e como categoria clínica. A psicose ordinária aparece na minha vida profissional através da prática clínica e não como resultado de uma elaboração teórica, como uma categoria epistêmica. Minha experiência com a psicose ordinária nasce em uma clínica específica, que eu pude experimentar quando trabalhei no Courtil, instituição belga, de orientação psicanalítica, para crianças e jovens psicóticos em 2002 e 2003. Antes do Courtil eu já havia trabalhado em duas instituições para psicóticos em São Paulo, a Alternativa e o Lugar de Vida. Em ambas eu trabalhei com a psicose extraordinária, com crianças, jovens e adultos muito desorganizados. Assim, logo que cheguei no Courtil, duas coisas me chamaram a atenção: a primeira era que não parecia que nenhum dos jovens e crianças no Courtil eram psicóticos! Pareciam neuróticos, pareciam se localizar no discurso, reconhecer a Lei do Outro, metaforizar, estudar, trabalhar, se divertir. Ou seja, eles não me pareciam loucos e não perdiam a referência à realidade compartilhada. É claro que 1

uns eram mais esquisitos que outros, mas nada parecido com o que eu já conhecia da loucura. Desde o primeiro dia eu questionei os intervenantes e diretores, dizendo: Eles parecem normais, onde está a psicose? Foi aí que eu ouvi falar de psicose ordinária, e a Conversação de Arcachon 3 era a bússola que iluminava essa outra forma de pensar e intervir clinicamente nas psicoses. Uma clínica inapreensível por uma classificação padrão, ela se constitui em uma radical experiência da solução singular, do caso a caso que requer uma escuta sensível e uma intervenção sutil, sob medida. A segunda coisa que aprendi desde o primeiro dia foi que qualquer acontecimento mais grave entre os jovens (como uma discussão mais séria entre eles, ou com um intervenante, ou como resultado de uma chamada telefônica aos pais que porventura tivesse angustiado demais), os pratos e canecas eram jogados e espatifados no chão. Depois de quebrar as louças, os jovens pegavam os pedaços de louça quebrada e começavam a machucar os braços. Com isso não chegavam a cortar os braços ou os pulsos, pois era louça, e não vidro, mas machucava bastante. Desse modo, eram frequentes as passagens ao ato como forma de tratar a angústia, muito mais que o franco delírio. Ou seja, eles pareciam perder o controle, mas não o senso de realidade. Passavam ao ato, se machucavam, ameaçavam machucar outro jovem ou um intervenante, saíam andando pela cidade sem direção, precisavam comprar coisas, etc. A saída era sempre pelo corpo, pela ação, uma ação que parecia errante, porque parecia sempre errar o alvo. Então, os elementos que me ajudaram a compreender o que era a psicose ordinária vieram da clínica: 1- A psicose ordinária é uma psicose que não parece psicose. Só quando nos aproximamos é que percebemos os pontos de flutuação na linguagem, no sentido, na relação com o corpo, na relação com o Outro, bem como 2

as soluções singulares que permitem ao sujeito circular pelo mundo. O que confunde é que, em uma época em que o Outro não existe, com a queda dos ideais e das soluções padronizadas, cada um acaba construindo a sua própria solução singular. Nesse contexto, a psicose ordinária se acomoda bem, porque ela passa despercebida com facilidade, confundindo-se com a paisagem 4 neurótica; 2- A psicose ordinária não costuma mostrar grandes desencadeamentos, nem grandes construções delirantes, apesar de haver muitos momentos de desestabilização e crise; 3- Uma aparência de normalidade, ou um delírio de normalidade, como mostrou Lacan 5 a propósito da personalidade como se de Helene Deutsch. Como explica Nieves Soria, há semblantes que podem fazer efeito de real para o sujeito 6 ; 4- A presença constante de passagens ao ato como forma de tratamento da angústia, e não o franco delírio; quase como se a metonímia do gozo fosse para o corpo e não para o pensamento; 5- Uma errância que desvela as soluções metonímicas do sujeito, que não chega a capitonar um sentido, mas possibilita uma circulação possível pelo mundo. Como categoria epistêmica, esse é um campo de investigação e discussão em que não há um consenso em relação a alguns pontos, e isso faz com que essa pesquisa esteja aberta e viva. Como diz Marie-Hélène Brousse, Nós não estamos de acordo com certo número de pontos concernentes à psicose ordinária. Tratase de um work in progress, não de um trabalho fechado sobre um conceito. Trabalhamos com ele 7. 3

