As Descrições Definidas como Sintagmas de Medição Extensiva Definite Descriptions as Extensive Measure Phrases

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Transcrição:

As Descrições Definidas como Sintagmas de Medição Extensiva Definite Descriptions as Extensive Measure Phrases Ana Paula QUADROS GOMES 1 1 Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e Universidade de São Paulo (USP) anapaulaqg@globo.com; anpola@gmail.com Abstract. Todo may take a bare noun or a Definite Description (DD) in its restriction. On the standard view, singular count nouns denote single atoms. There should be no distribution over a sole atom. Nevertheless, todo distributes over singular DDs with count nouns. We analyze DDs as Krifka s (1998) Extensive Measure Phrases (EMP). They are complex nominal phrases with a functor (a quantized denotation) and an extension (a cumulative denotation). A singular DD with a count noun, not modified, is an atom. But in the restriction of todo, it becomes an EMP. The count noun is the functor, operating over an extension todo distributes over. The singular count noun denotes a sole atom, which enables it to play the functor role. Keywords. Nominal denotations; definite descriptions; distribution; Extensive Measure Phrases. Resumo. Todo distribui sobre nomes nus, descrições definidas (DDs) singulares e DDs plurais. É consenso na literatura que nomes contáveis singulares denotam um único átomo. Não deveria ser possível distribuir sobre esse tipo de denotação, como todo faz. Analisamos as DDs como sintagmas de medição extensiva (SMEs) (cf. Krifka 1998), compostas de duas partes: um functor (a denotação atômica) e uma extensão (a denotação cumulativa). Uma DD singular com nome contável, por si mesma, denota um único átomo. Porém, na restrição de todo, ela se torna um SME, em que o nome contável, o functor, opera sobre a extensão. Assim, todo distribui sobre a extensão, e o nome contável singular, a denotação atômica, é o functor. Palavras-chave. Todo ; teoria da denotação; sintagmas de medição extensiva; descrições definidas. 1. Todo desafia a teoria clássica da denotação Todo toma todo tipo de sintagma nominal em sua restrição. A distributividade desse quantificador independe do tipo de expressão nominal. Na restrição de todo, entram nomes nus (1a), descrições definidas (DD) singulares (1b) ou plurais (1c): 1. (a) Todo brasileiro pára para ver a copa do mundo. (b) Todo o País pára para ver a copa do mundo. (c) Todos os brasileiros param para ver a copa do mundo. Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 197 / 205

Para uma sentença com todo ser aceitável, o predicado no seu escopo nuclear tem de poder ser verdadeiro de cada parte da denotação do material nominal em sua restrição. A representação das sentenças em (1), em estrutura de quantificação, é a seguinte: 2. OPERADOR [RESTRIÇÃO] [ESCOPO NUCLEAR] (a) Todo [brasileiro] [pára-para-ver-a-copa-do-mundo.] (b) Todo [o País] [pára-para-ver-a-copa-do-mundo.] (c) Todos [os brasileiros] [param-para-ver-a-copa-do-mundo.] Todo é o operador ou quantificador. Na restrição, entra um sintagma nominal. No escopo nuclear, um predicado. A operação realizada por todo é a distribuição do predicado sobre as partes do sintagma nominal. Apesar de variarem quanto ao tipo de material nominal presente na restrição, as sentenças em (1) aludem à paixão brasileira por futebol e são igualmente distributivas. A sentença (1a) afirma que, se alguém é brasileiro, então esse alguém pára o que estiver fazendo para ver a copa do mundo. Em (1b), está dito que, se alguém é parte (habitante) do coletivo Brasil, então esse alguém deixa o que estiver fazendo para assistir à copa. E (1c) diz que, se alguém é membro do conjunto de brasileiros, então esse alguém larga tudo para ver o campeonato mundial. Uma distribuição como a observada em (1a) é um fato esperado, pois a denotação de nomes nus é cumulativa. Nomes comuns, não determinados, podem ser usados para designar qualquer quantidade de indivíduos da categoria nomeada. A distribuição observada em (1c) também é trivial, pois pluralidades atômicas são consideradas denotações cumulativas (cf. Link 1998). Tanto podemos usar a descrição definida plural os brasileiros para designar um grupo de dois indivíduos nascidos no