O sotaque do falante nativo e a aula de inglês como língua estrangeira no contexto universitário "People who opt to study and cultivate other languages are indeed world citizens. I would not want to live in a world with one language". (SCHMITZ, 2012, p.280) 243 Em minha própria trajetória profissional como professor de inglês, fui compreender com mais detalhes o papel do sotaque do falante nativo somente nas experiências com meus alunos universitários. Enquanto aprendiz, meu maior objetivo era conseguir falar bem, entender e ser compreendido. Ter um sotaque igual ao de um falante nativo de inglês não era uma das minhas prioridades. Vivendo em um contexto brasileiro atravessado pelo ideário da globalização que ressalta a cada ano a necessidade de domínio da língua inglesa (GRADDOL, 1997, 2006; PENNYCOOK, 1994), busquei em meus estudos expandir essa ideia a partir dos conhecimentos produzidos no campo da Linguística Aplicada (LA). Primeiro, foi necessário refletir sobre a evidente valorização do falante nativo como referência idealizada sobre falar corretamente. A partir de perspectivas críticas da LA (PENNYCOOK, 1994; SCHMITZ, 2012, 2016), pude perceber como relações políticas e históricas se entrelaçam nos materiais pedagógicos adotados pelos diferentes países para ensinar inglês e até mesmo nos procedimentos pedagógicos, refletidos na postura do professor para a correção e produção sonora dos alunos (pronúncia), por exemplo. Segundo, foi necessário ponderar sobre a situação contemporânea em que o número de falantes de inglês como língua estrangeira (LE) ou segunda língua (L2) é superior (GRADDOL, 1997, 2006) aos que têm a língua inglesa como sua língua materna (L1). Nesta relação, compreendi que enquanto uma língua internacional, o mundo contemporâneo fala inglês com diferentes sotaques. Dessa forma, a sala de aula não era um lugar para a imposição de um parâmetro normativo, mas um ambiente de aprendizagem pautado pela inteligibilidade (possibilidade de construção e compreensão de significados) e pela liberdade para expressar ideias, conforme sugerido por Jenkins (2000).
Tais conhecimentos foram importantes para que eu pudesse pensar sobre minhas próprias crenças sobre ensinar LE no Brasil. Compreendo este conceito a partir de sua relação mediada com mundo, ou seja, as crenças como instrumentos de significação da realidade e dos eventos vividos, que se constituem de forma dinâmica e complexa para as pessoas. Dessa forma, ao mesmo tempo em que novas experiências podem gerar oportunidades de mudanças de crenças (dinamismo), aquelas formadas há mais tempo (complexidade) representam chances de maior resistência (PAJARES, 1990). No primeiro semestre de uma disciplina de inglês para alunos ingressantes de secretariado executivo trilíngue (Inglês, Espanhol e Francês), passei por experiências que me motivaram a pensar ainda mais nesta relação entre crenças sobre ensinoaprendizagem e o sotaque do falante nativo de inglês. Em uma das primeiras aulas, enquanto eu realizava atividades que introduziam o cronograma da disciplina, fui indagado com a seguinte questão: Professor, com qual sotaque você dá aula? Apesar da surpresa do tipo de pergunta, que acredito nunca ter ouvido antes, respondi prontamente que eu falaria com um sotaque brasileiro falante de inglês. O aluno apenas me disse que ele, enquanto aprendiz, sempre teve professores americanos ou que haviam morado nos Estados Unidos, e esse seria o sotaque de referência para ele sobre como falar inglês. Percebendo esse estranhamento inicial, aproveitei uma porção da aula para discutir com o grupo se a questão feita por esse aluno era de interesse dos demais. Para minha surpresa, observei que eles revelaram já possuir um bom nível linguístico, mas queriam aproveitar as disciplinas para se comunicar tão bem quanto um falante nativo. Portanto, decidi que seria importante explorar esta questão mais a fundo. A partir de uma entrevista em inglês com a atriz Sofia Vergara para o programa de TV Chelsea Lately do canal norte-americano E!, propus uma discussão sobre o papel dos sotaques nas interações em inglês. Sofia Vergara é uma atriz colombiana que interpreta uma personagem também latina na série Modern Family. Considerada uma das celebridades mais bem pagas da televisão, ela é conhecida por falar inglês com um 244
