CINEMA, ESPORTE E CULTURA: UMA RELAÇÃO ENTRE TAPAS, BEIJOS E EFEITOS ESPECIAIS



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Transcrição:

CINEMA, ESPORTE E CULTURA: UMA RELAÇÃO ENTRE TAPAS, BEIJOS E EFEITOS ESPECIAIS ROBERTO MELCHIOR (FAAC/UNISANTA) RESUMO Busca-se, através do presente texto, analisar de que forma e a partir de que abordagens diferenciadoras entre si, o cinema mantém uma relação de interação com a prática esportiva. Fazendo uma pequena introdução aos anos iniciais do cinema, pretende-se estabelecer, a partir de que momento o esporte passou a ser enfocado pelo cinema como possibilidade de entretenimento, enquanto forma narrativa. A partir desta introdução histórica, efetua-se a análise sintetizada de alguns filmes que abordam o esporte sob as mais diversas conotações possíveis, conotações estas que abrangem a prática esportiva em sua forma lúdica ou estritamente competitiva. PALAVRAS-CHAVES: Lumière; cinema; prática esportiva; personagem; ídolo; vítória; revanche; competição; lúdico; filmes; imagem; movimento. Foi em 28 de dezembro de 1895, no inverno parisiense, que os irmãos Lumière fizeram a primeira exibição pública do cinematógrafo. Surgia, então, o cinema, o instrumento de comunicação mais importante de nossa sociedade pós-moderna, segundo alguns estudiosos, dentre os quais poderíamos citar Paul Virílio, Edgar Morin e McLuhan. Acostumados a assistir a projeções de fotos, os parisienses ficaram surpresos ao constatar que aquelas imagens tinham movimento, o que era algo desconhecido até então. O início do cinema foi caracterizado pela profusão de filmes curtos de até dois minutos. Estes filmes eram realizados através da utilização de uma câmera fixa que registrava as imagens em plano geral. Eram as chamadas vistas, algo bastante similar (excetuando-se os recursos técnicos) aos documentários a que assistimos hoje e que tiveram como precursor um cineasta russo chamado Dziga Vertov, idealizador do Cinema Olho ou Cine Verdade, ou ainda Cine Pravda em referência ao jornal russo que foi um mecanismo de difusão dos ideais de liberdade pregados pela Revolução Bolchevique. Segundo Vertov, o cinema deveria ser apenas e tão somente a expressão da realidade, sem que houvesse qualquer vínculo com a exaltação da fantasia enquanto possibilidade de sedução. Mas, no que

se refere ao material produzido na Paris do século passado, um filme chamou a atenção dos espectadores em geral, causando frisson e medo. Estávamos no ano de 1896 e o filme A chegada do trem na estação ( L arrivée dún train à station), uma tomada em plano geral da Gare de Lyon em Paris, onde via-se um trem aproximando-se, aproximando-se, até preencher por completo a tela. Várias reações foram presenciadas durante a exibição do referido filme. Freqüentemente, as pessoas saíam correndo, histéricas, acreditando piamente que seriam pegas pelo trem. É razoável lembrar que estávamos numa época em que os indivíduos desconheciam o processo de representação imagética apresentado pelo cinema. Foi a partir daí, porém, que os cinegrafistas perceberam que o cinema poderia efetivamente despertar anseios, desejos e as mais inusitadas reações por parte do público espectador. Começava, então, a magia do cinema, algo que iria fazer com que a sétima arte alcançasse um desenvolvimento jamais previsto por nenhum de seus idealizadores. Deu-se que em algum momento deste desenvolvimento inicial, os cinegrafistas começaram a registrar imagens de eventos esportivos, lutas de boxe, corridas de carro, competições de atletismo, beisebol e diversas outras modalidades. Surgia aí uma relação duradoura entre o esporte e o cinema, que iria arrancar lágrimas e manifestações de amor, ódio, esperança e dor de um público que aprenderia a buscar na tela a representação imagética de seus sonhos mais recônditos. Logo, o cinema começou a contar histórias e estas histórias tinham uma relação direta com as obras advindas do universo da literatura, bem como das páginas policiais dos jornais da época. Estávamos, então, no ano de 1915, quando os filmes começaram a ter uma maior duração e a consistência da transmissão de uma mensagem de cunho idealista passou a fazer parte integrante do discurso cinematográfico, inicialmente a partir das obras de D. W Griffithi, diretor de dois dos grandes clássicos da história do cinema mundial: Intolerância e Nascimento de uma Nação. McLuhan (1987) frisa: Quando veio o cinema, todo o padrão da vida americana foi para as telas como um anúncio ininterrupto. O que um ator ou atriz usava ou comia era um anúncio como nunca se sonhara antes. O banheiro, a cozinha, o carro e tudo o mais recebeu o tratamento das mil e uma noites. Em conseqüência, todos os anúncios publicados em jornais ou revistas tinham de parecer cenas extraídas de um filme. E ainda parecem, só que o enfoque se abrandou com o advento da TV.

