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Transcrição:

ESTUDO SOBRE A FAMÍLIA ESCRAVA EM VITÓRIA/ES, 1800-1830 Patrícia Maria da Silva Merlo i A presente pesquisa se inscreve no debate historiográfico voltado para a análise das relações familiares entre cativos. Partindo da tese da existência de relações parentais, do tipo familiar, entre escravos no Brasil do século dezenove, nosso propósito principal é caracterizar os tipos de arranjos familiares estabelecidos no seio da comunidade cativa, no período que se estende de 1800 a 1830, na região abrangida pela capital da Província do Espírito Santo. Sem dúvida, a escravidão estudada nesta região, que se distingue por não se situar entre as grandes regiões agro-exportadoras, apresenta-se como uma excelente oportunidade não só para verificar a existência das famílias escravas, não apenas nas plantations, mas também nas pequenas propriedades e nos diversos grupos compostos por escravos especializados ou dedicados à prestação de serviços urbanos, como também para discutir as teses sobre as relações parentais estabelecidas entre escravos. Com tais propósitos, partimos da premissa inversa à afirmativa de Maria Beatriz Nizza da Silva quando assevera que a constituição de famílias escravas é própria do mundo rural, onde grandes plantéis povoavam as fazendas e engenhos. ii Abandonando a análise pautada nas plantations, identificamos, no universo urbano e em suas cercanias, a existência de redes de solidariedade que pontuavam o cotidiano das relações escravistas em Vitória, em que a família teria funcionado como um catalisador, seja de afeto, de resistência ou de construção de projetos liberdade. Com tal objetivo, interessou-nos verificar as conseqüências da constituição de pequenas escravarias, como as levantadas em Vitória, sobre os arranjos familiares de cativos. Afinal, sendo Vitória um local de pequenas e médias escravarias, a hipótese que associa uma maior presença de famílias cativas ao tamanho das escravarias, lançaria dúvidas sobre a existência de um significativo número de famílias de cativos na região que estamos estudando. Entretanto, a análise dos documentos apresenta dados que exibem arranjos familiares sólidos, reconhecidos legalmente e expressivos numericamente. 1

Para viabilização dessa pesquisa, além de relatos de viajantes e da documentação produzida pela burocracia, em especial, cartas dos Governadores, utilizamos uma base documental composta, sobretudo, por inventários post-mortem e testamentos anexos. Cabe considerar que tais inventários, feitos pela Justiça, têm a função de apresentar a descrição detalhada do patrimônio da pessoa falecida, para que se possa proceder à partilha dos bens. Logo, esses documentos são feitos para aqueles que tiveram algo a deixar. Analisamos a totalidade de processos de inventários abertos e testamentos anexos, referentes à Vitória, ao longo das primeiras três décadas do século XIX. No total, foram pesquisados 170 inventários e 5.760 testamentos anexos, onde encontramos 1.367 cativos. Sobre eles, as informações mais comuns contidas nos inventários são: nome, idade, preço de compra e procedência, além de referência aos laços parentais mais evidentes. Graças aos testamentos, foi possível ampliar este leque de informações acerca dos cativos, possibilitando esclarecer compras e doações de alforrias, relações de proximidade entre senhores e escravos, falecimento de cativos, entre outras informações. Uma primeira característica em relação à Vitória a ser destacada é baixa a presença de africanos na composição de suas escravarias. O grupo de procedência africana predominante é o angola, o que aponta como rota principal que alimenta o mercado cativo em Vitória, a do Rio de Janeiro. Como destacou Karasch iii, a praça mercantil carioca recebia a maior parte de seus escravos do Centro-Oeste africano. Essa região era normalmente dividida em três regiões principais: Congo Norte (Cabinda), Angola e Benguela. As ligações entre o Rio de Janeiro, Angola e Benguela datam do século XVII iv, ao longo dos séculos seguintes tais relações só cresceram, no século XIX, os escravos oriundos dessas regiões já respondiam pela maior porcentagem dos aportados no Rio de Janeiro. v Vitória reproduz, em escala local, as características do Rio, no que tange aos grupos africanos predominantes na composição das escravarias. Quatro grupos respondem por quase todos os cativos arrolados: crioulos 56,8%, não-africanos 22,2%, angolas 14,3% e benguelas 3,4%. Agrupados de outra forma, os africanos representam 21%, ao passo que crioulos 79%. 2

