IV Encontro da ANDHEP



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Transcrição:

1 IV Encontro da ANDHEP GT 1: Teoria e História Título do Trabalho: Boa Cidadania Internacional? Avaliando a Política Externa do Governo Lula para os Direitos Humanos Autor: Emerson Maione de Souza

2 Boa Cidadania Internacional? Avaliando a Política Externa do Governo Lula para os Direitos Humanos Emerson Maione de Souza 1 Resumo Este artigo usa o conceito de "Boa Cidadania Internacional" para investigar a dimensão ética da política externa do governo Lula. Tal conceito provê um quadro conceitual para uma avaliação normativa da atuação dos governos enquanto eles procuram equilibrar suas responsabilidades com o Estado e a sociedade internacional. Conforme destacado por vários analistas, a boa cidadania internacional se afasta da tradicional abordagem realista para a política externa porque rejeita a afirmação de que o interesse nacional está sempre na direção oposta da promoção dos direitos humanos. Além disso, em contraste com o idealismo, que enxerga uma subjacente harmonia de princípios morais, defensores da boa cidadania internacional reconhecem a necessidade do uso da força e de decisões baseadas na ética da responsabilidade. Resumindo, Estados que são bons cidadãos internacionais não necessitam sacrificar seus interesses vitais de segurança devido à lealdade com as instituições da sociedade internacional. Entretanto, para se qualificar como bom cidadão internacional um Estado cumpridor de normas deve não apenas colocar a manutenção da ordem à frente da perseguição de vantagens comerciais e políticas de curto prazo, como também deve abrir mão destas vantagens quando elas conflitarem com os direitos humanos. Nesse sentido, a pergunta que guia a análise deste artigo é até aonde o Brasil sob o governo Lula se qualifica como um bom cidadão internacional. O artigo também examina se a atual política externa age de acordo como o princípio constitucional de "prevalência dos direitos humanos". Em seu discurso de posse o presidente Lula afirmou que "a ação diplomática do Brasil estará orientada por uma perspectiva humanista". O artigo visa analisar os limites e as possibilidades da "perspectiva humanista" da atual política externa brasileira. Palavras-chave: Boa Cidadania Internacional; Política Externa do Governo Lula; Direitos Humanos; Ética; Escola Inglesa. Introdução A Escola Inglesa: ordem e justiça A Escola Inglesa de Relações Internacionais é identificada por sua ênfase ao conceito de sociedade internacional. Conforme desenvolvido por Hedley Bull (1995, p. 13), tal conceito pressupõe a existência de um grupo de Estados que se consideram ligados por certos valores e interesses comuns. Seu relacionamento acontece, por um conjunto comum de regras e instituições. Essa ênfase demonstra as preocupações 1 Mestre em Relações Internacionais pelo IRI/PUC-RIO e professor de Relações Internacionais no Centro Universitário Metodista do Rio (Bennett), na Universidade Estácio de Sá (UNESA) e pesquisador do Grupo de Pesquisa sobre Política Internacional da UFRJ. Trabalho em progressão (ainda não é para ser citado; caso queira uma versão mais desenvolvida deste trabalho, basta enviar-me um email), comentários são bem vindos: emersonmaione@terra.com.br

3 normativas dos membros da Escola Inglesa com as regras, normas, leis e princípios de legitimidade que sustentam a ordem mundial. 2 Nesse sentido, ao se analisar um determinado contexto internacional a Escola procura focar na prática, ou seja, os significados e as justificações que os agentes dão para suas ações. E ao mesmo tempo em que procura enxergar a historicidade de tais práticas, busca apoio na teoria política internacional para informar sobre as bases dos julgamentos morais destas ações e sobre o estado em que estamos (Dunne, 2005a, p. 170). A sociedade internacional reflete um ordenamento precário e difícil de ser mantido, mesmo quando suas instituições funcionam adequadamente. Ela varia não somente de acordo com as mudanças na distribuição de poder, mas, principalmente, com as mudanças dos princípios de legitimidade que estão em sua base. Um ponto importante a se levantar sobre as análises e comentários feitos sobre a Escola Inglesa é que a centralidade das questões morais contida em seus escritos foi pouco apontada pelos comentadores. Talvez porque focalizaram em demasia a questão da ordem, não dispensando a devida atenção a outros pontos fundamentais da Escola Inglesa, como, por exemplo, a ênfase em estruturas intersubjetivas, ao invés de estruturas materiais. Apesar disso, recentemente, com a proeminência das chamadas teorias normativas, o quadro tem mudado, relativamente: leituras mais acuradas de seus trabalhos têm sido feita e, consequentemente, mais atenção tem sido dada a tais aspectos da Escola Inglesa (Souza, no prelo). 3 Para analisarmos os aspectos normativos que a Escola Inglesa destaca, em primeiro lugar, temos que fazer referência ao debate entre as concepções pluralista e solidarista da sociedade internacional, distinção esta feita por Hedley Bull (1966). Estas 2 Sobre o desenvolvimento da Escola Inglesa e análise dos trabalhos de seus autores, ver Souza (2003 e 2006) e Dunne (1998). 3 Para Bull (1991, p. xi), a centralidade das questões morais também era uma das características dos escritos de Martin Wight: Wight colocava estas questões no centro da sua pesquisa. Um exemplo de comentador atual que destaca o lado normativo da Escola Inglesa é Reus-Smit (2002 e 2005). Para este autor, as questões normativas ocupam lugar central na Escola Inglesa. Por isso destaca que falar da Escola Inglesa sem mencionar este aspecto central é apenas reproduzir estereótipos empobrecedores. Aqui não é o lugar para uma revisão da literatura, empreendi uma análise dos trabalhos que destacam esses pontos da Escola Inglesa, ver Souza (2003 e 2008).

