IX - Icterícia no Período Neonatal



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Página 1 de 7 IX - Icterícia no Período Neonatal De Sauro Bagnaresi Jr. Adaptado por Adriana Cartafina Perez Bóscollo INTRODUÇÃO Icterícia é a evidência do acúmulo de bilirrubina nos tecidos do organismo, caracterizada ao exame físico por coloração amarelada da pele, mucosas e escleras (figura 1 - Icterícia ao exame físico) e pela presença de urina escura (colúria) e fezes esbranquiçadas (acolia fecal). A bilirrubina é um pigmento avermelhado originado pelo metabolismo das porfirinas no fígado, particularmente da hemoglobina. O aumento de bilirrubina no sangue ou hiperbilirrubinemia só leva ao reconhecimento clínico da icterícia quando atinge níveis superiores a 3,0mg/dl; o valor normal da bilirrubinemia total varia de 0,2 a 1,2mg/dl. METABOLISMO DA BILIRRUBINA E SAIS BILIARES NO PERÍODO NEONATAL A bilirrubina deriva principalmente da desintegração da hemoglobina. Ela se liga à albumina após sua liberação para o plasma, sendo insolúvel em água nessa fase. Ela se torna hidrossolúvel após a captação e a conjugação pelos hepatócitos. Nos hepatócitos ela é conjugada aos glucuronídios (glucuronil-transferase) ou dissacarídios. A conjugação é mediada enzimaticamente e cada etapa permite a detecção de distúrbios metabólicos congênitos ou adquiridos. Após esse processo ela pode ser eliminada para a bile. A bife é uma solução constituída de ácidos biliares, fosfolipídios, colesterol e bilirrubina. A secreção da bile se inicia no colangíolo através do transporte ativo de ânions orgânicos. O fluxo biliar é diretamente proporcional à excreção de ácidos biliares, que são sintetizados pelo fígado a partir do colesterol, que é hidroxilado pela mediação da enzima 7-a-hidroxilase, formando os ácidos biliares primários (cólico e quenodesoxicólico). Graças ao contato com as bactérias do intestino grosso esses ácidos são convertidos em ácidos biliares secundários (desoxicólico e litocólico) ou conjugados no fígado com os aminoácidos glicina e taurina, originando os sais biliares. A síntese hepática é contínua, sendo mediada pelo retorno dos ácidos biliares através do ciclo êntero-hepático, principalmente o cólico, desoxicólico e quenodesoxicólico. Os mecanismos de fluxo biliar colangiolar são: - transporte osmótico de ácidos biliares hepatofugal, que gera passagem de água e eletrólitos; - bomba de sódio hepatofugal; - secreção de bicarbonato e doreto de sódio pelos colangiolos, com reabsorção de outros eletrólitos, mediada pela secretina. O metabolismo fetal da bilirrubina é diferente do adulto: a imaturidade do primeiro é mais grave quando há prematuridade e baixo peso; por outro lado a proporção entre ácidos biliares séricos e fecais é muito maior no recémnascido do que em crianças maiores, indicando uma incompetência relativa no período neonatal, que é quantitativa e qualitativa, já que os ácidos biliares encontrados no mecônio do recém-nascido são primários, secundários e atípicos, enquanto que em crianças maiores são, principalmente secundários. Essa imaturidade atinge as fases de captação, conjugação e excreção; enzimas como a 7-a-hidroxilase são praticamente ausentes ao nascimento, só aparecendo a partir da segunda semana de vida. Por outro lado, a oferta de hemoglobina a ser destruída aumenta devido à transformação da hemoglobina F em hemoglobina A; além da incompetência de metabolização há um excesso de oferta

