GRANDES DESAFIOS PARA SERES TÃO PEQUENOS: VIVENCIANDO O CÂNCER INFANTIL INTRODUÇÃO



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GRANDES DESAFIOS PARA SERES TÃO PEQUENOS: VIVENCIANDO O CÂNCER INFANTIL 1 Maria Eduarda André Pedro ²Elizabeth Ranier Martins do Valle INTRODUÇÃO Antigamente o câncer era considerado uma doença incurável. Porém, com a evolução das ciências médicas, atualmente o câncer reúne maior possibilidades de cura, sendo que, na infância, a probabilidade de cura é mais acentuada. É importante ressaltar que o diagnóstico do câncer e todo o seu percurso geram situações estressantes, tanto para aquele que vivencia o tratamento quanto para aqueles que o acompanham, como a família. Isto ocorre pelo fato de o câncer ocupar um espaço aterrorizante e devastador na vida das pessoas acometidas, significando, muitas vezes, uma sentença de morte. Segundo Vendrúscolo e Valle (2001), as crianças com idade entre 4 e 6 anos são capazes de compreender específica, superficial e concretamente as causas e os mecanismos da doença. Sendo assim, é muito importante envolvê-las nas decisões relacionadas ao tratamento. De acordo com Figueiredo et al. (2004) ter um filho com câncer transforma tanto a dinâmica familiar, no que se diz respeito ao relacionamento entre os membros, quanto o próprio cotidiano, caracterizando um período de adaptação. Uma família, ao receber o diagnóstico, reage de maneiras diferentes, manifestando desde otimismo ou uma desestruturação em seu viver. A integração da criança na escola é fundamental para o seu desenvolvimento psicológico e social. Em tratamento, as idas da criança à escola podem se tornar menos freqüentes. Neste caso, busca-se enfatizar a comunicação entre a equipe do hospital e os professores e assim, dependendo da sua condição clínica, a criança poderá se ocupar com atividades lúdicas e/ou escolares. Com isso, criar um ambiente em que esta criança possa se sentir livre para expressar-se é de extremo valor (Sociedade Internacional de Oncologia Pediátrica, 2004). Nesta situação, onde a criança se percebe vivendo a sua enfermidade, sendo forçada a reorganizar sua vida e aprender a lidar com esta realidade, que traz consigo um resultado incerto, meu objetivo neste trabalho foi ouvir a criança com câncer durante o tratamento para compreender sua percepção e o sentido que ela atribui à sua doença e à sua vida neste período. 1 Especialista em Psicologia Hospitalar pela Santa Casa de São Paulo, Email: duda.pedro@yahoo.com.br ² Professora Livre-docente aposentada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto-USP, Doutora em Psicologia pela IP-USP, Mestre em Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas.

METODOLOGIA Método Fenomenológico em Pesquisa Em uma pesquisa fenomenológica é permitido ao pesquisador chegar à compreensão da experiência vivida por alguém, ou seja, é uma abordagem que pode ser utilizada como possibilidade de busca da compreensão e a interpretação de um fenômeno que se mostre ao pesquisador. Do grego phainomenon, fenômeno significa o manifesto, o revelado, o que se mostra tal como é (BRUNS; TRINDADE, 2003). Esse tipo de pesquisa caracterizase, essencialmente, por permitir chegar-se à experiência humana como é vivida considerando-se que, dela, vem o conhecimento acerca do homem. De grande importância, a pesquisa fenomenológica permite ao pesquisador colocar-se dentro da situação a ser estudada, numa atitude engajada e aberta, de aceitação, buscando não deixar que os preconceitos interfiram (VALLE, 1997). Procedimentos Os participantes do estudo são três crianças do sexo masculino, com idades de 6 e 8 anos, cada uma, com um determinado tipo de câncer, realizando seus respectivos tratamentos, em momentos diferentes. Reportarei-me a elas através de nomes fictícios: Cássio, de 6 anos; Cauê, de 8 anos e Pedro, de 8 anos. O estudo foi realizado junto a ABRAPEC Associação Brasileira de Assistência às Pessoas com Câncer, na cidade de Ribeirão Preto, estado de São Paulo. Caracteriza-se por ser uma organização não governamental que atende a pessoas com câncer e seus familiares, oferecendo suporte psico-sócio-econômico. Autorização da Instituição e dos pais das crianças; Assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; Entrevista com a criança iniciada com questão norteadora: Como é para você fazer esse tratamento? ; Desenho da criança, como parte do rapport final; Conversa com a mãe a fim de obter algumas informações que não poderiam ser fornecidas pelas crianças; Transcrições e análise das entrevistas. Para a realização da análise compreensiva, o pesquisador faz uma leitura geral e por inteiro de cada descrição, encontra as unidades de significados e transforma cada unidade de significado para o seu discurso psicológico. RESULTADOS E COMPREENSÃO As vivências das crianças participantes da pesquisa podem ser consideradas a partir dos temas que emergiram de suas falas. As categorias temáticas que pude apreender, analisando as entrevistas de meu estudo, foram: A doença, o tratamento, o hospital, apoio psicossocial, a rede familiar, a escola e a morte. As crianças, durante as entrevistas realizadas na ABRAPEC, ao serem estimuladas com a questão norteadora, passaram a falar sobre vários aspectos que envolvem o tratamento oncológico. Este se configurou como um período marcado pela expectativa do término do mesmo; efeitos colaterais, incluindo a vergonha de passar por essa situação; conhecimento em relação a todos os procedimentos médicos; freqüentes idas ao hospital e internações; afastamento da escola, bem

