Rumos da física nuclear ALINKA LEPINE-SZILY

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Transcrição:

Rumos da física nuclear ALINKA LEPINE-SZILY

universo. No entanto os núcleos ocupam apenas um milhão milionésimo (10-12 ) do volume da matéria normal, o que nos mostra que eles têm uma densidade muito superior a qualquer densidade encontrada na vida cotidiana. A compreensão do ísica nuclear é o estudo do núcleo atômico. Esse estudo começou em 1896 quando Becquerel descobriu a radioatividade. Intensa atividade seguiu-se a essa descoberta, por Becquerel, Pierre e Marie Curie e outros. Um marco de fundamental importância foi a descoberta do núcleo universo depende claramente do estudo do núcleo atômico e de suas propriedades. No entanto devemos lembrar que a matéria diretamente observada constitui apenas uma fração na composição do universo, sendo que a matéria não observada diretamente, também chamada de matéria escura, e a energia escura estão em preponderância. atômico em 1911 por Ernest Rutherford ao bombardear uma fina folha de ouro com partículas alfa. Ele criou a imagem atraente do átomo como um sistema solar em miniatura com elétrons planetários orbitando em torno de um núcleo pequeno que contém praticamente toda a massa do sistema. ALINKA LEPINE-SZILY é professora do Instituto de Física da USP. Os núcleos atômicos são o cerne de toda matéria e comportam mais de 99% de toda a massa diretamente observada no

Para situarmos a direção em que caminha a física nuclear hoje é importante nos colocar na perspectiva da ciência do século passado. Podemos afirmar sem exagero que a física nuclear foi o campo dominante da ciência em boa parte do século XX. No fim do século XIX, quando muitos pensavam que na física tudo havia sido descoberto e explicado, os cientistas foram sacudidos pela descoberta da radioatividade e pouco tempo depois do núcleo atômico. A física que denominamos moderna nasceu do desejo de compreender e explicar esses novos fenômenos, exceções não explicadas pelas leis físicas bem estabelecidas do século XIX. A teoria quântica surgiu para descrever a física dos átomos e de seus núcleos. Na primeira metade do século XX o núcleo atômico era o veículo mais importante na elaboração das idéias da mecânica quântica. Nas décadas que se seguiram descobriuse que o núcleo era formado por outras partículas ainda menores, chamadas de núcleons, que são os prótons e os nêutrons. Os prótons têm carga elétrica positiva enquanto os nêutrons não possuem carga. O próton foi identificado como sendo o núcleo do átomo de hidrogênio, e o nêutron veio a ser descoberto somente em 1932 por Chadwick, Curie e Joliot. Cada próton carrega uma carga elétrica positiva, igual à carga de um elétron, apenas de sinal contrário. Como no núcleo só existem cargas positivas, a força eletromagnética existente no núcleo é repulsiva e causaria a ruptura do núcleo se não existisse uma outra força atrativa e mais intensa que a repulsiva. Essa força atrativa que mantém o núcleo atômico ligado é chamada de interação forte. Essa interação forte não pode ter um longo alcance, senão o núcleo de um átomo sentiria a atração de um núcleo do átomo vizinho e os núcleos se agrupariam, quebrando a estrutura atômica tão familiar que explica todas as propriedades químicas dos elementos. Na realidade, a força nuclear tem alcance muito curto, quase não passando além do próprio raio do núcleo, em flagrante contraste com as outras forças fundamentais da natureza até então conhecidas: a gravitacional e a eletromagnética. O estudo das propriedades dos núcleos FIGURA 1 A física nuclear hoje núcleos estáveis (menos de 300!!!) 126 Número de prótons 28 20 50 82 82 núcleos conhecidos TERRA INCÓGNITA (>5.000!!!) 8 2 2 8 28 20 Número de nêutrons Carta dos núcleos. Os pontos pretos correspondem a núcleos estáveis existentes na Terra. A região amarela em volta são núcleos instáveis já produzidos e observados em laboratório. A região verde, mais afastada, cuja fronteira não é conhecida, representa milhares de núcleos instáveis, jamais observados. 76 REVISTA USP, São Paulo, n.66, p. 74-79, junho/agosto 2005