de substrato, o que caracteriza a propensão colestática neonatal. Página 2 de 7 Considera-se como período neonatal o primeiro mês de vida, entretanto admite-se a expressão icterícia neonatal como sendo aquela que acomete a criança nos primeiros quatro meses de vida. Atualmente, a expressão icterícia neonatal tem sido substituida por colestase neonatal que significa literalmente estagnação da bile, independentemente do local da obstrução ou da etiologia determinante. O aumento de bilirrubina conjugada (ou direta) no sangue ocorre infreqüentemente na infância e é sempre patológica, sendo significantes as dosagens maiores de 1,5mg/dl.Quatro mecanismos teóricos poderiam explicar esse fenômeno: - alteração no transporte intracelular de bilirrubina conjugada até a membrana do hepatócito; - alteração do transporte ativo da bilirrubina conjugada até os colangíolos menores (anomalias da membrana celular); - anomalias dos dutos biliares intra-hepáticos; - obstruções dos dutos biliares extra-hepáticos. Adicionalmente a ocorrência de colestase intra-hepática pode ser devida aos seguintes fatos: - alteração da síntese de ácidos biliares, seja em quantidade ou qualidade; - disfunção dos microfilamentos contráteis dos hepatócitos. CLASSIFICAÇÃO DAS ICTERÍCIAS A grande diversidade das causas de icterícia dificulta sua classificação, assim apresentaremos uma sistemática que integra conceitos anatômicos, bioquímicas e etiológicos para as icterícias: 1. hiperbilirrubinemia com predominância de bilirrubina não-conjugada (indireta): 1.1. pré-hepática:. aumento de produção de bilirrubina (anemias hemolíticas). 1.2. hepática:. deficiência de captação e armazenamento de bilirrubina (síndrome de Gilbert, pós-hepatite, reações a drogas);. deficiência de atividade da glucuronil-transferase (síndrome de Gilbert, síndrome de Crigler-Najjar);. deficiência de conjugação e excreção (icterícia fisiológica do recém-nascido). 2. hiperbilirrubinemia com predominância de bilirrubina conjugada (direta): 2.1. hepática ou intra-hepática: 2.1.1. anatômica:. rarefação de dutos biliares intra-hepáticos (Alagille-sindrômica e não-sindrômica);. dilatação focal de dutos biliares intra-hepáticos (Caroli). 2.1.2. infecciosa:

. protozoários (toxoplasmose, tripanossomíase); Página 3 de 7. bacteriana (sífilis, listeriose, leptospirose, tuberculose);. clamídias;. viral (adenovírus, citomegalovírus, Coxsackievírus, echovírus, hepatite A, B, C, ò; herpes simples, HIV reovírus tipo 3, rubéola, varicela zoster). 2.1.3. metabólica: - alterações da síntese de ácidos biliares, seja em quantidade ou qualidade;. aminoácidos (tirosinemia, hipermetionemia);. lipídios (Gaucher, Niemann-Pick, Wolman, doença do armazenamento do colesterol);. glicídios (galactosemia, glicogenose tipo IV intolerância à frutose);. metais (Wilson, Menkes, hemocromatose, porfiria, doença do armazenamento do ferro);. ácidos biliares (acidemia tetra-hidroxicolânica, acidemia tri-hidroxicoprostânica);. endócrinas (diabetes insipidus, hipopituitarismo idiopático, hipoparatireoidismo, hipotireoidismo, insuficiência adrenal neonatal);. outras (deficiência de a-1-antitripsina, histiocitose X, mucoviscidose, reticulose eritrofagocítica familiar, deficiência dos peroxissomos - Zellweger, síndrome de Dubin-Johnson, síndrome de Rotor). 2.1.4. tóxica:. nutrição parenteral prolongada (NPP);. medicamentosa. 2.1.5. hemolítica:. drepanocitose;. esferocitose. 2.1.6. neoplásica (tumores hepáticos). 2.1.7. genética:. trissomia do cromossomo 18;. trissomia do cromossomo 21 (Down);. artrogripose congênita múltipla. 2.1.8. familiar:. colestase benigna recorrente;. colestase familiar progressiva (doença dos Byler);

. colestase com linfedema (Aagenaes); Página 4 de 7. colestase "dos índios americanos". 2.1.9. hepatites neonatais idiopáticas:. deficiência de excreção de bilirrubina conjugada (síndrome de Dubin-Johnson, síndrome de Rotor);. lesão do epitélio colangiolar (hepatites neonatais, cirrose biliar);. colestase intra-hepática (hepatites neonatais, cirrose biliar, drogas, NPP). 2.2. pós-hepática ou extra-hepática: 2.2.1. anormalidades anatômicas das vias biliares (figura 1a e 1b - Variedades da Atresia de Vias Biliares extra-hepáticas e cisto de colédoco):. atresia das vias biliares;. hipoplasia das vias biliares;. dilatação cística congênita de colédoco;. perfuração espontânea de via biliar;. estenose congênita de colédoco terminal. 