A transposição da prática esportiva para as telas de cinema, nada mais era do que a representação possível dos sonhos do espectador comum em ser ele próprio um ídolo, um vencedor. Esse sentido de identificação e essa projeção indisfarçada fizeram com que cada vez mais se produzissem filmes com temática esportiva. Estávamos nos tempos do cinema mudo, e nomes como Harold Lloyd, Buster Keaton, Mary Pickford, Douglas Fairbanks, Rodolfo Valentino e Charles Chaplin levavam centenas de milhares de pessoas ao cinema. A abordagem histriônica das comédias do cinema mudo reproduzia, de forma continuada, o arquétipo de David e Golias, onde um adversário aparentemente invencível era subjugado pelas estrepolias, trapalhadas e jogo sujo de um suposto David. Em Marujo não leva desaforo ( Any old port), filme estrelado pela dupla Stan Laurel e Oliver Hardy, o gordo inscreve o magro em torneio de boxe, visando ganhar uma polpuda soma em dinheiro. Semelhante história já nos havia sido contada por Charlie Chaplin num dos curtas metragens inseridos em Carlitos, o inesquecível. O mesmo Chaplin, no filme Em busca do Ouro, ao tentar defender a honra de uma encantadora, sedutora e ardente mulher de saloon, nos tempos da Gold Rush no gélido Alasca, enfrenta um brutamontes aparentemente invencível e nocauteia-o de forma involuntária, auxiliado por um enorme relógio que despenca da parede e atinge a cabeça de seu adversário. Na medida em que se descobriu que o público tinha interesse pelo caráter competitivo, começaram a se criar personagens que, de uma forma ou de outra, apresentavam algum envolvimento com o esporte. Como vários dos grandes atores dos estúdios cinematográficos vinham de uma longa tradição circense, caso específico de Harold Lloyd, Buster Keaton e Douglas Fairbanks Jr., entre outros, não era difícil esta adequação àquilo que esperava-se de um personagem afeito à prática esportiva. Com o advento do cinema sonoro, a partir de 1928, com o filme O cantor de jazz, e o surgimento da função do roteirista, o cinema passou a abandonar um pouco o gênero comédia e começou a trilhar pelos caminhos do drama e dos musicais açucarados. As perseguições num típico estilo non-sense cediam lugar ao preciosismo e ao sincronismo de coreografias idealizadas por nomes como Gene Kelly, Fred Astaire e Donald O C onnor entre outros. Mas, a relação estabelecida com o esporte ganhou um novo impulso com o advento do som, apresentando-nos um universo de variações possíveis no que diz respeito à abordagem.

Se na primeira versão de O campeão (The champ, 1948), estrelado por Paul Muni, a reconquista da glória leva à morte o personagem de Muni, ex campeão mundial de boxe na categoria dos peso pesados, vemos em A última chance (The best of times, EUA 1986), estrelado por Kurt Russel e Robin Williams, o cotidiano de ex jogadores de beisebol, que 13 anos após a perda de um jogo decisivo têm a chance de uma revanche. O roteiro deste segundo filme, nos leva a acreditar que a vida sórdida e infeliz destes homens, bem como a estagnada economia e a degeneração da pequena cidade em que vivem, estão de alguma forma ligados àquele fato. A possibilidade de reverter aquele quadro, acontece quando, visando comemorar a conquista do título, o time adversário convida-os para um jogo exibição. Se, para os adversários, o evento adquire o caráter de uma grande comemoração, plastificandose assim de um aspecto predominantemente lúdico, para o time de Kurt Russel, o jogo reveste-se de um ideário de vida ou de morte, algo que poderá resgatar suas almas perdidas, após aquele nefasto resultado de um passado distante. Se em O campeão, o personagem principal busca resgatar o que já teve, em A última chance, os personagens principais buscam desesperadamente obter o que jamais tiveram. A nós resta perguntar onde residem as maiores frustrações. Mas o cinema criou outras possibilidades de intervenção no que se refere à prática esportiva, mesmo por que havia muito a ser dito. No filme Lucas- A Inocência do primeiro amor ( Lucas, EUA 1986), vemos Corey Haim interpretando um jovem garoto pobre de uma escola americana de classe média. Lucas tem uma relação de dedicação e paixão pelos livros e animais em geral, num certo sentido por sentir-se excluído do convívio dos demais em decorrência de sua estética corporal que não corresponde ao modelo de beleza dominante, bem como pela precária situação financeira de sua família. Entre um dos versos de Shakespeare e a denominação científica de algum celenterado, apaixona-se perdida e alucinadamente por uma estudante mais velha que namora o personagem interpretado por Charlie Sheen, ídolo do time de futebol do colégio. Fugindo ao estereótipo convencional dos embrutecidos jogadores, Cappie ( Charlie Sheen) é sensível, inteligente e gosta verdadeiramente da garota. Em seu universo imaginário (compartilhado por muitos como nós), Lucas acredita que sendo ele também um integrante da equipe de futebol conseguirá conquistas a garota dos seus sonhos.