atômicos mostrou um ordenamento seguindo números mágicos, semelhante ao ordenamento dos átomos verificado na tabela periódica. Esse ordenamento foi explicado pelo modelo de camadas, proposto por Maria Goeppert- Mayer, em que os núcleons se movimentam como partículas quase independentes num poço de potencial criado pelo conjunto de núcleons, e seu movimento é descrito pelas leis da mecânica quântica. Nos anos de 1970, depois do trabalho importante de Aage Bohr a Ben Mottelson, unificando os modelos nucleares existentes, acreditou-se que as propriedades globais e a estrutura dos núcleos podiam ser totalmente compreendidas numa aproximação de campo médio. No entanto, nas décadas seguintes, tanto as novas observações experimentais como desenvolvimentos teóricos mostraram que a descrição do núcleo não pode ser reduzida à soma de propriedades de seus constituintes, correlações fortes e simetrias decorrentes de princípios estruturais terão que ser levadas em conta. Por outro lado o modelo padrão foi elaborado também nessa época (1970), e os núcleons deixaram de ser os blocos elementares constituintes da matéria, sendo formados por quarks que interagem através da troca de glúons. No entanto, a descrição dos núcleos em termos de quarks e glúons está longe de ser alcançada. Felizmente as propriedades dos núcleos podem ser tratadas, dependendo do fenômeno a ser estudado em diferentes graus de complexidade: desde quarks-glúons ou bárions e mésons ou prótons e nêutrons ou até agregados nucleares. Muitas dessas descrições bem como as pontes entre elas ainda estão em construção. A carta dos núcleos, apresentada na Figura 1, é um gráfico de todos os núcleos estáveis e instáveis versus seus números de prótons a nêutrons. Os núcleos estáveis (pontos pretos) existem naturalmente na Terra e, na figura, formam o vale diagonal de estabilidade que atravessa a figura e termina acima do chumbo (Z = 82, N = 126). O número deles é menor do que 300. Aproximadamente 2.000 núcleos instáveis já foram sintetizados em laboratórios (região amarela) e a previsão de teorias é da existência de cerca de 7.000 núcleos instáveis ou radioativos que nunca foram observados (região verde). Eles têm vidas médias cada vez mais curtas à medida que nos afastamos do vale e nos aproximamos das linhas, chamadas de drip-line, onde os nêutrons e prótons extras não são mais ligados e se separam espontaneamente (dripoff) do núcleo. Todos os núcleos, estáveis e instáveis, contribuem à compreensão dos sistemas nucleares e são envolvidos nos processos astrofísicos. A compreensão da história do universo desde o big-bang inicial, que ocorreu bilhões de anos atrás, envolve a física nuclear que deu origem à astrofísica nuclear e tem fortes implicações na cosmologia moderna. Os elementos mais leves, como hidrogênio, hélio e lítio foram criados no big-bang, enquanto os elementos mais pesados surgiram de processos ligados ao nascimento, vida e morte das estrelas. O ferro é o elemento cujo núcleo atômico é o mais estável, mais ligado, e todos os elementos com núcleos mais pesados que o ferro devem ter sido formados em explosões de supernovas (de estrelas com massas pelo menos quatro vezes a massa de nosso Sol). A compreensão detalhada desses processos permanece um desafio moderno para a física nuclear, pois exige o conhecimento das propriedades de todos os núcleos envolvidos (massa, decaimento) e de suas reações a baixas energias. O acesso à intensa energia que mantém os núcleos ligados (energia de ligação) resultou em desenvolvimentos dramáticos na Segunda Guerra Mundial. Ao observarmos a carta de núcleos na Figura 1, podemos entender que os núcleos estáveis terminam no chumbo, porque a repulsão elétrica dos prótons torna o núcleo menos estável, reduz a energia de ligação total. Resulta disso que a fissão dos núcleos mais pesados torna-se possível com a quebra de um núcleo pesado em dois ou mais núcleos mais leves, com a liberação de grande quantidade de energia. A descoberta da fissão em 1939 rapidamente conduziu à construção de armas nucleares, e o domínio da física nuclear tomou características fortemente políticas, ao mesmo tempo em que as questões científicas da REVISTA USP, São Paulo, n.66, p. 74-79, junho/agosto 2005 77