sotaque bastante marcado e pela atitude bem humorada quanto a isso. Seu sotaque, inclusive, é uma questão recorrente nas entrevistas que concede aos programas de talk show. Os alunos assistiram diversas vezes a entrevista (com duração aproximada de cinco minutos) observando a interação estabelecida entre a atriz colombiana e a apresentadora, bem como as representações sobre o sotaque do falante estrangeiro evidenciadas durante a conversa. Apesar de atentarem para o fato de que várias piadas durante a entrevista se voltaram ao sotaque de Sofia Vergara, tanto a atriz quanto a apresentadora abordaram essa questão com bom humor, visto que ao fim, o propósito da entrevista foi alcançado: os tópicos foram discutidos de maneira a entreter o público e ambas se compreenderam. Meus alunos, no entanto, não interpretaram da mesma forma. Nossa discussão posterior indicou que eles acreditam que quanto mais marcado é um sotaque, mais problemático ele é para a interação na língua alvo. Alguns alunos, por exemplo, revelaram que na área do secretariado essa postura mais tolerante não era possível, pois um sotaque mais marcado poderia ser interpretado como dificuldade de falar. O que pude perceber com esta proposta pedagógica é a existência de crenças que para alguns alunos se constituem de maneira bastante sólida, de tal forma que elas sugerem de que forma esses estudantes se orientam para a própria aprendizagem: não basta apenas falar bem, é preciso falar como eles falam. Este tema não poderia ser encerrado logo ali e a partir da atividade anterior, propus ao grupo o estabelecimento dos parâmetros para pensar como o ensino de inglês seria organizado naquela disciplina. Busquei enfatizar o papel da tolerância e da grande quantidade de falantes de inglês não-nativos como suporte para que os alunos refletissem sobre quais são os aspectos essenciais para as interações na língua alvo. Retomei de Jenkins (2000, 2007) os aspectos da inteligibilidade e da liberdade de expressão como fatores chaves para a comunicação. Ao fim, chegamos a um consenso (em andamento) que poderia ser expresso da seguinte forma: o que eu penso sobre como melhor aprender (crenças) é igualmente importante ao que eu faço para aprender. Se eu quero falar com o sotaque de um falante nativo, preciso entender as 245
implicações disso. Se eu assumo meu sotaque de falante estrangeiro preciso compreender o que isso significa no cenário global contemporâneo. De maneira geral, os alunos não seriam corrigidos ou intimidados por suas crenças, mas seriam incentivados a pensar sobre como elas se relacionam aos esforços desses universitários para aprender inglês. Com essas ideias iniciais, ainda que os alunos que valorizam o sotaque do falante nativo não demonstraram grandes mudanças, eles tiveram oportunidade de pensar sobre a própria crença além de observar uma perspectiva diferente de sua experiência de vida. O aluno adulto, dessa forma, era entendido como sujeito mais envolvido com o processo de ensino-aprendizagem, capaz de compreender o impacto das próprias crenças e escolher os caminhos que ele ou ela acha mais apropriado para aprender. Dois aspectos importantes podem ser depreendidos dessa experiência. Primeiro, por mais sólidas que sejam determinadas crenças, a aula de inglês pode ser um espaço para falar sobre elas, como no caso dos meus alunos que se envolveram na atividade e apresentaram as opiniões pessoais livremente. Segundo, mesmo que a mudança não seja alcançada, é necessário ter em mente que promover oportunidades de pensar sobre as próprias crenças já se configura em um importante caminho para nossos alunos estrangeiros compreendam que falar com um sotaque (com traços de sua L1, por exemplo) não é algo ruim. Se eles tomam para si a interação como forma de significação, desde que haja compreensão, ter sotaque de brasileiro se comunicando em inglês não significa que eles sejam falantes inferiores ou incompreensíveis. Se o mundo atual fala inglês com vários sotaques, existe espaço suficiente para falar inglês com um sotaque brasileiro. 246
Referências GRADDOL, D.The Future of English? A Guide to forecast the popularity of the English Language in the 21st century. London: British Council, 1997. 65p. 247. English Next. London: British Council, 2006. 128p JENKINS, J. The Phonology of English as an International Language. Oxford: Oxford University Press, 2000.. English as a Lingua Franca. Oxford: Oxford University Press, 2007. LIMA, F.S. Ter ou não ter? Eis a questão! Crenças de alunos de secretariado executivo sobre o sotaque do falante nativo de inglês. No prelo, 2017. PAJARES, F. M. Teachers beliefs and educational research: Cleaning up a messy construct. Review of Educational Research, v. 62, n. 3, 1992. PENNYCOOK, A. The Cultural Politics of English as an International Language. London: Longman, 1994. SCHMITZ, J.R. "To ELF or not to ELF?" (English as a Lingua Franca): That's the question for Applied Linguistics in a globalized world. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v.12, n.2, p.249-284, 2012.. Um mundo globalizado, híbrido, pós-colonizado e pós-moderno:reflexões sobre o inglês na atualidade. Folio (Online): Revista de Letras, v. 08, p. 333-365, 2016.