Entre essas divergências, assinalo três: quanto ao desencadeamento, quanto à solução encontrada e quanto ao tipo de nó. Vou me deter aqui na primeira. Em relação ao desencadeamento, há aqueles que defendem que não há desencadeamento na psicose ordinária, mas um neo-desencadeamento, um desligamento, algo diferente de um desencadeamento. E há aqueles que defendem que é possível um desencadeamento na psicose ordinária, tratando a psicose ordinária como uma psicose não desencadeada no momento. Neste ponto específico nosso colega Paulo Dantas nos trouxe 8 uma contribuição preciosa, na qual ele defendeu que não podemos falar em desencadeamento na psicose ordinária. Ele não está sozinho nessa perspectiva. Nieves Soria, em recente conferência na Bahia 9, também defendeu que o desencadeamento propriamente dito ocorreria somente nas psicoses clássicas, pois seriam rígidas, e que na psicose ordinária o tipo de defesa seria mais flexível, e por isso poderia vir a se torcer sem se romper de maneira franca. Para as psicoses ordinárias ela prefere falar de desligamento. De maneira clara, ela diz: o campo das psicoses ordinárias é o campo das psicoses que não vão desencadear. Mas essa não é uma posição unânime. No ano passado 10, o psicanalista argentino Oscar Zack veio à Bahia e apresentou três conferências, uma delas intitulada Psicoses Ordinárias. A perspectiva dele é que é possível o desencadeamento na psicose ordinária, defendendo que Schreber pode ser considerado um psicótico ordinário antes do desencadeamento. Ou seja, para Zack uma psicose ordinária é uma psicose não desencadeada no momento. Para Marie-Hélène Brousse também pode haver desencadeamento na psicose ordinária. Diz ela: 4

A psicose ordinária é uma psicose desencadeada ou não? Penso que ela é. Entre nós, alguns pensam que ela não é. Minha posição é que, se quisermos fazer um uso operacional desse conceito, devemos cercá-lo em relação aos outros conceitos utilizados anteriormente para dar conta da psicose. Portanto, penso que se trata de uma psicose desencadeada. O problema agora é saber se esse desencadeamento tem uma especificidade 11. Na apresentação do tema do XI Congresso da AMP 2018, Anna Aromí e Xavier Esqué chegam a adotar uma posição que parece conciliatória, aludindo às duas possibilidades. Eles dizem: O que essas soluções singulares [nas psicoses ordinárias] têm em comum é a possibilidade de uma auto-reparação do buraco que impede ou adia sua irrupção manifesta 12. Ou seja, impede não vai desencadear nunca ou adia pode desencadear em algum momento. A questão sobre o desencadeamento não é simples. Fabian Schejtman o problematiza, não o limitando às psicoses, defendendo que existem seis tipos de encadeamentos para a neurose, acrescidos de três formas de desencadeamento e é essa a palavra que ele usa para a neurose. Ele diz: Trata-se então das seis cadeias borromeanas neuróticas básicas nas quais a inibição, o sintoma e a angústia tem função de encadeamento, quer dizer, tem função de sinthome. (...) E logo podemos agregar três modos de desencadeamento: a inibição, o sintoma e a angústia enquanto desencadeiam. (...) Não apresentarei agora exemplos destas nove possibilidades no nível dos encadeamentos e desencadeamentos neuróticos, pois o fiz em outras 13 ocasiões 14. (tradução nossa) O desencadeamento nas psicoses pode ser definido a partir de uma perspectiva puramente epistêmica. Nesse 5