4 duas concepções representam duas visões sobre a possibilidade da promoção da justiça na política global e pontuam a maioria dos debates sobre tais pontos na Escola Inglesa. Normalmente os termos do debate dentro da Escola Inglesa são os seguintes: o pluralismo descreve sociedades internacionais "tênues" (thin) onde são poucos os valores compartilhados e onde o foco principal é desenvolver regras de coexistência dentro de um quadro de soberania e não-intervenção; o solidarismo, por sua vez, descreve sociedades internacionais "densas" (thick) onde uma maior gama de valores é compartilhada e as regras não são apenas de coexistência, mas também sobre a busca de ganhos comuns e o gerenciamento de problemas coletivos (Buzan, 2004, p. 58-9). Barry Buzan (2004, p. 59) destaca que para evitarmos concepções dicotômicas deveríamos pensar sobre o pluralismo e o solidarismo como pontas de um mesmo espectro. Se o solidarismo é compreendido como sendo sobre a densidade das normas, regras e instituições que os Estados decidem criam para gerenciar suas relações, então pluralismo e solidarismo simplesmente ligam posições em um espectro e não são necessariamente contraditórios. Dessa forma, eles representam diferenças de grau e não posições contraditórias. Dando continuidade à tradição de teorização normativa dentro da Escola Inglesa, Andrew Hurrell quer explorar a relação entre ordem e justiça. Para ele, a estrutura normativa da sociedade internacional desenvolveu-se de modo em que há agora uma cada vez mais densa e integrada rede de instituições e práticas compartilhadas em que as expectativas sociais de justiça e injustiça globais tornaram-se mais estabilizadas. Mas, ao mesmo tempo, nossas principais instituições sociais internacionais continuam a constituir uma ordem política deformada, principalmente por causa das extremas disparidades de poder que existem tanto na sociedade internacional quanto na mundial. Essa combinação de densidade e deformidade molda o modo como pensamos a relação entre ordem e justiça (2003, p. 36). Se, por um lado, a densidade nos impede que retrocedemos à ordem minimalista do pluralismo; por outro, a deformidade somada às "qualidades hegemônicas da ordem internacional contemporânea não necessariamente marcam o fim dos comprometimentos com princípios cosmopolitas, mas podem ter um efeito negativo de longo prazo na sua consolidação" (Linklater e Suganami, 2006, p. 195).