Brasil quanto para designar os 186 milhões que totalizam a população do País. O dado surpreendente é a sentença (1b). Um nome contável singular, segundo a teoria canônica da denotação, equivale a um único átomo. Sabemos que brasile iro e os brasileiros são pluralidades com diversos indivíduos no interior de sua denotação, mas o brasileiro significa uma única pessoa dessa nacionalidade, e um indivíduo não pode ser repartido. Da mesma forma, o País denota um único indivíduo, o B rasil, e não pode significar dois ou mais países. Entretanto, em (1b), a DD singular o País é compreendida como uma coletividade de indivíduos. Esse não é a denotação atômica prevista para DDs singulares com nomes contáveis. Nesse sentido, a interpretação distributiva das sentenças com todo desafia a teoria clássica da denotação. As DDs em (1) não denotam espécies, mas entidades. São DDs de denotação quantificada. A denotação de uma DD singular, como o País, é classicamente analisada como um único átomo. Como distribuir sobre as partes da denotação de uma DD singular? Como pode haver partes numa denotação atômica? Nosso objetivo, neste artigo, é o de conciliar a distribuição verificada em (1b) com as noções clássicas sobre a denotação de DDs. Nossa proposta sustenta a análise tradicional de uma DD singular, mas defende que As DDs na restrição de todo apresentam mais estrutura. Mostraremos que elas são sintagmas de medida (Extensive Measure Phrases, cf Krifka, 1998). Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 198 / 205

2. Que descrições definidas são sintagmas de medição extensiva É consenso na literatura que denotações cumulativas não podem ser contadas diretamente. Por exemplo, nomes de massa, como areia, não podem ser diretamente modificados por algarismos: 3. (a)*duas areias (b) 2 litros de areia/ 4 baldes/ 1 tanque de areia Substâncias como areia são contadas por unidades de medida ( litro ) ou por recipientes ( balde, tanque ). Sintagmas nominais quantificados como 2 litros de areia são formados a partir de operações de functores ( litro, balde ) sobre predicados cumulativos ( areia ). Dois litros de areia é uma expressão nominal complexa, formada por um functor (a unidade de medida litro ) e por uma denotação cumulativa ( areia ), sobre a qual esse functor opera. Os functores têm denota ção atômica, mas só operam sobre predicados que até então ainda não tenham sido medidos ou quantificados (Krifka 1998, p. 5). Os exemplos abaixo ilustram esse fato: 4. (a) [os] 2 quilos de maçã(s) (b) [os] 100 gramas/ metros de lã (c) *[os] 100 gramas de 500 metros de lã À direita da preposição de, temos denotações cumulativas em (4a/b): tanto os nomes nus sem número lã e maçã como o nome nu plural maçãs não são denotações quantificadas. Em (4c), entretanto, o functor grama teria de operar sob re uma denotação já quantificada: 500 metros de lã. A inaceitabilidade de (4c) mostra que, para obter um sintagma de medição extensiva (SME) bem-formado, é necessário ter uma denotação atômica como functor e uma denotação cumulativa como extensão. Não é obrigatório que as duas partes do complexo sejam realizadas como constituintes sentenciais. Todas as descrições definidas singulares com nomes de massa são SMEs com um componente coberto. Basta ver a interpretação associada a DDs como a que está em (5): 5. Maria bebeu a água. Entendemos que Maria esgotou, bebendo, um tanto de água. Uma garrafa? Um copo? O nome de massa água, em (5), nomeia a extensão. O contexto vai dizer o que considerar como functor ou unidade de medida. Uma DD plural também é um sintagma de medição extensiva. A interpretação associada a DDs como a que está em (6) sustenta essa afirmação: 6. João comeu as batatas. Entendemos que João esgotou, comendo, uma certa quantidade de batatas. A guarnição de um prato? Aquelas que estavam na geladeira? A quantidade de batatas consumida por João é definida no contexto em que a sentença é usada. A pluralidade atômica batatas tem denotação cumulativa, bem como o nome de massa água. Expressões cumulativas correspondem à extensão no SME. O contexto dá o functor. Mas DDs singulares com nomes contáveis são denotações quantificadas. Elas não poderiam servir de extensão a um functor fornecido pelo contexto. Espera-se, então, que elas não formem SME. Vamos ver como são interpretadas DDs singulares com nomes contáveis: Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 199 / 205