Visto dessa maneira, o que realmente chama a atenção em relação aos cativos de Vitória, é o fato da maioria deles serem nascidos no Brasil vi e não na África. Essa peculiaridade fica ainda mais evidente se comparada com o próprio Rio de Janeiro, principal fornecedor de tais mercadorias para Vitória, onde, segundo Karasch, em 1832, os escravos de origem africana representavam 73,3%, ao passo que os de origem brasileira 9,8% na composição das escravarias da cidade carioca vii. Para nós a alta representatividade de crioulos pode ser interpretada como indício de que estamos frente a escravarias já antigas, onde teria ocorrido uma paulatina renovação de mão-de-obra via natalidade, apesar do ingresso de recém-chegados pelo tráfico. Nessas escravarias, a tendência parece ter sido a substituição da lógica demográfica baseada no desequilíbrio entre sexos, com maioria de homens adultos, pela lógica demográfica da família escrava, o que teria resultado num quase equilíbrio entre os sexos, ocasionado, em parte, pelos nascimentos no interior das propriedades viii. Estudos recentes têm demonstrado que os engenhos mais antigos apresentavam um menor desequilíbrio entre sexos e uma proporção expressiva de crianças, indicando a simpatia dos senhores com a reposição de parte da mão de obra pela natalidade. ix Um claro exemplo nessa perspectiva é a escravaria do Reverendo Torquato Martins de Araújo. O inventário aberto no dia 21 de fevereiro de 1827, apresenta um total de 129 escravos, dos quais apenas 11,6% angolas. Do total de cativos 106 são aparentados. Esses 106 aparentados compõem 23 famílias nucleares. Surpreendentemente 65 deles (61%) são filhos de 22 cativas. Trata-se de uma taxa de fecundidade de 3,0%, razoável considerando as condições de vida dentro do cativeiro. Soma-se a esses dados o fato de que quase a metade da escravaria (49,6%) era composta por nascidos dentro do cativeiro onde viviam. Essa informação indica a reposição de mão-de-obra por meio do nascimento, confirmando o crescimento natural como alternativa possível. A taxa de fecundidade das escravas do Reverendo Torquato, apesar de um pouco maior, está em consonância com as verificadas, de maneira geral, nas escravarias inventariadas. Dos 611 cativos menores de 14 anos, arrolados nos inventários, ao longo de 3

todo o período, 387 são filhos de escravas nascidos no cativeiro. Essas crianças, fruto de uniões entre cativos, representam 28,3% do total de escravos inventariados em Vitória. São filhos de 149 mães cativas, unidas por diferentes arranjos familiares, e indicam uma taxa de fecundidade de 2,6%. Com o objetivo de melhor esclarecer tais dados, vejamos a caracterização da propriedade citada. Apesar de possuir engenhos de cana e algodão, a propriedade do Reverendo Torquato é bastante diversificada, há trapiches, lojas, depósitos e escravos especializados. Nem todo trabalho demandado carecia de braços jovens ou masculinos, como o eito. Muitas mulheres (63,5%) eram empregadas na tecelagem do fio de algodão, onde poderiam inclusive trabalhar com seus filhos por perto, outras em trabalhos domésticos. Parte significativa dos escravos em idade entre 14 e 40 anos trabalhava nas fazendas. 17 deles eram homens com ofício e prestavam serviços na Vila, de casa em casa, nas lojas ou depósitos. Inclusive, oito desses escravos especializados eram filhos que haviam aprendido o ofício com seus pais, outros três cativos com especializados em vias de comprar suas alforrias, tinham como condição no testamento treinar, cada um, dois outros escravos para que então gozassem sua liberdade. A idade dos filhos, varia entre 0 e 25 anos, com a maior concentração na faixa de 0-14 anos. Há na fonte indícios de que a maior parte das crianças seja constituída por netos de africanos nascidos no cativeiro. Um indicativo concreto é que entre as cinco angolas com mais de 50 anos, três são avós e convivem com seus filhos e netos. Um exemplo dessa convivência é o da família que tem por matriarca Maria Angola. Ela tem 70 anos e seu filho, o crioulo Gonçalo, é um carpinteiro de 42 anos, casado com Juliana, também crioula, de 35 anos, pais de Bruno, 18 anos, Agostinho, 17 anos, ambos carpinteiros como o pai, além de Venâncio de 8 anos e Ingrácia de 6. Um arranjo nuclear pautado na convivência inter-geracional no mesmo cativeiro. A descrição não deixa dúvida quanto à estabilidade da relação familiar. Gonçalo conviveu com sua mãe por toda a vida. A partir do casamento com Juliana, uma união de pelo menos 18 anos, Gonçalo e sua família passaram a viver juntos numa das casas cobertas de palha, num dos engenhos do 4