5 Hurrell observa que conforme a ordem jurídica no pós-guerra Fria tem se desenvolvido em direção ao solidarismo, uma importante ambigüidade começa a surgir sobre a visão dos Estados como os principais agentes da ordem mundial: No mundo pluralista, os Estados podiam ser entendidos como "agentes" apenas no sentido daqueles agindo, exercendo poder e fazendo algo para si mesmo: "O direito das nações é o direito dos soberanos", como Vattel afirmou. Mas a expansiva agenda normativa do solidarismo trouxe um segundo e diferente significado de agência: a idéia de um agente como alguém que age por, ou em benefício de, outrem. Dentro da ordem solidarista os Estados não agem mais para si mesmos como soberanos, mas antes, em primeiro lugar, como agentes para os indivíduos, os grupos, e as comunidades nacionais que eles supostamente devem representar - daí a mudança em direção à soberania como responsabilidade - e, em segundo, como agentes ou intérpretes de alguma noção de bem público internacional e algum conjunto de normas centrais contra as quais o comportamento do Estado deve ser julgado e avaliado (2003, p. 40). Hurrell argumenta ainda que a mudança envolveu não apenas instituições interestatais mas também presenciou a emergência de estruturas transnacionais de governança. Como exemplo cita o crescente papel das firmas e ONGs no processo de criação das normas internacionais. Sobre as possibilidades de justiça internacional nos tempos atuais, Hurrell, baseado em seus estudos sobre a globalização, destaca a necessidade da diminuição da desigualdade econômica e a formação de um contexto em que os mais necessitados percebam alguma vantagem no sistema. Faz alguns apontamentos. Primeiro, parece muito improvável que uma única ideologia ou visão de mundo poderá prover um quadro englobante ou meta-narrativa para os valores e a ética no século vinte e um - liberalismo global, por exemplo. Ao invés disso, debate, deliberação e contestação sobre questões de justiça terá lugar em uma ampla gama de esferas e domínios envolvendo uma miríade de atores: Estados, ONGs, firmas, organizações internacionais. Segundo, os participantes continuarão a vir de uma variedade de contextos culturais, religiosos e lingüísticos. Você não precisa acreditar em choques de civilização ou em incomensurabilidade para acreditar que a diversidade humana e conflitos de valores permanecem importantes e que perspectivas sobre questões de ordem e justiça internacional variam enormemente de uma parte do mundo para outra. Complexidade cultural e histórica também torna difícil generalizar leis universais a partir de casos

6 particulares: uma grande parte dos debates sobre valores e ética no século vinte e um será necessariamente rico em análise de contextos e interpretativo (2003, p. 44). Por fim, para Hurrell justiça e eqüidade em relação ao processo e aos procedimentos é mais importante do que justiça e eqüidade em questões de substância pelo fato de ser o mais provável para se alcançar acordos substantivos dado a profundidade dos conflitos de valores e, ainda, a facilidade com que o direito internacional e as instituições são contaminados pelos interesses e valores dos mais poderosos. A forma mais viável de comunidade moral global continuará a ser aquela construída em torno de alguma noção mínima de processo justo. Por quê? Ele responde que, em primeiro lugar, o quadro de entendimentos e cultura moral compartilhado que realmente conseguiu desenvolver-se foi criado dentro da sociedade internacional; segundo, e mais fundamental, por causa da universalidade das idéias sobre eqüidade no processo: ouvir o outro lado, prover argumentos para suas ações, encontrar algum mecanismo para julgar reivindicações morais conflitantes. Afirma, portanto, que a "justiça global não é algo que pode ser deduzido de princípios racionais nem pode ser resultado de uma única visão de mundo, religiosa ou secular; é, ao contrário, um produto negociado do diálogo e de deliberação e, portanto sempre sujeito a revisão reavaliação" (2003, p. 44). 4 Para resumir os argumentos sobre os desenvolvimentos normativos da Escola Inglesa e como isso impacta em sua análise dos problemas políticos atuais. Com a perspectiva solidarista ganhando cada vez mais terreno dentro da Escola suas análises: têm uma noção holística de agência analisando a interação de atores estatais com os não-estatais (Buzan 2004; Hurrell, 2003; Dunne e Wheeler, 2004); enfatizam a indivisibilidade entre segurança e direitos humanos (Dunne e Wheeler, 2004); afirmam a necessidade de se analisar o conteúdo moral da política externa dos Estados (Linklater e Suganami, 2006; Wheeler e Dunne, 1998, 2001 e 2003; Dunne 2004 e 2008). 4 Afinal, como nos ensina o filósofo cosmopolita Kwame Anthony Appiah sobre os desacordos morais: "Se vamos encorajar um engajamento cosmopolita e um diálogo moral de pessoas através de sociedades, nós devemos esperar tais desacordos: afinal de contas, eles ocorrem dentro das sociedades. (...) Porque a linguagem moral é um texto aberto e essencialmente contestável, mesmo pessoas que compartilham um vocabulário moral têm muito sobre o que brigar" (2006, p. 46 e 60 ênfases no original).