7. Maria lavou o garfo. A quantidade de indivíduos ou porções do tipo garfo que Maria lavou é constante, não importando o contexto de emissão da sentença (7). A DD em (7) não é um SME. O fato de algumas DDs serem SMEs e outras não reflete as diferenças de denotação entre nomes contáveis e nomes de massa. Embora nomes nus de qualquer natureza sejam denotações cumulativas, há um contraste entre nomes de massa e contáveis. Examinemos esse contrate de perto: 8. (a) Maria bebeu água *em dez minutos/ por dez minutos. (b) Maria lavou copo[s] *em dez minutos/ por dez minutos. 9. (a) Elefante[s] anda[m] um atrás do outro. (b) *Água cai uma sobre a outra. Em (8), empregamos um teste de telicidade. A modificação por advérbios de duração como por dez m inutos, indica que a sentença é atélica e que o complemento do verbo dentro dela é uma denotação nominal cumulativa. Se, ao contrário, as sentenças em (8) fossem boas com advérbios de intervalo, como em dez minutos, isso significaria que elas seriam télicas e que as denotações de água (em 8a) e de copo ou copos (8b) seriam quantificadas. Embora o teste demonstre que todo nome nu é uma denotação cumulativa, vemos em (9) que nomes nus contáveis têm uma propriedade exclusiva, não exibida pelos nomes nus de massa. Há indivíduos na denotação de nomes nus contáveis, mas não na denotação de nomes nus de massa. Os predicados em (9) exigem uma ordenação dos indivíduos no interior da denotação dos nomes nus. Como a denotação de elefante dispõe de indivíduos, é possível ordená-los em fila, dizendo que um anda atrás do outro. Mas não é possível pôr uma porção de água atrás ou na frente de outra, pois essas porções não podem ser individualizadas sem o concurso de uma unidade de medida. O contraste massivo-contável se mantém mesmo em sintagmas determinados: 10. (a) Maria bebeu a água em dez minutos/ *por dez minutos. (b) Maria lavou o copo[s] em dez minutos/ *por dez minutos. 11. (a) *O elefante anda um atrás do outro. (b) *A água cai uma sobre a outra. (c) O elefante anda um atrás do outro. O teste dos advérbios de intervalo e de duração (em 10) indica que DDs são denotações quantizadas. Mas (11) mostra que os predicados de ordenação de indivíduos formam boas sentenças só com DDs plurais (11c). As duas DDs singulares são inaceitáveis com tais predicados. No caso de o elefante (11a), a razão é que a denotação de um nome contável singular é a de um único átomo; ora, para fazer uma fila é preciso haver uma pluralidade de indivíduos, de modo a pôr um na frente ou atrás do outro. No caso de a água, a razão é outra. A DD em (11b) significa uma certa quantidade, uma soma fechada de água. Digamos que essa DD se refira a um rio de água. Dentro dessa denotação, temos porções menores que não são, em si, um rio de ág ua, mas que são água. Entretanto, sem uma unidade de medida, não podemos distinguir uma porção da outra. Em (11c), na forma de uma DD, tal como em (9a), que estava na forma de um nome nu, a denotação de um sintagma nominal com nome de massa apresenta partes, mas tais partes não constituem indivíduos. Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 200 / 205

DDs plurais e DDs singulares com nomes de massa exibem cumulatividade. Mas uma DD singular com nome contável denota um único átomo. As denotações cumulativas são SMEs mas a atômica não é como podemos observar nas interpretações obtidas em (12): 12. (a) *O copo encheu o armário. (b) Os copos encheram o armário. (c) A água encheu a banheira. O cenário para (12a/b) é um armário de cozinha padrão, onde são guardados os 24 copos da casa. O armário está vazio. No momento em que (12a) é proferida, só a entidade a que se refere a expressão o copo foi colocada dentro do armário; tudo o mais ainda está no escorredor de louça. Nesse caso, a sentença é falsa. A quantidade de uma DD singular com nome contável não se molda ao contexto: o copo sempre significa um indivíduo do tamanho padrão, nunca mais de um, e um objeto com essas dimensões não utiliza toda a capacidade de um armário para 24 unidades do mesmo padrão. Se, na mesma cozinha, a entidade a que se refere a expressão os copos tiver sido guardada no armário, a sentença (12b) será verdadeira, porque os copos designa a soma de todos os copos num determinado contexto. Se os 24 copos foram guardados no armário, podem abarrotá-lo. A mesma sentença proferida numa cozinha com o dobro de copos e um armário compatível também será verdadeira. Mesmo proferida num recinto em que existam quatro copos e um armário com capacidade para esse número de copos, (12b) também será verdadeira. Sempre que variarmos o cenário quanto à capacidade do armário, uma vez mantida a correspondência entre essa capacidade e o número de copos existentes no recinto, (12b) descreverá a cena. Pois os copos pode fazer referência a qualquer soma de copos, uma vez que se trata de um SME cujo functor é dado pelo contexto. A quantidade de água em (12c) também é variável: podemos alterar a capacidade da banheira à vontade, e a água sempre poderá designar um volume suficiente para enchê-la, pois uma DD singular com nome de massa é um SME cujo functor é preenchido pelo contexto. 3. O papel de todo nos SME Dissemos que DDs plurais e DDs singulares com nomes de massa são SMEs que tiram seu functor do contexto. Uma SME pode ter um de seus componentes coberto, fornecido pelo contexto. Mas DDs singulares com nomes contáveis não são SMEs, visto que as quantidades que expressam se conservam em qualquer contexto. Como explicar então o dado (1b), a seguir repetido sob novo número? 13. Todo o País pára para ver a copa do mundo. A interpretação de (13) é a de um SME: entendemos que há uma quantidade de pessoas, uma quantidade tal que atinge a dimensão de um país, e que o predicado se aplica a toda essa soma de indivíduos. A diferença entre (13) e (12a) é evidente: a DD singular com nome contável na restrição de to do é interpretada como uma pluralidade, e a DD singular que não está modificada por todo é interpretada como um átomo. Defenderemos que a modificação por todo transforma a DD singular com nome contável em um SME. Para sustentar essa análise, precisamos eliminar a possibilidade de que o contraste notado entre (13) e (12a) se deva apenas ao fato de País ser um nome coletivo e copo, não. Para isso, deixemos de lado os nomes coletivos em nosso exame, e vejamos se o contraste se mantém: Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 201 / 205

14. (a) Pedro virou o copo. (b) Pedro virou todo o copo. A diferença de significado entre as duas sentenças em (14) é gritante: (14a) só pode significar que Pedro emborcou o copo na mesa, ou, inversamente, que o virou de boca para cima; apenas (14b) significa que Pedro bebeu, de uma só vez, o que quer que estivesse contido no copo. O copo, não modificado por todo, é uma denotação atômica e não usa o contexto para completar o seu sentido. Portanto, a sentença (14a) mantém seu significado literal: Pedro manipulou o copo em si. Mas, na restrição de todo, o copo é uma unidade de medida para alguma coisa de denotação cumulativa. Por isso, (14b) pode descrever a cena em que Pedro bebeu, de um só golpe, um copo inteiro de pinga. Se for verdade que, na restrição de um modificador de extensão como todo, uma DD singular com nome contável se transforma, composicionalmente, num SME, o nome contável nessa DD, por ter denotação atômica, tem de ser o functor. Espera-se que a extensão seja dada pelo contexto. É o que observamos a seguir: 15. (a) Dudu esfarelou #a lata. (b) Dudu esfarelou toda a lata. (c) Dudu esfarelou as bolachas. (d) Dudu esfarelou a lata de bolachas. A cena que devemos ter em mente é a de um menino tirando cada uma das bolachas de dentro de uma lata repleta e esmigalhando a todas. Só (15a) é inadequada para descrever esse episódio. A sentença (15d) traz o SME completo: a lata é functor, a unidade de medida, e bolachas é a extensão. Na restrição de todo, o mesmo significado é preservado, mesmo com a realização de apenas uma parte do SME, o functor (15b). A estranheza de (15a) vem do fato de a lata não atender à s -seleção do verbo esfarelar, que pede um complemento de natureza granulosa, qualidade inexistente num metal. Sem todo, a lata tem denotaç ão atômica, e a sentença é compreendida literalmente. A presença de todo dá acesso à extensão da SME; embora a lata não atenda à s - seleção do verbo esfarelar, a extensão, bolachas, recuperada pelo contexto, atende, como a boa formação