2.2.2. compressões extrínsecas das vias biliares:. organomegalias;. anomalias congênitas. 2.2.3. obstruções intrínsecas das vias biliares principais:. neoplasias hepáticas;. litíase biliar. Apesar dessa classificação extensa e complexa, nos contentaremos com a abordagem dos diagnósticos diferenciais mais freqüentes de interesse para o cirurgião pediátrico, que são as atresias de vias biliares versus as hepatites neo-natais e os cistos de colédoco. Atresia das Vias Biliares Antes considerada como malformação congênita, a atresia das vias biliares parece ser conseqüência de processo inflamatório de etiologia ainda desconhecida. Apresenta incidência baixa, estimada em torno de 1:15.000 nascidos vivos, sem predominância de sexo. A literatura sugere como fatores desencadeantes certas infecções virais na vida intra-uterina (por exemplo, reovírus tipo 3) ou a formação de ácidos biliares anormais que levariam à esclerose biliar, porém sem confirmação definitiva. Há o envolvimento dos dutos intra e extra-hepáticos numa evolução progressiva que leva à completa obstrução dos dutos extra-hepáticos. Em cerca de 15% dos casos, a vesícula biliar e o colédoco estão permeáveis, mas os demais dutos estão obliterados. Cerca de 5% dos casos apresentam dutos hepáticos proximais

Página 5 de 7 permeáveis com as vias distais obstruídas (figura 2 - Vias distais obstruídas por fibrose progressiva: porta-hepatis). QUADRO CLÍNICO A icterícia se desenvolve entre a segunda e quarta semanas de vida, com níveis de bilirrubina acima de 6mg/dl, à custa da fração conjugada ou direta, ou bilirrubinemia acima de 2mg/dl por duas semanas seguidas; o dado fundamental no exame físico é a acolia fecal (fezes em "massa de vidraceiro"). DIAGNÓSTICO O diagnóstico diferencial deve ser feito com diversas etiologias metabólicas e infecciosas de colestase; não se dispõe de métodos não-invasivos definitivos para esse diagnóstico, e os quadros clínicos da hepatite neonatal grave e da atresia biliar são freqüentemente superponíveis. A ultra-sonografia é feita devido à facilidade de execução e à sua nãoinvasibilidade; entretanto leva a erros diagnósticos com freqüência considerável, mesmo em mãos experientes, o que tem lhe valido papel secundário no diagnóstico diferencial. A cintilografia hepatobiliar com sais do ácido di-isopropil iminodiacético marcados com tecnécio 99m (Pipida, Disida) é utilizada em muitos centros no mundo, porém deve ser sensibilizada com a administração prévia de fenobarbital na dose de 3-5mg/kg/dia via oral, dividida em duas tomadas, por dois ou três dias antes do exame. Essa medida visa diminuir os falso-positivos para atresia biliar, particularmente em portadores de deficiência de alfa-l-antitripsina. O objetivo do exame é a demonstração da permeabilidade das vias biliares através da captação do contraste por meio de uma gama-câmera: seu uso tem sido menor anualmente porque ocorrem falso-positivos e nem todos serviços contam com o equipamento adequado. O principal mérito desse exame é sua inocuidade, além de sua alta sensibilidade em afastar o diagnóstico de atresia biliar, quando demonstra a presençado traçador no duodeno (figura 3 - A cintigrafia mostra o DISIDA em fígado e bexiga mas não no duodeno e intestino, denotando a obstrução à passagem das vias biliares). A tubagem duodenal é método que requer pouca sofisticação tecnológica e afasta o diagnóstico de atresia biliar quando demonstra a presença de bile no duodeno. No entanto, sua realização é relativamente trabalhosa e necessita-se não raramente de repetição do exame para a confirmação diagnóstica, tendo sido menos usada. Por isso, a definição diagnóstica costuma ser alcançada pela realização de biópsia hepática e colangiografia