7 Boa Cidadania Internacional: Uma abordagem da Escola Inglesa para a análise da agência ética em política externa Desde o fim da guerra fria tem havido uma proliferação de discursos de cunho internacionalista por parte de ministros das relações exteriores. Isso coloca, de forma preeminente, a necessidade de se analisar as justificativas morais que os Estados dão para as suas ações na política mundial. Alguns autores da Escola Inglesa, como Tim Dunne, Nicholas Wheeler e alguns com fortes ligações com ela, como Andrew Linklater, destacam que o conceito de boa cidadania internacional é capaz de prover um quadro conceitual que permita analisar a dimensão ética da política externa. O que se segue é uma explicação sobre tal conceito e como ele tem sido usado por autores da Escola Inglesa. Na próxima seção analisaremos a política externa brasileira a luz deste conceito. O conceito de boa cidadania internacional foi desenvolvido por Gareth Evans, ministro das relações exteriores australiano de 1988-1996. Para Evans, a boa cidadania internacional se afasta da tradicional abordagem realista para a política externa porque rejeita a afirmação de que o interesse nacional está sempre na direção oposta da promoção dos direitos humanos. Além disso, em contraste com o idealismo, que enxerga uma subjacente harmonia de princípios morais, defensores da boa cidadania internacional reconhecem a necessidade do uso da força e de decisões baseadas na ética da responsabilidade (Dunne e Wheeler, 1998, p.848). Pelo fato de tal conceito destacar a possibilidade de transcender doutrinas rivais que muitos autores afirmam que a idéia de boa cidadania internacional pode claramente ser colocada dentro da tradição da sociedade internacional ou Escola Inglesa (ibid., p.856). Contudo, a Escola inglesa, como vimos na seção anterior sobre as diferenças entre as concepções pluralista e solidarista, é dividida sobre até onde as preocupações com os direitos humanos devem fazer parte da diplomacia. Pelo fato de, em sua maioria, autores solidaristas usarem e desenvolverem o conceito ele pode muitas vezes ser visto como um conceito solidarista. Entretanto, os solidaristas não estão sós em ter desenvolvido, ou serem capazes de desenvolver, uma explicação sobre o que significa para um Estado ser um bom cidadão internacional (Linklater e Suganami, 2006, p. 227). Um exemplo de abordagem pluralista para a política externa dentro da Escola inglesa são os trabalhos de Robert

8 Jackson (2000, especialmente os capítulos 6 e 7). Posteriormente serão comparados princípios solidaristas e pluralistas da boa cidadania internacional. Tim Dunne e Nicholas Wheeler usam o conceito para analisar a política externa da Grã-Bretanha. Uma vez que no poder, em 1997, o novo governo trabalhista, liderado por Tony Blair, procurou colocar em prática os preceitos da Terceira Via, somados a uma nova concepção da identidade britânica agora voltada para uma imagem progressista baseada, não em seu passado imperial ou na sua atual potência militar, mas nos valores de uma sociedade confiante, criativa, tolerante e inclusiva. Robin Cook, seu ministro das relações exteriores, destaca que esses valores têm de ser refletidos na política externa. Por isso, na visão de Dunne e Wheeler (1998) ele introduziu uma mudança significativa na política externa britânica ao trazer uma nova linguagem destacando que a política externa teria uma dimensão ética e colocou os direitos humanos no centro de sua diplomacia. Os autores chamam atenção que esse é um dos aspectos da boa cidadania internacional, ou seja, a forte ligação entre política externa e doméstica. Pois a política externa origina-se dos princípios da democracia, direitos humanos e boa governança. Nessa questão eles apontam duas conclusões tiradas por Gareth Evans. Primeiro, um governo que defende esses valores no exterior deve ter bons antecedentes sobre essas questões em casa. Estados que usam a linguagem da boa cidadania internacional serão desacreditados senão defenderem os princípios da governança democrática internamente. Segundo, Estados que praticam a boa governança internamente tendem a se comportar da mesma forma externamente. Nesse sentido, bons cidadãos internacionais têm um interesse de segurança de longo prazo em promover os direitos humanos em suas políticas externas. Eles chamam a atenção de que não estão colocando uma conexão automática entre valores democráticos internos e bom comportamento no exterior, mas argumentam que há uma forte ligação entre como os Estados tratam os seus cidadãos e como tratam os cidadãos de outros Estados (1998, p. 856). Sobre os critérios para se avaliar se a Grã-Bretanha é um bom cidadão internacional eles destacam que partirão do princípio solidarista de que os governantes, além de serem responsáveis pela segurança e bem estar de seus cidadãos, são responsáveis pela proteção dos Direitos Humanos em qualquer lugar (Bull, 1966, p. 63-64). Dunne e Wheeler argumentam que esse comprometimento é o teste final para se