área fizeram da física nuclear a rainha das ciências. Felizmente, a energia nuclear também pode ser usada para fins pacíficos, como a geração de eletricidade. A procura por fontes de energia limpas, usando processos nucleares de fissão ou fusão nuclear, também constitui um desafio contínuo da área de física nuclear. Com as evidências de aquecimento global e do fim próximo das reservas de petróleo, a disponibilidade de fontes de energia limpa é de importância fundamental para a humanidade. Na segunda metade do século XX, um grande número de outras áreas importantes da ciência, como física de partículas elementares, física da matéria condensada, microeletrônica, microbiologia, etc., foi ganhando destaque e rapidamente alcançou seu próprio domínio e papel central na ciência. Por sua vez, a física de partículas elementares e a física de matéria condensada deram origem a aplicações como tecnologia da informação e nanotecnologia que, devido à importância crescente das ciências aplicadas, vêm ocupando as páginas dos jornais diariamente. A física nuclear pode ter perdido sua posição privilegiada no centro das ciências, mas permanece cheia de idéias novas que permitem levá-la para o século XXI. O surgimento, na segunda metade do século XX, da física de partículas elementares como uma disciplina separada teve forte impacto sobre a física nuclear. Os blocos elementares dos quais a matéria é constituída não são mais os prótons, nêutrons e elétrons, mas, segundo o modelo padrão, os quarks e os léptons. Ainda por cima, a interação forte que mantém os núcleos ligados não é a força nuclear entre os prótons e nêutrons, mas, pela cromodinâmica quântica (QCD), é devida à troca de glúons entre os quarks. A física nuclear agora se refere a sistemas quânticos complexos, incluindo hádrons, núcleos atômicos e estrelas colapsadas, todos constituídos de quarks. A matéria comum consiste somente de dois tipos de quarks mais leves, os chamados up e down quarks, com talvez alguma participação de quarks estranhos na forma de pares quarkantiquark. Os quarks descritos pela QCD podem ter uma propriedade chamada de cor. Aparentemente na natureza só existem sistemas de quarks sem cor, os núcleons, formados por três quarks sem cor, e os mésons, formados por par quark-antiquark, também sem cor. A procura por sistemas com cinco ou seis quarks, que em princípio também poderiam existir, é intensa. A física nuclear hoje tem uma forte ligação com a física de partículas e com a astrofísica nuclear. Ela se move em novas direções para uma compreensão mais fundamental das formas mais densas da matéria que existiram nos primeiros instantes depois do nascimento do universo no big-bang, através da procura do plasma de quarks e glúons, do estudo da abundância de elementos leves, de modelos para a produção dos elementos mais pesados, da equação de estado da matéria nuclear. Esses problemas abertos interessam e são atacados tanto pela física nuclear como pela física de partículas e astrofísica. Matéria nuclear densa pode ter formas extremas como estrelas de nêutrons ou estrelas formadas por quarks estranhos. A física nuclear e a física de partículas são complementares, com experiências de alta precisão da física nuclear procurando por pequenos desvios do modelo padrão, e a física de partículas procurando por novas partículas ainda jamais vistas. Nosso conhecimento da carta de núcleos se restringe a um número relativamente pequeno de núcleos, os estáveis e os quase-estáveis. Existe uma enorme quantidade de núcleos instáveis que jamais foram observados. Os núcleos com grande excesso de prótons ou nêutrons, que se localizam perto das drip-lines, também são chamados de exóticos. Como exemplo, já foram observados isótopos do elemento carbono, com seis prótons e o número de nêutrons chegando a 16; este isótopo chamado 22 C tem meia-vida de 6,2 milissegundos. Várias das verdades básicas sobre núcleos não são obedecidas no caso dos exóticos: uma dessas verdades era a constância da densidade nuclear. Um exemplo da violação dessa verdade é o isótopo mais pesado do lítio, o núcleo 11 Li, com três prótons e oito nêutrons, que tem um caroço central com densidade nuclear normal, contendo três prótons e seis 78 REVISTA USP, São Paulo, n.66, p. 74-79, junho/agosto 2005