operatória (figura 4 - Colangiografia intra-operatória normal). Cerca de 80% das colangiografias realizadas com esse objetivo resultam em atresia biliar. O achado de vesícula biliar atrésica e fibrose hepática permite que o cirurgião pediatra parta diretamente para o tratamento cirúrgico; a colangiografia não é indispensável. O desenvolvimento da histopatologia hepática, particularmente as inúmeras contribuições para se estabelecer o diagnóstico diferencial anatomopatológico dessas afecções e a disponibilidade das novas agulhas de biópsia percutânea (por exemplo, "tru-cut"), permitiram que a biópsia hepática se constitua no mais difundido método diagnóstico para a etiologia da colestase neonatal, com alto nível de exatidão e presteza em mãos experientes. Assim, ao invés de se desperdiçar tempo precioso com inúmeras alternativas de propedêutica armada não definitivas, tende-se a concentrar o esforço diagnóstico na anamnese e no exame físico, seguidos de biópsia hepática transparietal ou mesmo laparoscopia e/ou laparotomia exploradora, para uma definição diagnóstica e terapêutica antes das l0 semanas de vida, já que depois desse período, a evolução para cirrose biliar constitui a regra. TRATAMENTO O tratamento cirúrgico de eleição é a portoenterostomia à Kasai, que consiste em cuidadosa dissecção do espaço porta hepatis, superior e posteriormente à bifurcação da veia porta, seguindo-se os remanescentes dos dutos extra- hepáticos, porém sem se invadir o parênquima hepático (figura 5 - Portoenterostomia de Kasai, em Y de Roux, sem estomia. A anastomose deve englobar a maior extensão da placa hilar. Os pontos são dados em toda a circunferência externa da placa hilar e a parede jejunal com os nós externos, figura extraída do livro de Cirurgia Pediátrica de João Gilberto Maksoud). Para tanto, pode-se lançar mão de biópsias seriadas por congelação para se determinar o nível ideal de transecção pela determinação do diâmetro dos microdutos biliares. Segundo alguns autores, quando esse diâmetro é superior a 100um representa fator de bom prognóstico para a drenagem biliar. Esse espaço é derivado através de uma alça jejunal em "Y"

Página 6 de 7 de Roux, medindo mais que 35 cm, sendo a extremidade proximal levada em "cabo de guarda-chuva" para uma anastomose término-lateral de 8 a 12mm, com pontos separados de polipropileno 5-0. A parte distal é derivada internamente por anastomose jejuno-jejunal término-lateral pré-cólica. Há cirurgiões pediatras que defendem a confecção de "válvulas" na alça distal como mecanismo anti-refluxo; discute-se o papel desse refluxo na fisiopatologia das colangites pós-operatórias, tão temidas pelos especialistas. Quando a atresia atingir apenas os dutos hepáticos, permanecendo a vesícula, o duto cístico e o colédoco permeáveis, o espaço porta hepatis poderá ser derivado através de uma portocolecistostomia, com menor incidência de colangites no pós-operatório. Como integrantes de protocolo multiinstitucional de transplante hepático e atresia de vias biliares temos realizado o preparo pré-operatório dessas crianças com a administração de ácido ursodeoxicólico (50mg/dia) e amicacina (l5mg/kg/dia), ambos por via oral, em quatro doses diárias, iniciadas dois dias antes da operação. A antibioticoterapia profilática é complementada pela cefoxitina (100rng/kg/dia) por via endovenosa, iniciada uma hora antes da operação e mantida pelos dois primeiros dias de pós-operatório. O ácido ursodeoxicólico é reintroduzido por via oral assim que a criança reinicia a alimentação; o suporte nutricional e a suplementação vitamínica são particularmente cuidados, sempre se garantindo um aporte calórico mínimo de 100cal/kg/dia e vigilância nutricional para se coibir a desnutrição protéico-calórica e eventuais estados carenciais. Justifica-se, inclusive, a dieta por sonda enteral quando o lactente