como uma rede de apoio psicossocial, que se faz extremamente importante. Ao falarem do tratamento, demonstraram dificuldade em expor os sentimentos vivenciados durante o espaço de tempo entre o momento em que souberam estarem doentes até hoje em dia: Triste. (Cássio, 6 anos) Essa dificuldade também foi observada quando as crianças falaram do quanto elas sabiam do por quê das idas ao hospital, ou seja, o conhecimento que elas possuem em relação a esta questão. Para elas, o hospital não é o lugar aonde vão para fazer um tratamento oncológico, e sim, para tratar alguma doença menos séria que o câncer:... É pra sarar a tosse. (Pedro, 8 anos) Após uma sessão de radioterapia ou quimioterapia, as crianças podem sentir um mal estar, como relatado. No entanto, qualquer mal estar ou outro tipo de efeito colateral pode não fazer parte do tratamento oncológico como uma regra ou na intensidade imaginada pelas pessoas. Uma das crianças relatou exatamente essa questão ao dizer que não sente nada após as sessões de quimioterapia realizadas no hospital. Da mesma forma, a dor não foi relatada como o fator que mais incomoda as crianças: por exemplo, para a realização do exame de sangue, temido por muitas pessoas, expressaram não sentir nada. Esse exame é um dos mais simples e rotineiros realizados durante o tratamento oncológico. Entre vários outros procedimentos médicos, em função do tratamento, uma das crianças, nas suas falas, destacou-se por ter um conhecimento maior que o das outras: Eu também fazia radio. É só uma luzinha pra ver minha cabeça. Aí acabou tudo e veio a quimioterapia. (Cauê, 8 anos) Este conhecimento se caracteriza como conseqüência das explicações de sua mãe, uma vez que toda e qualquer explicação que deveria ser advinda dos médicos ou outro profissional da equipe de saúde, faz-se inexistente: Só minha mãe que explica [o exame]. (Cauê, 8 anos) Sendo assim, as dificuldades de comunicação entre os profissionais da equipe de saúde e a criança em tratamento é um elemento real, dificultando o estabelecimento de um bom vínculo. Estar no ambiente hospitalar não é uma situação desejada pela criança e nem por sua família. Quando não há um bom vínculo entre a equipe de saúde, criança e sua família, a probabilidade da permanência no hospital ser mais aversiva é muito maior. As crianças relataram não gostarem de ficar no hospital, seja durante uma internação ou um exame: Ah! O hospital é chato, não tem graça... É meio ruim. (Cauê, 8 anos) Ruim. (Pedro, 8 anos) Durante este período, quando o apoio psicossocial torna-se mais necessário, a criança com câncer vê-se, muitas vezes, sozinha. Ainda hoje, podemos encontrar hospitais que não oferecem o serviço de psicologia para o paciente e seus familiares. Isto foi observado nas falas de duas crianças, onde elas relataram não conversarem com ninguém no hospital:

