PLATÃO, OS SOFISTAS E UMA NOVA VISÃO DO SER



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Transcrição:

PLATÃO, OS SOFISTAS E UMA NOVA VISÃO DO SER Por Leandro Laube * Para Platão e outros de seu tempo, os sofistas não passavam de charlatães mais preocupados em demonstrar suas desenvolturas argumentativas e, com isso, conquistar mais jovens seguidores, do que com a defesa de alguma verdade ou ciência. Platão, no Sofista 1, busca desmascarar esses mestres dos simulacros, esclarecendo sua verdadeira face; mas, embora ocorrendo em primeiro plano, esta não é a questão mais importante do diálogo: ao fundo, é lançada uma visão revolucionária, até então, do Ser. Historicamente, os sofistas surgiram no final da época pré-socrática e foram contemporâneos de Platão e Aristóteles. Ganharam força em Atenas, quando, sob o governo de Péricles (460 2 a 429 a.c.) e após a retirada do exército persa de Xerxes 3, essa polis passou por um período de grande progresso social, intelectual e artístico, o que provavelmente tenha levado o cidadão ateniense a preferir direcionar seu pensamento para formas mais concretas de raciocínio, relacionadas à vida prática (em especial à política), do que àquelas apresentadas pelas abstrações présocráticas acerca da essência do mundo. Platão (427 a 347 a.c.) possivelmente tenha sido um dos mais ferrenhos inimigos da sofística, refutando-a veementemente e apanhando seus artífices em "flagrante delito de indignidade, de malícia, e finalmente de ignorância" (TRUC, 19??. p. 49). O maior problema que se apresenta ao estudo dos sofistas é o fato de serem raros os registros; em sua maioria, não mais do que alguns fragmentos, em especial de Protágoras e Górgias. Além do quê, foram justamente seus adversários os que mais escreveram sobre eles, o que compromete qualquer análise que se venha a fazer. Para Platão, assim como para Aristóteles e outros tantos gregos ilustres, os sofistas são aqueles que detêm uma sabedoria apenas aparente, mestres da * Leandro Laube é graduado licenciado em Filosofia pela FACEL, especializando em História do Brasil pelo CPGEx-Universidade Bezerra de Menezes 1 PLATÃO. Sofista. Os Pensadores v. III; trad. Jorge Peleikat e João Cruz Costa. 1ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1972. pp 135-203 2 O ano de início do governo de Péricles não é um consenso entre os estudiosos. Referencialmente, adotou-se aqui a versão apresentada por Gaston Maire (MAIRE, 1991. pp. 113-114) 3 No contexto das Guerras Greco-Pérsicas, Atenas liderou a Confederação de Delos que, em 478 a.c., impôs derrota decisiva sobre a frota naval persa na batalha de Salamina. Sem o apoio de sua frota, o exército persa foi forçado a retirar-se do território grego.

2 retórica e de amplos conhecimentos, dominadores da erística 4 e dispostos a vender suas habilidades a quem lhes puder pagar. Provavelmente por isso mesmo tenham sido considerados representantes dos males democráticos dentre eles o pior de todos, a demagogia. Além do mais, Platão era favorável à aristocracia, mostrandose abertamente contrário a um sistema político baseado em opiniões gerais. Por outro lado, há pensadores que resgatam a imagem sofista, através de uma análise sob outro enfoque da proposta desse discurso. Tal resgate é mesmo possível, até porque muitos os consideram como os primeiros mestres da pedagogia democrática. Seja como for, não faz parte da proposta do presente artigo analisar ou avaliar a validade ou não do discurso sofista. Faz, sim, discorrer sobre as teses platônicas a respeito dessa técnica; notadamente a sexta, a última das definições apresentadas no Sofista. O Sofista datado de cerca de 367 a.c., na verdade, é uma continuidade do Teeteto, transcorrendo no seu dia seguinte e contando com os mesmos personagens, mais o Estrangeiro de Eléia. Ou seja, participam quatro indivíduos: Teodoro, Sócrates, Teeteto e o eleata. Teodoro inicia o diálogo dirigindose a Sócrates, mas é o estrangeiro quem expõe as seis definições do sofista apresentadas no texto, dialogando com Teeteto o mais jovem dos presentes, a partir de uma sugestão de Sócrates. Então, "fiéis ao compromisso de ontem" (216a), é Teodoro quem abre o diálogo e apresenta a Sócrates um estrangeiro vindo de Eléia, conhecido de Zenão e Parmênides. Esse estrangeiro não é identificado, o que causa uma certa estranheza ao leitor, uma vez que, certamente, deve haver um grande motivo para que ele guie o diálogo, papel normalmente reservado a Sócrates. Partindo do pressuposto de que o único ponto inquestionável para todos ali, até aquele momento, é o nome dado ao objeto do debate sofista (218b), o estrangeiro propõe que se proceda à sua definição, de modo que os presentes saibam inequivocamente sua natureza. Mas, essa definição não vem de pronto; o estrangeiro, antes, promove uma espécie de aquecimento intelectual, cujo modelo será empregado nas análises vindouras. Tendo como ponto de início a idéia acertada entre o eleata e Teeteto de que se trata de uma arte (219a), o estrangeiro vai subdividindo cada aspecto em outros 4 Arte de defender simultaneamente teses contraditórias.