não apresenta boa aceitação via oral e/ou complementação por nutrição parenteral prolongada. A suplementação das vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K) é feita por via parenteral ou através de preparações hidrossolúveis. A literatura tem relatado drenagem biliar em cerca de 80% dos casos, a partir da primeira semana de pós-operatório; em nosso meio esse índice tem sido menor (50-60% dos casos), sendo o prognóstico de drenagem biliar principalmente relacionado à precocidade da intervenção (antes das l0 semanas de vida). O prognóstico tardio depende de numerosos fatores; estima-se que 25% dos pacientes adequadamente operados na faixa etária ideal e que apresentaram drenagem biliar consistente deverão permanecer anictéricos após os cinco anos de idade. Os demais evoluirão com cirrose biliar progressiva e insuficiência hepática, e somente escaparão da morte se for viabilizado um transplante hepático. Apesar da melhoria dos resultados dos transplantes hepáticos em crianças nos últimos dez anos, persiste como a barreira mais difícil para esse procedimento o problema da doação de órgãos. As alternativas propostas para esse entrave são as técnicas de redução dos enxertos hepáticos e o transplante hepático intervivos; além do aperfeiçoamento da legislação para doação e captação de órgãos. Cistos de Colédoco Trata-se da dilatação total ou parcial do colédoco, de origem congênita e de etiologia indeterminada. Numerosas teorias têm sido sugeridas, desde uma fraqueza congênita localizada da parede coledociana até lesão induzida por refluxo pancreático para as vias biliares, causado por anormalidades de inserção da transição bilio-pancreática. Embora sejam classificados em cinco variedades (Alonzo-Lej), mais de 90% são do tipo sacular ou fusiforme e a histopatolo fia demonstra ausência de revestimento mucoso interno e fibrose da porção muscular, impedindo seu peristaltismo e levando à colestase. QUADRO CLÍNICO O quadro clínico é representado por massa cística palpável no abdome, companhada freqüentemente de icterícia intermitente, às vezes apresentando dor (refluxo bílio-pancreático?) ou febre (colangite). DIAGNÓSTICO A ultra-sonografia abdominal permite a confirmação diagnóstica, eventualmente complementada por tomografia computadorizada. A colangiopancreatografia endoscópica retrógrada realizada dois dias antes da operação ou a colangiografia intraoperatória permitem a confirmação de anomalias concomitantes da junção bílio-pancreática (figura 6 - Cisto de

colédoco. Colangiografia intra-operatória). Página 7 de 7 TRATAMENTO O tratamento cirúrgico consiste na exérese do cisto da maneira mais completa possível, já que tem sido relatada sua transformação para adenocarcinoma e derivação biliar através de uma hepaticojejunostomia proximal em "Y" de Roux (figura 7 - Cisto de colédoco. Aspecto intra-operatório). Em casos mais difíceis, existem adesões firmes com a veia porta ou envolvimento com o pâncreas, possivelmente devido à inflamação crônica da parede do cisto. São situações que somente permitem ressecções parciais, devendo-se realizar a retirada do revestimento interno do cisto (como uma mucosectomia à Finsterer) e/ou eletrocauterização do mesmo. O prognóstico costuma ser muito bom, se bem que tenham sido relatadas evoluções para fibrose intra-hepática, antecedendo cirrose e insuficiência hepáticas, mesmo após ressecções bem sucedidas, mas, em geral, após diagnósticos retardados em pacientes com mais idade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Sauro Bagnaresi Jr. Especialista em Cirurgia Pediátrica pela SBCP e pós-graduando em Cirurgia Pediátrica da Disciplina de Cirurgia Pediátrica do Departamento de Cirurgia da Universidade Federal de São Paulo-Escola Paulista de Medicina-São Paulo.Cap. 16 do livro Temas de Cirurgia Pediátrica de José Luiz Martins et alli. ATHENEU, 1997.