- Tem alguém, algum médico que vem falar com você? (Pesquisadora) - Não. Esqueci tudo. (Cássio, 6 anos) Apenas uma delas, espontaneamente, verbalizou ter duas psicólogas e que o conteúdo de suas conversas é segredo. - Sabia que eu tenho duas psicólogas? - Duas? O que você acha delas? (Pesquisadora) - Não pode falar, é segredo. (Cássio, 6 anos) Acredito que isto se deve ao fato de que a psicóloga, para ganhar a confiança da criança, deva ter dito que tudo o que ela - criança - contasse seria segredo entre eles. Por este motivo, a mãe, além de ser a acompanhante da criança às suas idas ao hospital, é ela também quem oferece suporte e fornece informações para o filho durante o tratamento oncológico. A mãe faz parte desta rede de apoio psicossocial, assim como outros membros da família. Foi possível observar que, mesmo sendo difícil para esta mãe, é ela quem segura as pontas durante este período doloroso: acompanha a criança ao hospital; fornece informações para que as dúvidas sejam cessadas; tem que ser firme mesmo quando o filho expressa dor, sabendo que esta é necessária para curar a doença; é a figura com quem a criança compartilha muitos sentimentos; deixa, muitas vezes, um outro filho com pessoas que se disponibilizam a cuidar dele, entre outras circunstâncias: Só minha mãe que ficava lá [hospital] comigo (Cauê, 8 anos) Em meio a tantas privações, as crianças demonstraram que a escola significa a maior delas. Quando se afastam da escola, afastam-se do contato com os amigos e, então, sua rede social torna-se deficitária. Ter que deixar de ir à escola para ir ao hospital configura-se como uma situação aborrecível: Minhas aulas já começaram, mas eu não tô indo... Porque eu vou de manhã no hospital. (Cássio, 6 anos) Acho chato... A escola é mais divertida que o hospital... Na escola eu pinto, faço desenho, escrevo. (Pedro, 8 anos) Surgiu nas falas de uma criança um assunto que as pessoas evitam muito: a morte. Essa hesitação torna-se mais acentuada quando se trata de uma criança. Porém, para uma das crianças o assunto morte veio como algo natural: falou da morte do avô e da tia, causada pelo câncer: Meu avô morreu... Até minha tia... De câncer, era que nem eu. Ela operava também. (Cauê, 8 anos) Com as falas das crianças, a partir da análise feita, foi-me possibilitado chegar à compreensão de algumas facetas, de alguns modos de viver da criança com câncer. CONSIDERAÇÕES FINAIS Estar com todas as crianças foi uma experiência grandiosa que me possibilitou compreender várias facetas desse universo doloroso, que é o câncer, relacionado ao universo infantil. Minha dificuldade, nesses contatos, deu-se pelo fato

de as crianças serem muito novas, estarem em desenvolvimento e, portanto, foi necessário fazer muitas perguntas para que se chegasse a uma compreensão. Não foi possível fazer apenas uma questão norteadora e, a partir daí, a criança falar sem maiores intervenções. Tive que usar muitos recursos, como desenhos e jogos, para que eu conseguisse manter uma conversa com elas. Minha percepção, neste sentido, foi de que as crianças pequenas têm uma grande dificuldade em falar do que é abstrato, ou seja, sentimentos e emoções. Então, quando lhes perguntava como era fazer o tratamento, elas davam respostas concretas, como uma delas: Na mão. Isso pode ser confirmado pela teoria de Piaget (1959). Para ele, o desenvolvimento ocorre com a finalidade de o sujeito adquirir determinadas visões do mundo que o cerca, permitindo-lhe um estado de adaptação e equilíbrio em relação às situações às quais está continuamente exposto (RAPPAPORT, 1981). Ainda, Piaget (1959) coloca a criança de 6 anos em um período que chama de pré-operacional. Aqui, a criança é exposta a várias estimulações que lhe ampliarão consideravelmente as oportunidades de contatar com o universo, formando impressões perceptuais dos objetos, das relações causais, da noção de espaço e tempo, e que servirão de base aos verdadeiros esquemas conceituais que surgirão no período subseqüente, o operacional concreto. Acredito que, por este motivo, entre outros, as crianças apresentaram essa dificuldade de falar do abstrato. Alguns aspectos destes contatos me chamaram a atenção. Assim como várias pessoas, eu pensava que o tratamento oncológico sempre traz efeitos colaterais, como, por exemplo, a criança estereotipada: magrinha e sem cabelos. No anseio de encontrar as crianças, esperava que elas fossem desta maneira ou, pelo menos, parecidas, o que não é, de fato, uma regra. Uma das crianças, mesmo em tratamento quimioterápico, tinha cabelos. Outro elemento que me chamou a atenção foi a dor: essas crianças ficam tão vulneráveis durante o tratamento que parece que a dor torna-se corriqueira e elas acostumam-se com isso. Assim, parecem não sentir dor, por exemplo, ao tirarem sangue, exame temido por pessoas de todas as idades. Uma das crianças surpreendeu-me por ter tantos conhecimentos a respeito dos procedimentos médicos. Embora ela não soubesse o que cada exame significa, sabia me dizer que era para ver como estavam, por exemplo, as plaquetas. Talvez esse conhecimento faça parte de um outro elemento que me chamou a atenção nesta criança: a maturidade. Falava da doença, dos procedimentos e de todas as situações que permeiam o tratamento com uma naturalidade, com um conhecimento não esperado para uma criança de sua idade (8 anos). Enquanto esta apresentou determinada maturidade, uma outra se apresentou infantilizada: falava e agia como um bebê. Isso pode acontecer devido a diversos fatores, sendo um deles a questão da superproteção dos pais. Estes, mediante a situação de sofrimento da criança, passam a realizar todos os desejos dela, tornando-a uma criança sem limites, por vezes, até mesmo voluntariosa (Valle, 1988). A falta de comunicação entre equipe de saúde, especialmente do médico, e a criança, também foi relevante no estudo. Todas as crianças relataram que o médico não conversa com elas. Em minha opinião e, baseada em leituras da área (Valle, 1997, dentre outras), é de extrema importância esse vínculo ser estabelecido para criar confiança da criança e seus familiares no médico. Assim, ele é o profissional que deve passar e explicar todas as informações necessárias, inclusive para a criança, pois esta deve participar ativamente do tratamento. Não se faz necessária uma linguagem técnica, como a que o médico usa para conversar com outros profissionais. Como não é isso que acontece, a mãe acaba tendo esse papel de suporte, além de provedora e detentora de informações: é ela quem está sempre com a criança, explicando a ela aquilo que lhe foi explicado por um profissional da