da sentença em (15c) atesta. O que se observa em (15) tem um paralelo com o comportamento de unidades de medida que não fazem referência a uma entidade, a um recipiente, mas que indicam apenas propriedades como volume, altura, distância e peso. 16. (a) *Maria bebeu o litro. (b) Maria bebeu todo o litro. (c) Maria bebeu o litro de chope. (d) Maria bebeu o chope. No caso de litro, não há possibilidade de leitura literal, como em (14a); e a agramaticalidade de (16a) mostra que a s-seleção do verbo não pode ser satisfeita por uma expressão desse tipo, por mais que o conhecimento de mundo do falante seja capaz de relacionar essa medida de volume a uma certa quantidade de líqüido. Entretanto, se o litro aparece na restrição de todo, a sentença melhora muito (16b). A sentença (16c), com o SME completo, é perfeita, paralelamente a (15d). E (16c) traz como complemento uma DD que satisfaz a s-seleção do verbo, pois o chope é bebível. Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 202 / 205

Nosso último argumento é construído sobre as perguntas de medição. Interrogativas iniciadas por quanto requerem, como resposta apropriada, um tanto, uma informação sobre quantidade. Uma resposta que não informe uma quantidade definida será insuficiente. Por estarmos interessados nas DDs, vamos limitando a forma do sintagma nominal utilizado nas respostas a DDs. 17. Quanto a Maria (já) comeu (até agora)? (a) Maria comeu a geladeira toda. (b) #? Maria comeu a geladeira. (c) Maria comeu toda a comida. (d) # Maria comeu a comida. (e) Maria comeu toda a comida da geladeira. Somente a resposta com o SME completo (17e) e as que mostram uma DD na restrição de todo (17a/c) são respostas apropriadas à pergunta de medição. A sentença (17b) é estranha: não informa uma quantidade e ainda tem uma leitura literal, pela qual Maria teria mordido e ingerido um aparelho refrigerador. A sentença (17d) é perfeita, e é uma SME, mas o functor é preenchido pelo contexto; para saber quanta comida havia, é preciso olhar para o mundo; (17d) não informa explicitamente uma quantidade, por isso é uma resposta inadequada. O complemento de (17d) é pouco informativo em termos de qualidade, pois é um objeto cognato. Mas, na restrição de todo, veicula uma informação definida de quantidade, tornando-se uma resposta satisfatória (17c). E, se todo fosse suprimido de (1 7e), a comida da geladeira seria uma expressão ambígua. Numa leitura, a geladeira é o functor do SME e define a quantidade de comida consumida por Maria. Na outra, da geladeira indica apenas a procedência da comida, e o functor é recuperado pelo contexto (Maria pode ter comido só uma pequena parte do conteúdo da geladeira). É interessante observar que todo elimina a ambigüidade: a única interpretação para (17e) é aquela em que Maria comeu tudo o que estava na geladeira. Como SMEs são sintagmas em que um número exato é atribuído a uma certa quantidade de indivíduos, ou uma dimensão exata é atribuída a uma porção de substância (cf. Krifka 1988 e 2004), SMEs são boas respostas para perguntas iniciadas por quanto. Os dados em (17) mostram que uma DD na restrição de todo é sempre um SME. 4- Contexto e determinação lingüística Uma DD pode nomear o functor (17a) ou a extensão (17c). Como o falante sabe se o nome abertamente realizado numa DD deve ser interpretado como um functor ou como a extensão? A primeira informação é de ordem lingüística e decorre do contraste entre nomes de massa e contáveis. Nomes de massa são mais marcados como denotações cumulativas. O falante sabe disso, e entende que uma DD singular com nome de massa (como o chope ) sempre tr az expressa a extensão do SME. Portanto, o functor é recuperado discursivamente ( o chope pode ser compreendido como o copo de chope ). A dimensão da soma ou quantidade da substância nomeada é elástica, já que o functor é suprido pelo contexto. Da mesma forma, uma DD singular com nome contável (como a geladeira ) é uma denotação mais marcada como atômica. Esse conhecimento inato leva o falante a entender que a parte expressa do SME, nesse caso, é o functor; portanto, o falante vai Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 203 / 205