9 julgar a Grã-Bretanha como um bom cidadão internacional. 5 De modo geral, tais autores solidaristas nos anos 1990 enfatizavam excessivamente a questão da intervenção humanitária. Defendiam, e ainda defendem, apesar de mais cautelosos, que em situações de emergências humanitárias supremas os Estados devem intervir mesmo que não consigam a autorização da ONU. Ao discutir a questão do progresso e seus limites, Andrew Linklater destaca um ponto importante do contexto internacional pós- onze de setembro com relação aos anos 1990 ao comentar que depois do otimismo cauteloso dos últimos anos, que é evidente em Wheeler (2000), provavelmente a tendência dominante na Escola Inglesa será enfatizar a escala de obstáculos para a criação de uma sociedade internacional solidarista (Linklater e Suganami, 2006, p. 146). Linklater (ibid., p. 145), argumenta que o fim da era bipolar pode ter removido alguns dos constrangimentos para o desenvolvimento de uma ordem mundial solidarista, mas uma clara conseqüência é a preponderância dos ideais políticos e econômicos do ocidente liberal inseridos em uma era de hegemonia americana quando a decisão de fazer uma guerra preventiva e de deslocar a ONU no processo, tem efetivamente restringido as fronteiras da sociedade internacional. Linklater apresenta um conjunto de princípios é relevante em uma condição em que rivalidades entre as grandes potências sugerem que um acordo sobre regras pluralistas de coexistência, ou algumas convenções básicas sobre a questão do dano internacional, é tudo o que se pode esperar, ou seja, dentro das condições da concepção pluralista da sociedade internacional: (1) os Estados são os membros básicos da sociedade internacional; (2) todas as sociedades têm o direito de uma existência separada sujeita à necessidade de manter o equilíbrio de poder; (3) é proibida a intervenção nos assuntos internos de Estados membros para a promoção de uma visão 5 Os autores fazem análises de alguns casos. De modo geral, apesar de suas análises apontarem o que acreditam que sejam pontos positivos (como a intervenção no Kosovo para salvar os kosovares albaneses, apesar de criticarem os meios usado bombardeio aéreo e não intervenção terrestre) e negativos (vendas de armas para a Indonésia que foram usadas para a repressão no Timor Leste; o apoio praticamente incondicional aos EUA no Iraque em 2003; a necessidade de uma cobrança mais contundente por parte da Grã-Bretanha em seu diálogo diplomático com a China na questão dos direitos humanos), eles aprovam a coragem do governo trabalhista de estabelecer padrões de direitos humanos na sua política externa através do quais ele pode ser julgado pela sociedade. O destaque dado pelo governo trabalhista ao que chamou de dimensão ética da política externa gerou um amplo debate sobre a relação entre ética e política externa na Grã-Bretanha. Ver, entre outros, Booth (1997); Frost (1997); Brown (2001); Curtis (2004); Williams (2002); Smith e Light (2001).

10 sobre decência humana ou justiça humana; (4) os Estados devem abandonar o objetivo de adquirir um poder preponderante no sistema internacional; (5) todos os Estados têm o dever de cooperar para manter um equilíbrio de poder; (6) os esforços diplomáticos para reconciliar interesses divergentes devem proceder baseados na suposição de que cada Estado é o melhor juiz de seus próprios interesses; (7) uma concepção inclusiva em oposição a uma concepção exclusiva do interesse nacional deve ser buscada para que outros Estados, e a sociedade a que eles pertencem, não sofram danos em nome de vantagens nacionais triviais; (8) devido às suas capacidades militares únicas as grandes potências devem assumir responsabilidades especiais que são determinadas por consentimento mútuo para a preservação da ordem internacional; (9) um objetivo essencial de uma política externa inclusiva é fazer mudanças na sociedade internacional que satisfaça os interesses legítimos de potências ascendentes e de novos Estados membros; (10) o uso da força é justificado em auto-defesa e em resposta a Estados que buscam um poder preponderante; e (11) a proporcionalidade na guerra deve ser respeitada ao lado do princípio de que as potências derrotadas devem ser readmitidas como iguais na sociedade internacional (ibid., p. 238-240). O autor afirma que os princípios de boa cidadania internacional em uma sociedade internacional pluralista são preocupados em criar e preservar convenções internacionais sobre o dano internacional que trabalham em benefício das grandes potências. Mas chama atenção para o fato de que por ser uma via media entre o realismo e o revolucionismo, a Escola Inglesa tem a obrigação de destacar não apenas as realidades persistentes da política internacional, mas também expor os Estados que fazem uma exagerada reivindicação de necessidades (seja de segurança, comércio ou de outra natureza) para justificar decisões que subordinam responsabilidades internacionais e humanitárias a imperativos nacionais. Nesse ponto, Linklater (ibid., p. 241-242) destaca um dos principais objetivos de suas análises: É aqui que o solidarista pode desenvolver uma abordagem distinta para a análise de política externa, uma que tente verificar se os Estados poderiam ter feito - ou podem fazer mais diante das evidências disponíveis para promover objetivos cosmopolitas mesmo nas mais difíceis circunstâncias. Para ele, o solidarismo, como um arcabouço institucional realmente viável na política mundial, está destinado a ser visto como prematuro caso não se produza reflexões sobre o tipo de contribuição que se pode esperar de bons cidadãos internacionais para o desenvolvimento de uma sociedade internacional mais ética.