Neste sentido, o esporte aqui é enfocado enquanto instrumento de aceitação, na medida em que possibilita a transição de uma suposta posição social indesejada para o caminho do reconhecimento e da glória. O que há de interessante é que o caminho da glória, trilhado por vários outros filmes, é negado ao personagem principal no momento de maior tensão do filme, durante uma partida de beisebol em que Lucas se fez aceito pelo técnico ao citar o regulamento da escola. Numa posição privilegiada no campo, Lucas é lançado para o desespero dos adversários e ansiedade de todos os demais no estádio. A bola tece uma trajetória circular em direção ao garoto, o diretor alterna takes de close na bola, close no garoto e um plano geral em slow-motion nos demais jogadores e na platéia boquiaberta. A bola vem descendo, descendo, descendo indefinidamente como se tivéssemos todo o tempo do mundo a nosso dispor. Ao contrário do que poderíamos esperar, Lucas não consegue dominar a bola, ela escorre pelos seus dedos e vai ao chão, aniquilando por completo qualquer possibilidade de glória. O que nos apraz na análise deste filme é que, ainda que Lucas efetivamente permaneça desempenhando seu papel social que em nada se assemelha ao de um herói esportivo, e ainda que não conquiste o coração da mulher amada, a cena final mostra-nos o reconhecimento de seus amigos, gritando seu nome e enaltecendo-o por haver tentado. Indiretamente, reproduz-se aqui a máxima de Coubertain: O importante é competir. Na narrativa cinematográfica, tem sido comum verificar a necessidade da prática esportiva enquanto instrumento de afirmação. Assim como em Lucas- A inocência do primeiro amor, um dos personagens do filme Leolo-Porque eu sonho (Léolo, Canadá/FRA 1992), após sofrer uma injusta agressão física nos tempos de criança, busca através da musculação, proteger-se de toda e qualquer espécie de opressão futura. Optando por um recurso estilístico inusitado, o diretor utiliza-se de um outro ator com as características físicas de um praticante de fisiculturismo. A contínua prática esportiva do personagem, bem como sua efetiva dieta alimentar, contribuem para uma total alteração em sua composição corporal, fazendo por hipertrofiar todos os músculos do corpo de forma descomunal, o que nos leva a crer que a hora da vingança se daria em algum momento do filme. Contudo, quando o embate se verifica, o personagem é surrado novamente, como se a efetiva transformação estética proporcionada através do acúmulo exagerado de músculos não exercesse influência alguma sobre seu comportamento defensivo.