sentido, podemos tomar dois caminhos distintos: tomar o desencadeamento a partir do encontro de um sujeito com o buraco foraclusivo de P0; ou a partir da topologia, com o desenganche de um dos elos do nó, com a falência do sinthoma que o segurava até então. São dois caminhos diferentes, como salienta Graciela Brodsky 15. Para que a elucubração epistêmica não se afaste demais da clínica, em uma discussão que pode acabar se restringindo a elos coloridos em um quadro, Brodsky alerta: Nossa preocupação não é epistêmica, mas prática 16. Ela diz: Não chamamos de psicose unicamente os fenômenos que se produzem na psicose, mas uma estrutura que está desde o início. (...) Nosso ponto de vista é que a psicose, com ou sem desencadeamento, está lá desde sempre. (...) O interesse para o clínico não é encontrar, depois do desencadeamento, o que havia antes, mas encontrar, antes do desencadeamento, indícios que permitam uma orientação no tratamento numa direção e não em outra. É antecipatório e não retroativo, pois o retroativo é muito interessante, porém tardio 17. De um ponto de vista clínico, um desencadeamento é o momento de desestabilização do sujeito, de crise, de perda da realidade, de perda de sentido. Quando falamos de desestabilização, isso pode ocorrer tanto na psicose extraordinária quanto na ordinária. Nesse sentido, pensar em termos de desestabilização talvez ajude a iluminar a questão sobre o desencadeamento, com um olhar que não se afaste demais da clínica, como alertou Brodsky. Dessa maneira, Oscar Zack ensina que haveria desestabilização quando houvesse uma disjunção entre sentido e gozo, ou seja, um desaparelhamento absoluto do gozo, sendo que uma suplência poderia levar a uma estabilização quando houvesse uma junção entre sentido e gozo. 6

Como uma categoria clínica, o campo das psicoses ordinárias apresenta alguns problemas. A categoria de psicose ordinária surge na esteira dos inclassificáveis da clínica, os casos que apresentam pontos de ruptura singulares, com soluções também singulares, e que se mostram pouco dóceis a serem colocados em uma caixinha. Enquanto eles permanecem inclassificáveis, eles sustentam o ineditismo necessário à clínica, uma escuta que privilegia o singular e que não tenta, de certo modo, homogeneizar o sujeito colocando-o sob uma classificação universalizante. Freud fazia esse alerta, Lacan também, sobre a importância de ouvirmos o paciente como se fosse o primeiro, o único, o incomparável. Enquanto ele permanece inclassificável, nos mantemos na vertente clínica do caso a caso e da singularidade. Quando os inclassificáveis tornam-se psicose ordinária, qualquer manifestação ou comportamento singular pode funcionar como um signo discreto de uma psicose ordinária. Ou seja, podemos acabar criando uma categoria que não serve para nada, pois pode conter todos os elementos que não se encaixam completamente nas outras categorias, um conjunto de Borges, que contém todos os elementos e suas respectivas singularidades. Por isso é importante a advertência de Nieves, que também aponta para a prática clínica como antídoto à sedução do puro gozo epistêmico: Que valor de real têm nossas classificações diagnósticas? 18 Miller nos ajuda a sair desse impasse ao propor dois tempos. Ele diz: Na clínica, há um momento nominalista, é este em que nós acolhemos o paciente em sua singularidade, sem o compararmos a ninguém, como inclassificável por excelência. Mas há um segundo momento, o momento estruturalista, onde nós nos referimos aos tipos de sintomas e à existência da estrutura 19. (tradução nossa) 7