3 dois, tomando aquele de interesse à apreciação e o subdividindo novamente; e assim, após uma análise dicotômica de cada possibilidade anterior, segue-se até chegar ao foco da questão: o pescador com anzol. (...) consideradas as artes no seu todo, uma metade inteira era a aquisição; na aquisição havia a arte de captura, e, nesta, a caça. Na caça, a caça aos seres vivos, e nesta a caça aos aquáticos. Da caça aos aquáticos, toda a última divisão constitui-se da pesca, e na pesca, há a pesca vulnerante e nela a pesca por fisga. Nesta última, a que golpeia para cima, por tração ascendente do anzol, recebeu o nome de sua própria maneira de proceder: chama-se aspaliêutica, ou pesca por anzol e esta era a própria forma que procurávamos. (221b-c) Com essas palavras, o Estrangeiro de Eléia conclui o processo de iniciação à discussão que se seguiria e ainda lança a base para sua exposição. O sofista, já de antemão, está demarcado como um pescador e a aclaração viria logo depois. Estando Teeteto e o Estrangeiro de Eléia em acordo no que se refere a não se tratarem, de forma alguma, os sofistas de meros leigos seria impossível a um ignorante pronunciar-se com a segurança e a propriedade características dos sofistas, durante a condução do diálogo, então, o eleata propõe as seis caracterizações desse técnico: Primeira Caçador interesseiro de jovens ricos (222a-223b): Voltando à linha dicotômica apresentada que levou ao pescador, o estrangeiro inicia a avaliação no ponto em que a caça divide-se entre os seres inanimados e os vivos e estes em aquáticos e terrestres. Pois bem, em um novo caminho nessa bifurcação, o Estrangeiro de Eléia agora segue pela trilha da caça aos animais terrestres, classificando-os em selvagens e domésticos, estes sendo capturados de forma violenta (aprisionamento, p.ex.) ou pela arte da persuasão. Pelo convencimento pode-se atingir uma coletividade ou um indivíduo e este pode ser conquistado por amor ou no intuito do lucro, com a finalidade da lisonja e satisfação de vaidades. Segunda Comerciante por atacado das ciências (223b-224d): O eleata admite a imprecisão da primeira definição, que não dá conta de toda a complexidade encerrada na sofística. Assim, voltando praticamente ao início do mapa, ao ponto em que a aquisição divide-se em troca ou captura, busca uma nova abordagem, subdividindo a troca em uma parte com a finalidade de presentear e outra visando dinheiro. Seguindo o raciocínio, sempre com duas possibilidades, o estrangeiro informa que uma parcela das trocas comerciais são feitas com o fruto do