Aqui se faz pertinente a discussão acerca do fisiculturismo, enquanto potencializadora de uma conotação puramente estética, sem relação efetiva com a ação, ou mais que isto, sem ligação com o sentido da motricidade humana que não estivesse única e exclusivamente ligado ao movimento repetitivo do levantamento de pesos. Por outro lado, fica claro que o interesse do referido personagem pelo exercício com pesos não assume qualquer conotação relacionada à saúde, mas se refere ao instinto de preservação que se verifica em cada ser vivente e que é evidenciado no filme, a partir da discussão que se estabelece entre os dois catadores de jornal, que desempenham o mesmo papel social. A apreciação estética de sua musculatura, portanto, é uma resultante e não o fator primeiro que o conduz aos exercícios. A partir deste princípio estabelecido, verificamos a existência do hedonismo na musculação, na medida em que este transfere-se da prática esportiva para o campo da análise estética, quando o prazer instala-se com o olhar sobre si mesmo. Essa análise não se verifica no que diz respeito a outras práticas esportivas ( quando o resultado estético não é o objetivo principal), na medida em que este hedonismo ( ou suas possíveis variáveis) se dá na própria execução da atividade. Mais uma vez, um filme nos remete invariavelmente ao mito de David e Golias; aqui, entretanto, Golias é derrotado duas vezes, ante nossa surpresa e indisfarçável frustração. O vencedor não é coroado rei como na passagem bíblica, sua realeza restringe-se ao espaço físico de um gueto miserável, por outro lado o derrotado não tem o mesmo destino da conhecida história, mas é reconfortado por Leollo seu irmão mais novo e seu ode contínuo que permeia toda a narrativa fílmica: - Por que eu não sou, eu sonho. Na narrativa cinematográfica é bastante usual a utilização do esporte como possibilidade mediática e intervencional que possibilite a transposição de uma situação negativa para a redenção. Na tabela que segue abaixo, pode-se verificar alguns filmes que optam por esta solução narrativa. Título Diretor Síntese John Huston Durante a Segunda Guerra Mundial, prisioneiros Fuga para a de um campo de concentração nazista preparam-se

vitória (Victory EUA 1981) Guerra dos botões (War of the buttons, FRA/ING 1994) Pulp Fiction (Idem, EUA 1994) Uma equipe muito especial (A league of their own, EUA 1992) John Roberts Quentin Tarantino Penny Marshall para enfrentar um selecionado alemão de futebol. Durante os treinos, planejam fugir após o primeiro tempo do jogo. Contudo, após estarem inferiorizados no marcador, resolvem voltar para o segundo tempo e reverter o placar. Alunos de escolas rivais enfrentam-se, utilizando técnicas e táticas de guerrilha, além do código de honra do exército francês. Uma crítica contumaz à influência que os padrões adultos exercem sobre as crianças. Bruce Willis é um boxeador decadente que, mesmo após aceitar dinheiro para perder uma luta, revolta-se com esta condição, vence o combate e ganha um vultosa soma em dinheiro na bolsa de apostas. O filme aborda a decadência da vida útil do atleta, bem como sua dificuldade em adaptar-se à vida em sociedade. Enfatiza também os bastidores do mundo do boxe. Ainda que não seja um filme efetivamente sobre o esporte, contribui de forma enriquecedora para a análise do tema. Durante a Segunda Guerra Mundial, vários dos grandes jogadores de beisebol americano estão na frente de batalha. A Liga de Beisebol Americano convoca as mulheres e dá início à Liga Feminina de Beisebol. A prática esportiva é vista aqui sob a ótica feminina, mais que isto, enfoca a discriminação que a sociedade exercia sobre as mulheres que na década de 40 praticavam esportes. A abordagem enfoca, também, a diferenciação de conceitos entre as atletas, enfatizando temas como a importância dada pela mídia à estética corporal. Geena Davis numa

interpretação magistral nos proporciona todo o ar de sua graça ao pegar uma bola lançada por um rebatedor, caindo num autêntico movimento de balé. O movimento aparentemente insignificante é utilizado pela mídia de forma contínua, visando divulgar os jogos da Liga. Tom Hanks irreconhecível, interpreta um ex-jogador de beisebol que após sofrer um acidente fica inutilizado para o esporte e passa a representar o estereótipo de um homem e sua revolta contra o mundo. Campo dos sonhos (Field of Dreams, EUA 1989) Phil Robinson Alden - Construa que ele virá. Em meio a uma plantação de milho no distante Iowa, Ray Kinsela ( Kevin Costner) ouve esta inusitada frase e constrói um campo de beisebol. Dentre várias de suas questões interiores não resolvidas, Ray fria ao personagem de James Earl Jones: - Eu nunca quis jogar beisebol com meu pai. Ele amava Joe sem sapatos (Ray Liotta) e eu disse que o herói dele não passava de um bandido. Eu não tive tempo de desculpar-me. Joe havia sido sacado dos jogos por um suposto envolvimento no favorecimento de um resultado. A construção do campo de beisebol é a Segunda chance para que ele possa diluir suas culpas. A cena final do filme Quando vemos Ray Kinsela jogando beisebol com seu pai, morto muitos anos antes, é um belo momento e reflete nada mais nada menos do que nosso desejo de voltar no