Reverendo, localizado em Maruípe, alguns quilômetros do núcleo urbano principal. Maria Angola, não apenas viu seu filho crescer, como também seus quatro netos, com oportunidade de dar continuidade à memória de seus ancestrais, ensinando ritos, histórias e recordações: O transporte para o Novo Mundo destruiu as unidades familiares e separou as pessoas do mesmo grupo étnico,[...] mas não destruiu a consciência de uma identificação com base na etnia e nos grupos de parentesco e família, ou em parentesco fictício, criado entre os companheiros de embarcação (malungos) nos navios negreiros. Eram esta consciência e esta memória coletiva que possibilitavam que as pessoas de descendência africana reconstituíssem sua identidade através da família e da etnicidade no Brasil, provendo um amortecedor contra os cruéis aspectos da instituição escravista. 1 Há que se destacar ainda que a despeito das dificuldades criadas pela escravidão à constituição de famílias, tanto africanos quanto crioulos, investiram grande esforço na construção desses laços. As relações familiares por afinidade ou consangüinidade eram fatores constitutivos da vida cotidiana dos cativos, informando mais que o pertencimento a um grupo, as mediações e alianças que refletiam na construção de identidades coletivas. Certamente a natureza e a composição do lar cativo dependeu da especificidade regional e temporal. No entanto, dentro das possibilidades cotidianas, a família cativa guardava sua antiga função de organizadora da auto-identidade e dos valores compartilhados. Outro aspecto relevante da escravidão em Vitória diz respeito à alta concentração feminina nas escravarias. Vale lembrar que o meio urbano se caracterizava pela propriedade escrava reduzida. Uma vez que o espaço físico limitado, demandava um número menor de trabalhadores e uma rede de serviços diferenciados daqueles do meio agrário, nos quais as mulheres teriam papel de destaque. Desde tarefas domésticas comuns, como a limpeza e arrumação da casa, a lavagem e a engoma de roupas, a venda de quitutes eram tarefas predominantemente femininas. Soma-se a essas tarefas, uma característica importante da economia de Vitória: a tecelagem de fios e tecidos de algodão. Como dissemos inicialmente a posse de cativos em Vitória, se caracterizou pelas pequenas e médias escravarias, padrão comum às propriedades urbanas, onde o espaço 1 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Através de um prisma africano: uma nova abordagem ao estudo da diáspora africana no Brasil colonial. In: Revista Tempo. Nº 12, Rio de Janeiro: Sette Letras, 2002, p.26. 5