equipe de saúde. Esses e muitos outros aspectos estão presentes na condição de a criança ser-no-mundo-com-câncer. Vivenciar uma doença grave, como o câncer, é para uma pessoa, perceber-se habitando um mundo sem poder escapar dele: composto de remédios, exames invasivos, internações, afastamento da vida cotidiana, dos amigos e familiares, além de sentimentos como medo e angústia diante da possibilidade de morte iminente. Por essas questões, entre outras, considero fundamental a presença de um psicólogo na equipe de atendimento à criança com câncer, para estar não só com ela, mas também com família e com a própria equipe, em momentos que se sente a necessidade de compartilhar não só dados técnicos de um caso, mas também, sentimentos despertados em relação a ele. Melhorando o atendimento de crianças com câncer, estaremos ajudando-as a melhorar suas perspectivas de vida, para que assim, apesar da fatalidade do adoecer, de terem que enfrentar a doença, não deixem de existir e nem mesmo sejam impedidos de crescer e desfrutar de momentos bons que a infância proporciona. Precisamos, seja como pessoas que estão perto dessas crianças e seus familiares, ou como profissionais, encorajá-los a lutar pela vida, por um futuro, muitas vezes promissório que as espera, repleto de oportunidades e possibilidades. Como afirma Valle (1988): Não ter esperança é não ter horizonte, não ter futuro, não ter perspectiva, eliminando, assim, suas possibilidades de ser (p. 99). REFERÊNCIAS Bruns, M. A. T.; Trindade, E. Metodologia Fenomenológica: a contribuição da ontologia-hermenêutica de Martin Heidegger (2003). Psicologia e fenomenologia: reflexões e perspectivas. Campinas: Átomo & Alínea. Figueiredo, C. M. S.; Freitas, J. M. P.; Costa, M. M. O (2004). O papel do psicólogo no hospital lidando com casos de câncer. Revista da Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia. Piaget, J (1959). A Linguagem e o Pensamento da Criança. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura. Rapaport, C. R.; Fiori, W. R.; Davis, C (1981). Psicologia do Desenvolvimento: A idade pré escolar. São Paulo: EPU. Sociedade Internacional de Oncologia Pediátrica. Orientações sobre aspectos psicossocias em oncologia pediátrica. Tradução de Luciana Pagano Castilho Françoso e Elizabeth Ranier Martins do Valle, 2004. Valle, E. R. M (1997). Câncer infantil: compreender e agir. Campinas: Psy. Valle, E. R. M. Ser-no-mundo-com-o-filho portador de câncer: hermenêutica de discursos de pais. São Paulo, 1988. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo.

Vendruscolo, J., Valle, E. R. M. (2001). Psico-oncologia pediátrica (Org.). São Paulo: Casa do Psicólogo.