4 próprio trabalho, enquanto outra é comercializada por terceiros, tanto dentro da cidade de origem (no varejo), quanto de uma cidade a outra (importação e exportação). Mas, também os importados podem ser ameados em destinados ao corpo (alimentos e ferramentas, p.ex.) e à alma (artes e entretenimento, p.ex.). Assim, as feituras relativas à alma são classificadas naquelas com a finalidade de divertir (arte da exibição) e nas ciências; e estas, por sua vez, dividem-se em vinculadas ao desenvolvimento de técnicas ou de virtudes. Ora, eis aí a segunda definição do sofista: aquele que troca o conhecimento por dinheiro, da mesma forma que um comerciante vende frutas ou legumes. 5 Terceira e quarta Pequeno comerciante de primeira ou de segunda-mão (224d-225a): Aqui, a terceira e quarta definições estão juntas, e comportam aqueles comerciantes que vendem o conhecimento de sua própria produção ou de terceiros no varejo. Quinta Erístico mercenário (225a-226a): Para chegar à erística, o eleata volta à captura, classifica suas partes em simples rivalidade ou em combate, este podendo ser por meio do uso da força física ou por intermédio da contestação. Por sua vez, a contestação apresenta-se como judiciária ou contraditória. A erística e a contestação casual, especializada em contratos, e sem arte para a qual nem Platão nem seus antecessores deram um termo, pois pareceu-lhes sem importância naquele momento são parte integrante da contestação contraditória e a erística subdivide-se em uma parte sem a pretensão do ganho financeiro, enquanto sua outra metade tem exatamente tal ganho como objetivo final. Mais uma vez chegase, então, ao sofista: Um erístico que vende seus préstimos em disputas privadas. Contudo, mesmo após essas cinco tentativas de encerramento do sofista, a presa parece escapar por entre as sombras. O Estrangeiro de Eléia dá o tom da dificuldade na definição do sofista, em virtude da multiplicidade da atuação deste. Então, propõe uma sexta delimitação, muito mais profunda, meticulosa e abrangente, que é o objeto de estudo do presente artigo: O refutador (226a). Platão emprega o método dialético, que consiste em uma argumentação dialogada, indo de dicotomia em dicotomia até a resposta final. Ele considera que, a partir da dialética, uma definição somente será verdadeira se permitir o seu reverso; ou seja: se todo A é B, então todo B é A. E é precisamente aí que reside a falha das 5 Platão seria tomado pela incredulidade, se pudesse supor, em sua época, o papel de mera mercadoria muitas vezes dado ao conhecimento em nosso tempo. Vinte e tantos séculos mais tarde, não há como negar que os saberes recebem o mesmo tratamento dedicado às frutas e legumes...

5 cinco primeiras definições do sofista. Muito embora no âmbito da presente dissertação não tenha sido dedicado maior espaço a essas definições, ainda assim é evidente que se mostraram ineficazes na resolução do sofista, porque não corresponderam ao pressuposto A é B e B é A. Se não, vejamos, primeiramente recapitulando as definições: caçador interesseiro de jovens ricos, comerciante por atacado das ciências, pequeno comerciante de primeira ou de segunda-mão terceira e quarta apresentadas juntas e erístico mercenário. Ora, em nenhuma delas é possível fazer-se o caminho de ida e volta mantendo-se a verdade. Ou seja: todo sofista é um caçador interesseiro de jovens ricos (p.ex.), mas nem todo caçador interesseiro de jovens ricos é um sofista. Então, como neste caso todo A é B, mas nem todo B é A, a delimitação não corresponde à verdade e, portanto, deve ser descartada por não se mostrar conclusiva. Da mesma forma, todas as demais definições apresentadas. Nesse caso, poder-se-ia afirmar precipitadamente que as cinco primeiras tentativas foram inúteis e que poderiam ter sido suprimidas. Contudo, o papel delas é bastante relevante, na medida em que preparam o terreno para o verdadeiro embate e vão eliminando as possibilidades mais superficiais, aquelas ao alcance de todo mortal, mesmo aos ditos ignorantes. A delimitação do sofista vai além da própria questão em si, como pode ser observado; motivo pelo qual mostrou-se importante, naquele primeiro momento, a inquietação das sucessivas frustrações, com o intuito de apurar o raciocínio e a perspicácia esta, por sinal, a principal ferramenta do sofista. Da quinta definição (erístico mercenário) sai a sexta: o refutador. A mais plausível das apresentadas até então, traz um problema delicado: a refutação, por seu caráter purificador, é demasiado elevada para ser conferida como arte dos sofistas. Note-se que, nessas seis definições, a dialética manteve-se no nível da realidade humana, o que se mostrou insuficiente. A partir da primeira recapitulação (231c ss), no entanto, como um mergulhão 6 que sobe ainda mais para melhor localizar sua presa, parte-se de mais alto, do nível metafísico, descendo novamente ao plano humano onde encontra-se o alvo. Nessa descendência dialética surge uma sétima definição, embutida na sexta, onde, enfim, encontra-se o sofista: o imitador do sábio e produtor de simulacros (268c-d). 6 Espécie de ave pescadora, que, do alto, sobre as águas, avista sua presa e lança-se, com as asas jogadas para trás, em um mergulho certeiro.