limitado e as necessidades diferentes impunham um menor número de trabalhadores. Cabe agora verificar as conseqüências da pulverização da posse de cativos em seus arranjos familiares, para que se possa confirmar ou não a hipótese de que as famílias cativas são mais comuns nas grandes escravarias x, onde haveria um maior número de oportunidades para a formação de arranjos familiares, graças a um maior equilíbrio entre sexos. Vale destacar que apesar do incremento do tráfico a partir de 1808, em Vitória a tônica foi um relativo equilíbrio entre os sexos no interior das propriedades cativas, o que facilitaria a formação de núcleos familiares. Ao longo dos três períodos o índice geral de aparentados praticamente dobrou de tamanho passando de 22,1% para 41,2%. Esses dados confirmam, primeiramente, que estamos frente a escravarias antigas, onde a lógica da família escrava já estava consolidada. Parecem sugerir também, que em Vitória a aproximação do suposto fim do tráfico em 1830 desencadeou uma procura geral por mulheres, visando dessa forma à reposição natural de mão-de-obra cativa, o que teria implicado no relativo equilíbrio entre os sexos. Foi possível observar uma forte concentração de escravos aparentados nas propriedades com vinte ou mais cativos, oscilando entre 30,5% e 58,6%. Para Florentino & Góes, essa concentração dos laços de família dentro das grandes escravarias constitui mais uma indicação da relação diretamente proporcional entre o tamanho da propriedade e o parentesco, tendo este último como sentido fundamental o estabelecimento da paz. xi Nossos dados parecem fortalecer esta hipótese. De fato, foi no interior das maiores escravarias que localizamos o maior número de famílias nucleares, 75%. Esse dado parece confirmar que é no interior dessas propriedades que se encontram o maior número de oportunidades de escolhas de parceiros, além de condições mais favoráveis a sobrevivência dos arranjos familiares temporalmente, 54% delas estão unidas há mais de 10 anos. Contudo, gostaríamos de chamar atenção sobre o número significativo de cativos aparentados nas pequenas e médias escravarias. Nelas entre 12% e 37% dos escravos possuem algum tipo de parentesco de primeiro grau. 6

Cabe considerar que, se por um lado às escravarias com mais de 20 cativos respondem por 75% dos arranjos nucleares, as pequenas e médias respondem por 66,7% dos arranjos formados por mãe e filhos. Esses dados parecem indicar a importância feminina na composição das famílias, reforçando a hipótese de Hebe M. Mattos de que é sobre a mulher cativa e seus filhos crioulos (nascidos no Brasil) que se constrói a possibilidade da família escrava. xii É preciso lembrar que, como o escravo era um bem valioso, sua venda, no momento da partilha, era quase inevitável, ao menos entre os mais pobres. Entre estes parece ter sido comum a compra de um casal de escravos para contar com seus filhos num futuro próximo, talvez a venda masculina em separado, seja uma das razões para a forte presença de arranjos matrifocais no interior das pequenas e médias escravarias. A paz, fruto dos laços de parentesco cativo, postulada por Florentino e Góes parece ter sido fundamental também nas menores escravarias. É possível que a família escrava resultasse em algum tipo de renda política para senhores, mas, nos parece, que ela resultava muito mais em melhora nas condições de sobrevivência de seus membros dentro do cativeiro, sendo, antes de tudo, fruto da atuação dos escravos na busca pela construção de espaços de autonomia e de identidade social. Portanto, a existência de arranjos familiares entre cativos, parece indicar que apesar de terem o controle institucionalizado, muitas vezes os senhores fizerem concessões a seus escravos, para garantir assim a preservação de sua propriedade e de sua economia. Entendida dessa maneira, a família escrava surgiria então, como objeto de poder. Para o escravo, ela poderia significar o aumento do raio social das alianças políticas e, assim, de solidariedade e proteção, para o que se contava inclusive com ex-escravos, escravos pertencentes a outros senhores e, em casos eventuais, com alguns proprietários. xiii i Mestre em História pela UFF, doutoranda em História Social pela UFRJ, professora da Faculdade Novo Milênio (Vila Velha-ES). ii SILVA, M. B. N. da. História da família no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p.189. 7

iii KARASCH,M. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Cia das Letras, 2000, p.50. iv Cf.PANTOJA, S e SARAIVA, J.F.S. (Orgs.). Angola e Brasil nas Rotas do Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. v KARASCH, 2000, p.58. vi Não queremos com isto afirmar que tais escravos tivessem nascidos todos em Vitória, provavelmente, muitos eram oriundos do mercado interno, porém nossas fontes não autorizam maiores incursões neste sentido. vii KARASCH, 2000, p.42. viii Cf. MATTOS, H.M. Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista. Brasil, séc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. ix Ver FARIA, S. de C. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 294. x Cf. FLORENTINO, M. & GÓES, J. R. A paz das senzalas. Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790- c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997 e Robert W. Slenes Na senzala uma flor. Esperanças e recordações na formação da família escrava, Sudeste, séc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. xi FLORENTINO & GÓES, 1997, p.95. xii MATTOS (de CASTRO), Hebe Maria. Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista. Brasil, séc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p.126. xiii FLORENTINO & GÓES, 1997, p.60. 8