11 O Brasil e a Boa Cidadania Internacional Apesar das reiteradas afirmações de continuidade e isso se retém em um nível genérico de princípios que guiam a conduta externa brasileira (não-intervenção, solução pacífica de controvérsias, multilateralismo) 6, no governo Lula a mudança tem predominado sobre a continuidade A inclusão da agenda social como um tópico importante de política externa foi uma das primeiras e mais importantes inovações (Lima e Hirst, 2006, p. 22). Dentro desta agenda social três exemplos trazem elementos que revelam a inauguração desta nova política externa por parte do Brasil (Seitenfus et al. 2007, p. 15). O primeiro é o perdão de dívidas estrangeiras. 7 O segundo é a liderança brasileira na missão de estabilização do Haiti (MINUSTAH). O terceiro é a resposta da diplomacia brasileira a nacionalização do gás na Bolívia. Analisarei o exemplo boliviano. Foram muitas as reações no Brasil à nacionalização do gás na Bolívia. Com razão, o fato foi grave e a sociedade deve estar atenta à política externa de seu país. A mídia, os políticos, boa parte do meio acadêmico de relações internacionais e mesmo diplomatas aposentados criticaram a resposta brasileira, tachando-a de fraca e que não foi à altura do acontecimento. Colocou-se, entre outros pontos, que o Brasil não poderia aceitar tal ato vindo de um país mais fraco e que, por isso, deveria impor sua superioridade. Para entendermos a resposta brasileira temos que analisar quais foram as razões que levaram a ela. A prioridade dada à América do Sul certamente deve figurar entre as respostas. Tal prioridade não advém de uma suposta afinidade ideológica da cúpula do governo, mas se encontra na diplomacia brasileira desde, pelo menos, Juscelino Kubitscheck e a sua principal iniciativa diplomática, a Operação Pan-Americana. A 6 Este conjunto de princípios que enfatiza o respeito ao direito internacional na ação exterior do Brasil, foi caracterizado como uma tradição grotiana na política externa brasileira. Ver Goffredo Júnior (2005). Para uma análise crítica da questão da continuidade, ver Lima (2000). 7 Desde o início de seu mandato, o presidente Lula perdoou as dívidas de Bolívia (US$ 52 milhões), Cabo Verde (US$ 2,7 milhões), Gabão (US$ 36 milhões), Moçambique (US$ 331 milhões, equivalentes a 95% da dívida deste país com o Brasil) e Nigéria (US$ 84 milhões), entre outros. Em si, esses países sustentam em comum a condição de estarem entre as nações com os menores índices de desenvolvimento mundiais 1 (Seitenfus et al. 2007, p. 15).

12 prioridade ao entorno geográfico é facilmente entendida por todas as questões diretas que envolve. Dado este objetivo, o Brasil visa a manter um diálogo franco e aberto com seus vizinhos. Isto exclui, obviamente, tratativas hostis para com estes. Assim, mesmo diante deste grave fato, a diplomacia brasileira buscou evitar os arroubos nacionalistas que inflamavam de todas as partes para buscar uma solução amistosa, negociada e que atenda a ambos, sem que com isso descuidasse dos interesses brasileiros. É nesse contexto que devemos situar o discurso diplomático brasileiro: não agir de maneira que pudesse piorar ainda mais a situação. Tanto que dias depois, em Viena, na Cúpula América Latina e Caribe-UE, após insinuar que a Petrobras agiria de maneira ilegal na Bolívia e chegar até mesmo a levantar a questão do Acre, dizendo que o Brasil o havia trocado por um cavalo, o presidente boliviano recuou destas declarações. Para isso, colaborou a reação firme do chanceler brasileiro que chegou mesmo a cogitar a hipótese de retirar o embaixador brasileiro de La Paz. Mas, além da resposta mais dura, como demandava a situação, o chanceler, oportunamente, destacou que tal atitude não ajudava em nada a situação. Ou seja, mostrou, pelas vias diplomáticas adequadas, que a vontade negociadora brasileira tem um limite e que o preço a ser pago pelas boas relações bilaterais não pode exceder às boas expectativas de ambas as partes. Com a mesma disposição negociadora e conciliatória, o chanceler visitou a Bolívia para negociar. E, dessa maneira, conseguiu negociar a retirada das tropas do exército das refinarias da Petrobras. A desnecessária utilização do exército boliviano foi uma das questões que mais tocou os brasileiros em todo o episódio. Após a visita do chanceler os canais negociadores estão abertos e desimpedidos. A diplomacia brasileira agiu certo ao optar pela visão de longo prazo e não responder com vistas a resultados imediatistas e eleitorais. Ambos os países precisam conduzir suas relações bilaterais sob a égide do diálogo diplomático. No mínimo, os interesses assim o determinam, dado toda a pauta de assuntos que envolve os dois países. Desde um grande volume de exportação de soja da Bolívia para o Brasil, passando por problemas mútuos de imigrantes ilegais, combate ao narcotráfico, até uma reforma agrária que poderá atingir brasileiros na Bolívia. Tudo isto demonstra o quão prudente é não tomar atitudes apressadas que possam colocar abaixo anos e anos de