tempo, sanar nossos erros, dirimir nossas culpas e reconquistar nossa inocência perdida. O cinema parece nos querer dizer que através do esporte isto é possível. Vários outros filmes poderiam ser citados aqui. Alguns deles fazem uma abordagem mais diretamente ligada à representação do real, na medida em que seus personagens são vistos como cidadãos normais que, imbuídos de um ideal qualquer, resolvem superar as adversidades e atingir seus objetivos. Esse caráter instrumental da prática esportiva parece ser o tema mais recorrente da relação cinema X esporte. No que diz respeito ao aspecto lúdico da prática esportiva enquanto fenômeno de interação social, vale lembrar o filme Meu pé esquerdo ( My left foot, Irlanda 1989) em que Daniel Day Lewis interpreta um personagem, que segundo os médicos, supostamente sofria de paralisia cerebral. Eles estavam errados e o personagem consegue provar ao mundo em geral, que apesar da patologia era dotado de inteligência e talento. Num dado momento do filme, ainda adolescente, Daniel está caído, aparentemente participando de um jogo de futebol com os amigos. Um penalty é assinalado e seus amigos conduzem-no ao local da infração. O silêncio domina a tela e os olhares de ansiedade acumulam-se diante do que está por vir. Ele só tem mobilidade na perna esquerda e ainda assim de forma débil; em slow motion, Daniel movimenta a perna, chuta a bola e o goleiro tenta em vão retê-la entre os dedos. Este tipo de abordagem acerca de portadores de necessidades especiais já nos havia sido mostrada em Um estranho no ninho ( One flew over the cuckoo s nest, EUA 1975) de Milos Forman, onde se vê um jogo de basquete entre funcionários da segurança e os internos do hospital, visando estreitar as relações entre os mesmos. Jack Nicholson orienta o time dos internos que têm em seu plantel um gigantesco índio que, pouco a pouco, começa a entender as normas do basquete e desequilibra a partida. A alegria pela prática esportiva, o regozijo pelos pontos conquistados e uma necessidade pulsante de comemorar cada uma destas conquistas são um incondicional reflexo do significado de importância que tem o esporte como resgate de uma consciência participativa. Anos depois, veríamos Tom Hanks em Forrest Gump ( Idem, EUA 1994), interpretando um personagem que ao receber seu diploma após a conclusão da High School americana nos diz:

- Eu não entendi por que após ficar correndo durante cinco anos, eles ainda me deram um diploma. A crítica ao sistema de ensino norte americano que privilegia estudantes atletas, fica aqui diluída na medida em que estamos diante de uma comédia. Forrest ainda ingressaria na equipe de tênis de mesa dos Estados Unidos e, após a morte de sua mãe, correria durante três anos, quatro meses, vinte e seis dias e seis horas, seguido por um incrível séquito de admiradores que no filme reproduzem a idolatria legada aos grandes atletas e personalidades em geral. Após correr durante todo este tempo, Forrest Gump olha para trás e um dos seguidores diz: - Parem, parem o mestre vai falar. A expectativa e a ansiedade de seus seguidores domina a tela, e nós, meros mortais, ficamos em silêncio, querendo captar cada palavra a ser dita. - Estou cansado, quero voltar para casa. - diz-nos Forrest. - E nós mestre, o que iremos fazer? perguntam os seguidores. - Voltem para casa também. - diz Forrest Gump, sem aceitar a suposta idolatria que lhe era conferida pelos admiradores. Forrest enquanto ídolo, encarna a representação imaginária de nossos desejos mais profundos. De forma genérica podemos dizer que o ídolo representa tudo aquilo que sonhamos ser ou fazer um dia. Espera-se do ídolo a representação cabal do homem perfeito ou do super-homem a que Nietzche se referia. Há muitas outras considerações que poderiam ser abordadas naquilo que se refere à relação cinema, esporte e cultura, mas assim como Forrest Gump, vou ficando por aqui, estou cansado, também quero voltar para casa.

Talvez volte correndo, não sei. Bibliografia Bordieu, P. As regras da arte. São Paulo: Cia das Letras, 1996. Campbell, J. & Moyers, B. O poder do mito. São Paulo: Ed. Palas Atenas, 1988. Lovisolo, H. A arte da mediação. Rio de Janeiro: Sprint, 1994. McLuhan, M. Os meios de comunicação como extensões do homem. Rio de Janeiro: Cultrix, 1987. Melchior, R. A fotografia e a instrumentalização da estética do corpo. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, 1997. Virílio, P. A máquina de visão. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.