nêutrons e uma nuvem de dois nêutrons orbitando em volta do caroço com uma extensão tão grande que o tamanho do 11 Li se assemelha ao tamanho do núcleo 208 Pb. Além do 11 Li já foram observados outros núcleos com halo de nêutrons ( 6 He, 8 He, 12 Be, 14 Be, 19 C, etc.) e mais recentemente também com halo de prótons ( 8 B, 17 Ne). Outra verdade básica que precisa ser mudada quando se aproxima da drip-line é a existência de números mágicos, ou o valor desses números mágicos: eles dependem do número de nêutrons ou prótons. A própria posição da drip-line de nêutrons é desconhecida. Diferentes modelos nucleares prevêem localizações muito diferentes, mas todos os modelos subestimam, de longe, o número de núcleos ligados. O estudo das propriedades desses núcleos é importante para a física nuclear, pois constitui testes severos para os modelos existentes, elaborados sobre os núcleos estáveis. No entanto, sua importância transcende de longe o próprio campo da física nuclear, sendo essencial para a astrofísica nuclear. Esses núcleos não existem na Terra devido a suas vidas médias curtas, mas podem ser produzidos de forma contínua nas estrelas e nas explosões de supernovas, tendo um papel importante nas reações de captura que são responsáveis pela síntese dos elementos no universo. Por exemplo, a captura lenta de nêutrons ao longo do vale de estabilidade, que ocorre nas estrelas, explica somente metade da abundância de elementos pesados observados no universo. A outra metade deve provir da captura rápida de nêutrons que ocorre longe do vale de estabilidade, envolvendo núcleos instáveis, ricos em nêutrons, nas explosões de supernovas. Qualquer cálculo confiável de abundância de elementos pesados vai necessitar das taxas de captura e das propriedades desses núcleos ricos em nêutrons, que muitas vezes nunca foram observados ou medidos na Terra. A existência de halo também poderia afetar a probabilidade de captura ou de fusão, como foi discutido em recente artigo na Nature. Um novo campo muito promissor da física nuclear é o estudo desses núcleos fora do vale de estabilidade. As oportunidades de pesquisa abertas pela possibilidade de se obter feixes de núcleos instáveis são, atualmente, um dos aspectos mais excitantes da física nuclear. Com a utilização de um acelerador de partículas aceleram-se núcleos estáveis a velocidades altíssimas, produzindo um feixe intenso (10 12-10 15 p/s) que incide sobre um alvo convenientemente escolhido para produzir os núcleos instáveis de interesse através de reações nucleares de fragmentação, transferência, fusão ou fissão. É possível produzir feixes de núcleos instáveis por esses núcleos terem meias-vidas suficientemente longas (minutos, segundos ou milissegundos) para produzi-los numa reação nuclear e depois focalizá-los e usá-los como feixe secundário, ou para estudar suas características ou até para produzir outras reações nucleares secundárias. Há dezenas de laboratórios importantes no mundo nos quais a principal atividade é a produção de feixes instáveis e o estudo de suas propriedades. O Brasil também ingressou no seleto clube de países que produzem feixes radioativos com a instalação do sistema de duplo solenóide supercondutor Ribras (Radioactive Ion Beams Brasil), no Laboratório Aberto de Física Nuclear do Acelerador Pelletron da Universidade de São Paulo, a primeira facilidade experimental do Hemisfério Sul a dispor de feixes secundários radioativos. Os solenóides são grandes eletroímãs supercondutores que separam e refocalizam os núcleos instáveis, produzidos por reações nucleares de transferência de núcleons pelos núcleos estáveis (feixe primário) de alta velocidade, acelerados pelo Acelerador Pelletron. O Ribras produz feixes de núcleos radioativos leves como 6 He, 7 Be, 8 Li, etc. de baixa energia, características muito interessantes para estudar problemas de astrofísica nuclear. Com feixes de baixa energia também estamos em condições muito favoráveis para estudar reações periféricas sensíveis a fenômenos anômalos como halo, fusão de núcleos halo em energias abaixo da barreira coulombiana. O Ribras conta com financiamento da Fapesp e está em funcionamento desde fevereiro de 2004. REVISTA USP, São Paulo, n.66, p. 74-79, junho/agosto 2005 79