13 esforços diplomáticos. Por isso, vejo a resposta brasileira como mais adequada do que costumam apontar. Se houve um erro por parte do Brasil e da Petrobras esse foi a não renegociação dos contratos após a eleição de Evo Morales. Este era um ponto que certamente seria levado a cabo pela nova administração. Recentemente dois presidentes caíram na Bolívia por estas questões e o assunto era pauta de todos os candidatos às eleições presidenciais. A única saída para estabilizar o país socialmente era rever os contratos. Algo, aliás, já estabelecido na lei de 2005 que aumentou de 18 para 32% o imposto pago pelas empresas de hidrocarboneto estrangeiras. Nenhuma empresa apresentou a sua proposta de renegociação. Ter sentado à mesa de negociação no início do governo Morales, certamente teria sido uma boa opção. Pelo menos melhor ao que assistimos no dia primeiro de maio. Ao invés disto, preferiu-se sentar e esperar. A atitude negociadora da diplomacia brasileira após a nacionalização do gás na Bolívia deve ser vista como expressão do discurso da prioridade dada à América do Sul e a visão de longo prazo que isto pressupõe. Em vista destas questões optou-se, a nosso ver corretamente, por uma "saída diplomática". No caso da nacionalização do gás na Bolívia, assim como nos dois casos citados, o Brasil teve uma atitude compatível com a boa cidadania internacional. O Princípio da não-indiferença O ministro Celso Amorim (2005, p. 8) afirma que em muitos dos casos, como os descritos acima, o governo Lula se move por uma solidariedade ativa: o princípio que costumo chamar de não-indiferença, a meu ver tão importante quanto o da nãointervenção. Ele explica o princípio: É muito importante que todos nós sejamos capazes de praticar a não-indiferença, isto é, um engajamento no auxílio sempre que solicitado, para a consolidação democrática dos países. Mas, ao mesmo tempo, também é importante nos abstermos de interferir em processos internos. É isso que tem guiado a política do Presidente Lula, baseada na integração, baseada na amizade, baseada na nãoindiferença, mas também na não-intevenção (Amorim, 2006, citado em Seitenfus et al. 2007, p. 19).

14 Se perguntarmos, o princípio da não-indiferença é um quadro conceitual seguro e claro a partir do qual podemos julgar e cobrar as ações da política externa brasileira? Parece prematuro responder afirmativamente. Ao fazerem uma análise do conceito Seitenfus et al destacam que por ser muito novo e por ainda carecer de uma institucionalização o princípio vem conformar e legitimar uma prática que já vem sendo adotada : O passo seguinte seria a institucionalização do Princípio. No entanto, a transformação da práxis em Direito deve levar em conta aspectos que definam sua abrangência e seus limites, para que assim, consiga-se delimitar critérios de operacionalização da Não- Indiferença, de modo que ela possa constituir-se em efetivo agente da solidariedade, e não apenas em mais uma bela roupagem para a ingerência dos mais fortes sobre os mais fracos. (...) Este Princípio dialoga para além do Estado, pois se dirige à Humanidade. Por ser jovem, carece de uma teorização e de uma prática que o torne geral e constante, para que se transforme em Direito. Se por um lado o conceito e a juridicidade da nãointervenção estão consolidados, há um longo caminho a ser trilhado até se consolidar como conceito e se tornar realidade o Princípio da Não-Indiferença (2007, p. 22). 8 No entanto, como se sabe, há os princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil: 8 Seitefus et al.(2007, p. 20-21) citam cinco feições do princípio da não-indiferença: 1. ORIGENS Tem suas origens no caráter diferenciado impresso pela Política Internacional do governo do Presidente Lula, e se coaduna com suas iniciativas e discursos no âmbito internacional, relativas à redução das desigualdades sociais; 2. ÂMBITO DE CONCEPÇÃO 3. ÂMBITO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO Está concebido dentro de uma cultura de solidariedade internacional e responsabilidades compartilhadas; Não está institucionalizado, aparecendo apenas nos discursos de agentes politicamente ativos, como o Presidente da República e o Ministro de Relações Exteriores do Brasil; 4. ÂMBITO DE ATUAÇÃO Atua de modo a orientar a atuação internacional do país. Até agora, se coaduna com a postura do governo frente aos perdões de dívida concedidos a países pobres, o reconhecimento de nacionalizações em países nos quais empresas brasileiras têm forte participação econômica, o envio de tropas brasileiras ao Haiti, etc; 5. OUTRAS INSPIRAÇÕES Está intimamente ligado a uma Teoria de co-responsabilidade, seguida por um forte apelo à solidariedade ativa dos países em desenvolvimento em relação àqueles menos desenvolvidos (Diplomacia Solidária). Inspira-se ainda na lógica do Direito Internacional do Desenvolvimento e de uma Nova Ordem Econômica Internacional, forjados nas décadas de 60 e 70, ambos calcados na busca de justiça social.