buscar a extensão no contexto (a DD toda a geladeira pode ser compreendida como toda a comida da geladeira ). Para as DDs plurais, a determinação lingüística só é suficiente quando a outra parte do SME é um nome contável singular ou um nome de massa. O plural é nãomarcado, e, portanto, vai fazer as vezes do componente que falta para completar o SME. O nome de massa sempre será a extensão: em combinação com ele, o nome plural será o functor (p.ex., em copos de água ). Igualmente, o nome singular contável sempre é o functor; em combinação com ele, o nome plural será o outro componente, a extensão (p.ex., em a cesta de maçãs ). Um caso indeterminado é o de um SME com dois nomes plurais. Nesse caso, como o plural é não-marcado, o falante dependerá de seu conhecimento de mundo ou do contexto para compreender o papel de cada nome plural. Aquele nome plural que se refere ao recipiente-medida ( as cestas, em as cestas de maçãs ) será o functor. Aquele nome plural que se refere àquilo que está contido em certo recipiente ou que foi medido será a extensão ( as maçãs, em as cestas de maçãs ). Se a DD plural designar um número plural de unidades de medida, como em os litros, terá de haver um modificador como todo para que essa DD possa atender à s-seleção de um verbo que tome por argumento o conteúdo não realizado como um constituinte; daí a inaceitabilidade de (18a), e flagrante melhora relativa de (18b), que significa que Maria bebeu o total de litros (de alguma coisa) num dado contexto. Ou o SME completo terá de ser abertamente realizado, como em (18c). 18. (a) *Maria bebeu os litros. (b) Maria bebeu todos os litros. (c) Maria bebeu os litros de chope. 5- Conclusões As DDs singulares com nomes de massa, como a água, são sintagmas de medição extensiva. Essas DDs trazem a extensão expressa, e o functor é uma contribuição do contexto. As DDs singulares com nomes contáveis, sozinhas, não são sintagmas de medição extensiva. Isoladas, elas fazem referência ao único indivíduo saliente no contexto. Porém, na restrição de todo, e p rovavelmente quando modificadas por outros operadores modificadores de extensão, essas DDs nomeiam o functor ou a unidade de medida; a extensão é resgatada do contexto. As DDs com nomes contáveis plurais como as cestas denotam sintagmas de medição extensiva. Em composição com um nome contável singular, o nome plural nomeará a extensão. Em composição com um nome de massa, o nome plural nomeará o functor. Mas composto com outro nome plural, ou se for o único nome expresso na DD, o nome plural pode, indeterminadamente, nomear o functor ou a extensão. O nome plural pode designar qualquer das partes desse nominal complexo por ser subespecificado para cumulatividade ou atomicidade. A pragmática ou o conhecimento de mundo socorrem o falante. Se o nome plural designar um recipiente, ou uma unidade de medida, a extensão será dada pelo contexto. Se designar o conteúdo, ou a substância medida, então o functor é que será resgatado do contexto. A presente análise preserva a uniformidade da operação sentencial praticada por todo, quer tenha um nome nu, uma DD singular ou uma DD plural em sua restrição. Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 204 / 205

A uniformidade está de acordo com a interpretação distributiva encontrada em qualquer sentença com todo. Esta proposta também demonstra como o contraste entre nome contável e de massa, por um lado, e entre singular e plural, por outro, é importante para a interpretação de sentenças. O contraste entre denotações cumulativas e as denotações de um único átomo é decisivo para a interpretação de SMEs. Outra virtude desta análise é a de manter a visão tradicional de um nome singular contável como uma denotação atômica. O nome contável na DD singular tem de ser atômico, para que possa fazer o papel do functor (ou unidade de medida) num sintagma de medição extensiva. Referências LINK, Godehard. Algebraic Semantics in Language and Philosophy. Stanford, CA, CSLI Publications. 1998. KRIFKA, M. Bare NPs: Kind-referring, Indefinites, Both, or Neither? In: SALT XIII, 2003, University of Washington, Seattle. YOUNG, R.B. & ZHOU, Y. (ed.) Proceedings of Semantics and Linguistic Theory. Cornell, CA: CLC Publications, 2004. KRIFKA, M. The origins of telicity. In: ROTHSTEIN, S. (ed.) Events and Grammar. Dordrecht: Kluwer, 1998. p.197-235. Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 205 / 205