Poderíamos dizer que quando acolhemos o paciente em sua singularidade, privilegiamos a vertente clínica e quando o referimos a uma categoria, estrutura ou diagnóstico, privilegiamos a vertente epistêmica. Ou seja, o sintagma psicose ordinária como categoria epistêmica, tal como Miller propõe, pode ser entendido como uma ferramenta que orienta o diagnóstico da psicose, quando esta apresenta rupturas e flutuações sutis. Serve para ler uma psicose quando os índices do buraco da foraclusão não são espetaculares, explosivos, extraordinários, quando são difíceis de serem reconhecidos pelo sujeito e seu entorno, como diz Anna Aromí e Xavier Esqué 20 ; quando eles são discretos, sutis, de modo que passam facilmente despercebidos para o próprio sujeito, para seu entorno e especialmente para o clínico. Nesse sentido, o sintagma psicose ordinária nos ajuda a reconhecer uma psicose vertente epistêmica para que possamos, a partir daí, tratá-la como tratamos toda psicose vertente clínica. Como salientam Anna Aromí e Xavier Esqué, uma psicose ordinária é uma psicose, e deve ser considerada clinicamente como tal, com o índice do buraco foraclusivo que caracteriza toda psicose 21. Por isso Miller insiste que a psicose ordinária é uma categoria epistêmica: porque na hora de tratar, tratamos como uma psicose, e não como uma psicose ordinária. 1 Trabalho apresentado no Núcleo de Psicose Instituto de Psicanálise da Bahia em 12/04/2017. 2 MILLER, J.-A. (2010[1994-95]) Efeito do retorno à psicose ordinária. In: Opção Lacaniana online nova série. Ano 1, número 3, novembro de 2010. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_3/efeito_do_retorno_ psicose_ordinaria.pdf 8

3 IRMA. (1997) La conversation d Arcachon. Paris: Agalma-Le Seuil. 4 Segundo a expressão de Rômulo Ferreira da Silva. In: EBP Debates. N 14, setembro de 2014. Disponível em: http://www.ebp.org.br/dr/ebp_deb/debates014.asp 5 LACAN, J. (1988[1955-56]) O Seminário 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p.220. 6 DAFUNCHIO, N. S. (2017) Seminário EBP-BA, 11/03/17. (Inédito) 7 BROUSSE, M.-H. (2009) A psicose ordinária à luz da teoria lacaniana do discurso. In: Latusa digital. Ano 6, n 38, setembro de 2009. Disponível em: http://www.latusa.com.br/pdf_latusa_digital_38_a1.pdf 8 DANTAS, P. (2017) Seminário de Formação Permanente EBP-BA, 22/03/17. (Inédito) 9 DAFUNCHIO, N. S. (2017) Seminário EBP-BA, 11/03/17. (Inédito) 10 Em 20/07/2016. 11 BROUSSE, M.-H. (2009) A psicose ordinária à luz da teoria lacaniana do discurso. In: Latusa digital. Op. cit. 12 AROMÍ, A.; ESQUÉ, X. (2017) As psicoses ordinárias e as outras, sob transferência. Apresentação do tema do XI Congresso da AMP 2018. Disponível em: https://congresoamp2018.com/ptpt/textos/las-psicosis-ordinarias-las-otras-transferencia/ 13 SCHEJTMAN, F. (2012) Encadeamentos e desencadeamentos neuróticos: inibição, sintoma e angústia. In: Elaboraciones lacanianas sobre la neurosis. Grama: Buenos Aires. 14 SCHEJTMAN, F. (2013) Contar hasta diez. In: DAFUNCHIO, N. S., (2013) Nudos del análisis. Del Bucle: Buenos Aires, p.166 e 167. 15 BRODSKY, G. (2011) Loucuras discretas: um seminário sobre as chamadas psicoses ordinárias. Belo Horizonte: Scriptum, p.13. 16 IDEM. Ibid., p.27. 17 IDEM. Ibid., p.33. 18 DAFUNCHIO, N. S. (2017) Seminário EBP-BA, 11/03/17. (Inédito) 19 IRMA. (1997) La conversation d Arcachon. Op. cit., p.268. 20 AROMÍ, A.; ESQUÉ, X. (2017) As psicoses ordinárias e as outras, sob transferência. Op. cit. 21 IDEM. Ibid. 9