15 Desse modo, a política externa do Brasil em relação aos direitos humanos deve obedecer aos princípios fundamentais estabelecidos pela própria Constituição para a condução da política externa, com prevalência dos direitos humanos, além de obedecer aos tratados internacionais ligados aos direitos humanos, dos quais o Brasil é parte. Em suma, a política externa tem conteúdo, tem regras, é submetida ao direito e a princípios. Uma aproximação entre política externa e as políticas públicas domésticas levam à conclusão de que formulação e controle da política externa não são privativos do Poder Executivo (na figura do MRE), pois deve ser acompanhada efetivamente pelo Congresso Nacional, e também por atores não-estatais ligados à sociedade civil. Assim, institucionalmente, seu processo de formulação deve evoluir para ser participativo e mais democrático. Sobretudo em matéria de direitos humanos, a política externa não se desvincula da política doméstica, pois essa fronteira sofreu uma diluição, que conforme aponta Maria Regina Soares de Lima, pode ter efeitos democratizantes (...) em particular naqueles países cuja história política e a tradição constitucional têm concentrado o poder de decisão no âmbito do Executivo (PAPEDH, 2005; ênfase no original). Uma vez que mesmo tais princípios constitucionais estão sujeitos às interpretações, ênfases e preferências que cada governo, cabe a sociedade civil ao lado das instituições políticas dos Estados cobrarem para que as decisões tomadas pelo executivo esteja sempre sob escrutínio público. Considerações Finais O conceito de boa cidadania internacional busca analisar como os Estados lidam com a questão de conciliar suas responsabilidades nacionais, internacionais e humanitárias (Linklater e Suganami, 2006). O conceito, aplicado por autores próximos à Escola Inglesa, recusa a afirmação de que haja uma dicotomia irreconciliável entre essas responsabilidades. Conforme destacado por Hedley Bull (1995), os Estados devem agir de forma a fortalecer as instituições da sociedade internacionais. Bem como eles têm obrigações jurídicas com a humanidade destacadas em tratados de direitos humanos e no direito humanitário. A questão é quando acontecem situações em que a prioridade ao nacional é revindicada pelos governos por questões de necessidade (seja de natureza de segurança, comercial, etc). Nesses casos, o fardo da explicação e justificativa cabe ao governo. É necessário avaliar se os governos não estão exagerando suas reivindicações de segurança para fugirem de suas obrigações internacionais e humanitárias (Linklater e Suganami, 2006; Wheeler e Dunne, 2001). A guerra ao terrorismo baseada na doutrina

16 Bush de ataques preventivos tem proporcionado vários análises nesse sentido para os autores da Escola Inglesa (ver, Hurrell, 2002 e Wheeler, 2002). A política externa do governo Lula reivindica guiar-se, além dos tradicionais interesses nacionais, por uma perspectiva humanista (Silva, 2003). O engajamento e ativismo de sua política externa na área social mostrou-se ser a outra face de sua ênfase no combate à pobreza e à má distribuição de renda no plano doméstico. A ligação entre política externa e política doméstica nunca esteve tão forte quanto agora (Lima e Hirst, 2006, p. 40). O governo desenvolve mais na prática do que na teoria o que chama de não indiferença e por isso ainda não oferece um quadro seguro para a avaliação baseando-se nesse critério. Nem por isso deixa de agir com o que chama de solidariedade ativa quando é convidado a colaborar principalmente em questões de estabilização regional. O governo tenta dar um novo significado ético para suas ações no plano internacional. Apesar das sabidas cobranças e dificuldades que isso trás, tal tentativa pode acabar não sendo uma mudança negligenciável.

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