6 No entanto, para chegar-se a tal conclusão, foi necessária uma grande aventura pelo reino do ser e do não-ser coisa impensável a um de seus mais importantes idealizadores, Parmênides, a partir da necessidade de comprovação da existência do erro e da falsidade. Ora, embora Platão tenha sido muito fortemente influenciado pelas idéias parmenidianas, motivo pelo qual menciona, através de outro eleata o Estrangeiro, um ataque frontal àquele que seria como que seu pai, não há como desmascarar o sofista e seus arremedos sem a devida demonstração de que realmente existem tais simulacros não existindo simulacros, não há sofistas. Então, não há outro caminho que não avançar por sobre os avisos de não prossiga: para defender-nos, teremos de necessariamente discutir a tese de nosso pai Parmênides (...) (241d) ou (...) é chegada a hora de atacar a tese de nosso pai (...) (242a). Embora possa parecer, em um primeiro contato com o diálogo, deslocada a discussão em torno do ser e do não-ser, isso se mostra falso, na medida em que do ciclo sofista-imagem-ser-sofista nasce um novo debate que, segundo JEANNIÈRE, é fruto de uma renovação do pensamento de Platão, após sua segunda viagem a Siracusa 7, em 367a.C. (JEANNIÈRE, 1995, p. 95). Esta renovação mostra-se, além de na questão do ser, também em como Platão elabora seus diálogos, agora de forma hipocrática 8, que consiste precisamente no modo dicotômico de conduzir as análises. Provavelmente através de Filístion 9 Platão tenha tomado contato com tal método, passando a empregá-lo posteriormente. Ao que tudo indica, no Sofista há a primeira experiência de Platão na análise do próprio ser; ou seja, até então, Platão tinha falado daquilo que é, sem ter refletido no que é o ser (JEANNIÈRE, p. 97). Passa a haver, então, uma clara demarcação dos limites do termo ser, tanto no sentido de o existente quanto no de a própria existência. Note-se, também, que, ao que parece, além de elucidar a questão, definindo os sofistas como mentirosos e falsários, Platão ainda aproveita para lançar as pedras de pavimentação ao caminho do Filósofo, diálogo que viria a seguir, em especial quando menciona a divindade destes Quanto ao filósofo, é à forma do ser que se dirigem perpetuamente seus raciocínios, e é graças ao resplendor dessa 7 Platão retorna a Siracusa a pedido de Díon. A primeira viagem foi em 388-387 a.c, com uma terceira em 361 a.c. 8 De Hipócrates de Cós, filósofo grego que viveu entre 490 e 430 a.c e acreditava que a moderação era o segredo da boa saúde. É considerado o pai da medicina 9 Filósofo-Médico seguidor de Hipócrates

7 região que ele não é, também, de todo fácil de se ver. Pois os olhos da alma vulgar não suportam, com persistência, a contemplação das coisas divinas (254a), em contraposição à obscuridade daqueles Este se refugia na obscuridade do nãoser, aí se adapta à força de aí viver; e é à obscuridade do lugar que se deve o fato de ser difícil alcançá-lo plenamente, não é verdade? (254a). Então, o Sofista termina com uma série de conquistas muito significativas: a) O sofista foi encontrado e muito bem delimitado em sua obscuridade e na de seu reino, garantindo não só que possa ser identificado, como ainda separado do filósofo, com o qual freqüentemente é confundido; b) Foi iniciado o processo que indicaria uma justa-medida na nova polis, defendida através do diálogo seguinte, o Político ; c) Foi chamada a atenção e preparado o terreno para o Filósofo, que se seguiria ao Político ; d) Foi dado um novo sentido à palavra ser; e) Foi superada a idéia parmenidiana de que o ser é e o não-ser não é, o que garantiu o avanço e a solidez das idéias de Platão; f) Foram lançadas luzes sobre a alteridade, o outro de si mesmo, levando a discussão para além da identidade.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA BRUN, J. Os Pré-Socráticos. trad. Armindo Rodrigues. Rio de Janeiro: Edições 70, 1991. CHAUÍ, M. Introdução à História da Filosofia Vol. I. São Paulo: Brasiliense, 1994. JEANNIÈRE, A. Platão. trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. MAIRE, G. Platão. trad. Rui Pacheco. Rio de Janeiro: Edições 70, 1991. McNEILL, W. História Universal um estudo comparado das civilizações. trad. Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo/Universidade de São Paulo, 1972. PLATÃO, Alcibíades I e II. trad. F.L. Vieira de Almeida. Lisboa: Editorial Inquérito, 19??. Sofista. Coleção Os Pensadores. trad. Jorge Paleikat e João Cruz Costa. 1ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1972. pp 135-203. SOARES, A. J. Dialética, Educação e Política: uma releitura de Platão. São Paulo: Cortez, 1999. TRUC, G. História da Filosofia O drama do pensamento através dos séculos. trad.? Porto Alegre: Globo, 19??. Pré-Socráticos. Coleção Os Pensadores. sup. Prof. José Cavalcante de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 2000.